Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho




 



Agosto e a Ficção[1]

Rogério Santana

              O romance Agosto, de Rubem Fonseca, ainda no capítulo 3, apresenta dois reencontros do policial Mattos com pessoas de sua convivência num passado não muito distante. Lê-se que:

            Saindo do Senado, Mattos caminhou pela Rio Branco até a Sete de Setembro. Entrou à esquerda indo até a rua Uruguaiana. A Cavé ficava na esquina.

            Entrou na confeitaria e sentou-se, de frente para a porta. Faltavam dez minutos para as cinco. Por alguns instantes pensou em ir embora. Por que ficar ali para rever a mulher que o havia desprezado? O que Alice estava querendo dele? Ajuda? Ele não queria desforrar-se dela deixando de ajudá-la, ou vingar-se ajudando-a, o que seria ainda mais mesquinho. Ficou olhando os desenhos art-nouveau na parede.

 

         “Tenho um encontro às cinco e meia. Com o maestro. Lembra do maestro?”

         “Maestro?”

         “O velho que chefiava a claque, o seu Emílio. Lembra?”

         Ela se recordava vagamente de Mattos ter contado que quando estudante fizera parte da claque do Teatro Municipal para poder assistir a óperas de graça, ganhando ainda alguns trocados.

         “Não o vejo há muito tempo... Na última vez, matei aula para ir me encontrar com ele em frente à estátua do Chopin... Era ali que os claqueurs se reuniam... Naquele dia íamos combinar a claque do Parsifal...”

         “Alice colocou outro cigarro na boca. Mattos pegou o isqueiro e acendeu o cigarro.

         “As óperas de Wagner eram muito trabalhosas para os claqueurs. No Parsifal nunca se deve aplaudir no fim do primeiro ato e fazer o público ficar quieto era mais difícil do que fazê-lo bater palmas. Me lembro do seu Emílio dizendo ‘não vamos pegar uma galinha morta de bisseur...’”

         Calou-se. O chá ficara frio.

         “Vi o Parsifal em ¾” Alice calou-se. Em Londres.

         “Eu não cheguei a ver. Acabou não sendo encenada. A claque foi dissolvida logo depois. Acabou. Saiu de moda. É coisa do passado.”

 

       O velho já o esperava ao lado da estátua de Chopin. Usava, como sempre, chapéu panamá e gravata borboleta, mas o chapéu esta amassado e o terno era de caroá. O colarinho, sujo. A bengala de castão de prata, que segurava na mão, em vez de torná-lo elegante, como antes, dava-lhe agora uma aparência frágil e enferma.

       “Meu jovem”, disse Emílio abraçando Mattos e mordendo a dentadura, “estou muito feliz com seu sucesso.”

         Sucesso. Veio à mente de Mattos o xadrez do distrito cheio de homens fedorentos e doentes.

         “E o senhor, como vai?”

         “Não me chame de senhor. Você não é mais aquele menino que me pedia que lhe ensinasse tudo sobre ópera.”

         “Como vão as coisas?”

         “Vão indo... Quando vi o seu retrato eu disse é ele, é aquele menino que trabalhou comigo na claque... Subiu na vida, pensei, agora anda metido na alta roda... Então eu disse cá com os meus botões, vou ligar para ele. Não imaginei que você viesse... Pensei que o sucesso tinha lhe subido à cabeça...”

         Emílio tirou um lenço do bolso e limpou os olhos úmidos.

         “Quer tomar alguma coisa? Um chope?”, perguntou Mattos.

         “Vamos naquele bar que fica na Álvaro Alvim esquina de Alcindo Guanabara.” (1991: 49-52)

            As passagens aqui transcritas apresentam um primeiro dado para a análise dessa narrativa de Rubem Fonseca: o tempo do que se narra não se limita ao mês de agosto, como sugere o próprio título. A limitação temporal aparente, portanto, tem que ser considerada sob uma ótica que dimensione o real alcance de seu significado para o conjunto do texto. Determinação rígida de um tempo já previamente constituído de um significado, como é o caso do mês de agosto de 1954 para a história brasileira, num romance, normalmente é acompanhada de uma maior referencialidade da narrativa. Essa referencialidade, no caso de Agosto, é de fatos históricos. Os dias que antecederam ao suicídio de Getúlio Vargas estão representados na narrativa de Rubem Fonseca, que, num esforço de pesquisa, reconstituiu o episódio se mantendo fiel aos relatos históricos já existentes, introduzindo, entretanto, elementos “estranhos” ao conjunto de fatos relatados, mas que acabam determinando seu estatuto ficcional.

            De início é preciso tentar resolver, no âmbito do romance de Fonseca, a polêmica em torno dos limites entre literatura e história. Mas antes que ela possa ser discutida, cabem algumas considerações sobre o que se entende, aqui, por literatura. Desta discussão é que será possível colocar Agosto na mira do enfoque crítico, com vistas a uma análise do que é literário e do que é histórico nessa narrativa, se é que essa divisão é tão nítida quanto possa parecer.

            Como ponto de partida, estabeleço o conceito de literatura de Antonio Candido.

            A literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra. (1967: 206)

            Por mais objetiva que possa parecer a afirmação de Antonio Candido, pode-se apontar um ponto para desenvolvimento: o que significa “representados ficcionalmente”? Ainda permanece a dúvida quanto à natureza do texto literário, pois a isto a afirmação do crítico brasileiro não responde. Mas um elemento na afirmação de Antonio Candido pode ser utilizado para a diferenciação aqui desejada entre as narrativas literária e histórica. É ele o “sistema arbitrário”. A arbitrariedade está orientada para a elaboração do texto ficcional. O texto histórico, por mais que seja o resultado linguístico da tentativa de reconstrução de um fato, tem poucas chances de perder seu caráter documental. Com isso, a construção de um sistema arbitrário para a faceta histórica de um romance tem que guardar alguma coerência com a fonte, sob pena de ser uma representação histórico-literária inadequada para a coerência interna do texto.

            É bem verdade que o historiador Hayden White tem feito inimigos com suas obras acerca dos dois modelos de narrativa, a ponto de ele afirmar que “Não importa se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma.” (1994: 115) O que incomoda, entretanto, na posição de White, é a desconsideração do significado que o fato histórico possui. E não é um significado apreendido na sua totalidade por quem escreve um texto literário. Por outro lado, na transposição do real vivido para o narrado, perdem-se significados secundários que não estabeleçam conexão direta com o eixo ficcional. Toda a complexidade de sentidos inerentes a um fato documentado não pode ser simplesmente banida ao inseri-lo numa estrutura ficcional. O romancista, assim, não é um desconstruidor de significados históricos, com vistas à construção de significados ficcionais.

            A integração entre eventos ficcionais e eventos históricos depende, sobretudo, da “reorganização do mundo” estabelecida pelo ficcionista. Na combinação mais estreita entre os eventos, a intervenção do ficcionista, dependendo do seu interesse, pode ser menor, ao passo que, na combinação menos estreita, a intervenção com certeza terá que ser maior, dada a falta de conexão necessária para a construção de um enredo, e por conseguinte, de um significado. Em ambas situações, é imperativa a coerência interna do texto. Entende-se, aqui, por coerência, o resultado da relação de elementos linguísticos que sustente um sentido para o próprio texto.

            O romance Agosto é um produto do primeiro caso apontado, ou seja, a combinação estreita entre eventos ficcionais e históricos. Os fatos históricos ali apresentados obedecem à organização das narrativas históricas já existentes sobre o mês do infortúnio de Getúlio Vargas. Dando destaque a algumas passagens ocorridas nesse período, principalmente à participação de Gregório Fortunato na tentativa de assassinato de Carlos Lacerda, esse romance de Rubem Fonseca não altera a cronologia dos fatos, nem subverte a suposta verdade histórica. Logo, pode-se afirmar que Agosto é um romance histórico por apresentar, na maior parte de sua estrutura, fatos já documentados pela historiografia. Enquanto romance, há uma parcela significativa de ficção que o tira da condição de relato. A afirmação de Edgar de Decca sobre a contiguidade entre o ficcional e o histórico é bastante apropriada ao romance Agosto.

            Portanto, ambientar enredos de romances em épocas históricas passadas não indica pretensões realistas, mas o contrário, permite que o leitor se atenha mais aos aspectos ficcionais da trama narrada. Neste caso, o romance toma emprestado da historiografia as representações que ela produziu sobre o passado, ele se utiliza de materiais históricos já prontos, mas subverte a própria função da história. (1997: 201)

            O realismo aparente do romance histórico é desmascarado pelo realce que os elementos ficcionais adquirem. A previsibilidade da narrativa histórica, acentuada se os fatos são recentes, possibilita que a atenção do leitor esteja mais voltada para os fatos fictícios. O que há de novo será dado pelo ficcional. Agosto é um romance que se encaixa nesta condição. Publicado em 1990, aborda o último mês de vida do presidente Getúlio Vargas. Por ser um fato que marcou profundamente a história político-social do Brasil, há pouca margem de imprevisibilidade ao adotá-lo como tema de um romance.

            Isto, porém, não tira a eficácia literária do romance de Rubem Fonseca. A introdução de um policial, comissário Alberto Mattos, na narrativa, mantendo uma estreita relação com o momento histórico, deu a dinâmica necessária que apenas o encadeamento dos fatos não daria. Como personagem fictícia, Mattos ultrapassa as barreiras temporais impostas pela história. Com isso ele acaba sendo também um instrumento de ampliação do tempo, uma das bases para a passagem do predomínio histórico para o predomínio ficcional. Entretanto, elementos mais evidentes apontam a importância da história para esse romance de Rubem Fonseca. Basta ver o título. Espera-se, assim, que tudo transcorra em agosto. As justificativas para o atentado a Lacerda e o suicídio de Vargas, no âmbito dos fatos em si, se baseiam também no que aconteceu no mês de agosto. Logo, o tempo, tão marcado no romance, vai se dilatar no mundo de Mattos, sendo mais amplo à medida que as referências vão se restringindo à sua individualidade. Com isso, ele adquire seu ponto máximo quando abordada a sua subjetividade. De certa forma, essa amplitude tem um percurso do tempo cronológico para o psicológico.

            Para maior aprofundamento do alcance temporal reservado a Mattos, devem ser apontados dois aspectos que estruturam o seu passado. Primeiro, o seu envolvimento passional com Alice e Salete; segundo, suas recordações da época em que era universitário do curso de direito. Esses dois vetores de ligação com o passado adquirem significado na obra por manterem uma conexão com o presente. Desta forma, Rubem Fonseca ampliou o raio de vida de Mattos, sem que ele perdesse a conexão com o presente. Consequentemente, Mattos, para o romance, chega a ser, em certos aspectos, mais importante que a própria figura de Getúlio Vargas.

            É ele quem conduz as investigações em torno do assassinato do empresário Gomes Aguiar, cuja esposa mantém um envolvimento com o marido de Alice. O passado de Mattos se liga ao seu presente pelo crime que ele está investigando. O outro aspecto explica em parte a insatisfação de Mattos. Sempre teve em mente se tornar juiz. Ser comissário da polícia, então, deveria ser uma função provisória. A insatisfação com suas conquistas profissionais aparece logo na primeira conversa com o maestro Emílio: “‘Meu jovem’, disse Emílio abraçando Mattos e mordendo a dentadura, ‘estou muito feliz com seu sucesso.’” E Mattos: “Sucesso. Veio à mente de Mattos o xadrez do distrito cheio de homens fedorentos e doentes.” O enredo articulado com o passado de Mattos permite, por fim, afirmar que o tempo no romance Agosto é vital para compreensão da dimensão histórica e ficcional.

            Mas antes, o romance histórico impõe um questionamento. Qual a autonomia semântica de sua narrativa. Uma vez vinculado estreitamente a um universo de significados já determinado por documentação ou pela própria narrativa histórica, como ficaria sua autonomia narrativa, com vistas a construir um mundo ficcional que possa existir por si mesmo. Sem ela, a autonomia narrativa, pouco se pode esperar de uma ficção.

            “A significação autônoma e a perturbação do senso do real introduzem no discurso a brecha da ficção, por onde se configura o mundo da obra através do enredo.” (NUNES, 1988: 15)[2] Os dois aspectos apontados por Benedito Nunes podem em parte justificar a ficção no romance de Rubem Fonseca. A autonomia de significado advém da intervenção do imaginário do autor na construção histórica dos fatos. Em Agosto, essa intervenção está acompanhada de um desmonte da imagem da polícia brasileira nos anos 50. O autor parte de uma situação de fato, os acontecimentos da política brasileira no ano de1954, e estabelece um elo narrativo com as investigações. A ficcionalidade das investigações revela, sem qualquer constrangimento para a história dos envolvidos diretamente, a faceta pouco exemplar da polícia: instrumento de benefício de uma minoria, seja da própria corporação, seja do meio político.

            Mattos é a personagem fulcral para a realização desse elo. É do seu comportamento contrário ao da maioria que surgem as diferenças reveladoras de uma situação que compromete o desempenho da polícia para o benefício da maioria da população da então capital do Brasil. Evidentemente que acompanha essa “significação autônoma” a “perturbação do senso do real”. Em Agosto, dois aspectos do senso do real sofrem com a intervenção da ficção situada no âmbito do comissário Mattos: a ampliação do tempo a ele concedida e sua diferenciação em relação aos outros policiais. Portanto, Mattos é a principal ficção em Agosto. As outras personagens que a ele se ligam diretamente acabam contaminadas por essa ficcionalidade. Raciocinando assim, é producente pensar que a participação de uma personagem como Mattos constrói um universo mais real.

            A obra é uma forma, pouco convencional, de expressão do conhecimento. Da sua organização, depende esse conhecimento que se pode extrair do seu mundo criado. Assim sendo, Agosto é uma reconstrução de um referencial cristalizado que, ao ser ficcionalizado, adquire uma “nova referencialidade” (NUNES, 1988: 16). Entretanto, ela deve ser posta de acordo com os dois eixos já apresentados. A referencialidade de um fato já exaustivamente explorado pela narrativa histórica adquire numa versão ficcionalizada matizes diferentes da referencialidade de elementos ficcionais associados a fatos históricos. Essa combinação requer, portanto, cuidado no julgamento crítico.

            Cabe ressaltar a significação que o texto adquire a partir de sua própria estruturação. Ela é uma construção que não está determinada essencialmente por uma organização exterior a ela. Suas conexões com a realidade são resultados da interferência semântica da fonte que lhe forneceu os elementos “desarticulados”.

            Essa articulação com o real é uma dimensão mimética da literatura. A representação no texto do fato depende da articulação da imagem nele empregada. É preciso, assim, circunscrever em âmbito adequado o poder de sua representação na narrativa literária, em oposição à representação de recortes de referencialidade histórica. Para tanto,

            A imagem neutraliza os enunciados descritivos da linguagem ordinária e a leitura libera essa função “dissimulada” do discurso: o “poder de redescrição metafórica”, paralelo à função mimética, e que religa o discurso à realidade.

            Desse modo, impõe-se concluir que a irrealidade do que chamamos ficção é uma forma de redescrição do real ¾ tornando-se porém essa última palavra não mais no sentido de realidade empírica (NUNES, 1988: 25).

            A afirmação de que “a imagem neutraliza os enunciados descritivos da linguagem ordinária” ajuda a compreender o destaque que as personagens fictícias vão adquirindo à medida que o seu envolvimento vai colocando-as mais próximas das personagens tidas como reais. Mattos é a própria “descrição do real”, na medida prevista para o “sentido de realidade empírica”.

            O trecho transcrito no início deste ensaio começa com a inserção de Mattos nas ruas do Rio de Janeiro, para no parágrafo seguinte formular indagações que podem ser compartilhadas com o discurso do narrador. Eis, portanto, um caso de “redescrição do real”. A caminhada pelas ruas, aparentemente, pode sugerir um destaque, ou mesmo um enquadramento histórico de situações que seriam vividas pela personagem. Não é uma previsão a ser confirmada pelo que se segue. Do exterior das ruas, Mattos “entra” no seu interior, pois representa fronteiras além das vias urbanas cariocas. A sua realidade está inserida no real ordinário, que não está limitado a alguns acontecimentos circunstanciais. A vida de Mattos tem uma dimensão de existência que amplia consideravelmente a idéia de personagem que se possa depreender da representação, no romance de Rubem Fonseca, de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, Carlos Lacerda.

            Num romance histórico, nos moldes de Agosto, em que a fidelidade aos fatos é expressiva, a distinção entre a representação da personagem histórica e a fictícia se torna necessária. A necessidade advém da indagação da eficácia narrativa desta em detrimento da limitação daquela. Essa diferença, que pode ser comprovada nesse romance de Rubem Fonseca, faz com que o desconhecido que está reservado para ficcionalidade predomine em grau de importância para os fatos narrados. Ao passo que os limites da historicidade estão expressos no próprio perfil das personagens.

            Sobre esse aspecto da personagem, o ensaio de Antonio Candido (1995: 69) é esclarecedor ao afirmar que:

 ... deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras.

             Mattos, Alice, Salete, para ser restrito a apenas três personagens do eixo ficcional, pertencem à parte inventada do romance Agosto. No âmbito histórico, o romance de Rubem Fonseca se resume no mês de agosto de 1954, e seus acontecimentos relativos às dificuldades do governo de Getúlio Vargas, mais os acontecimentos relativos ao passado e presente das personagens fictícias. Sem elas essa narrativa seria apenas uma reconstrução de fatos recentes da história brasileira. Sem elas, a significação seria resultado da coerência entre o narrado e o vivido. Entre o interno, a elaboração textual da história, e o externo ao texto. Portanto, ao se pensar em narrativa histórica, só se pode falar em verossimilhança na relação entre o texto e o vivido que lhe deu origem.

            E a verossimilhança está sendo entendida, aqui, como a coerência interna do texto (CANDIDO, 1967: 76-7). Neste sentido, o ficcional de Agosto surge da articulação bem sucedida do produto do imaginário que envolve a personagem Mattos, com a transposição da realidade vivida nas esferas política e policial do fim do governo de Getúlio Vargas. O principal elo entre ficção e história é desempenhado pelo chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, o Anjo Negro. O comissário investiga um assassinato de um empresário, e aponta inicialmente Gregório como o principal suspeito. Afastada a primeira hipótese de suspeita, indicia, em segundo lugar, o senador Freitas. Estão aí os dois elos que possibilitam o cruzamento entre parte da história de Mattos e parte da história do governo de Getúlio Vargas.

            A ficção, pode-se assim dizer, acaba sendo a entrada para a narrativa da realidade transposta para o romance de Rubem Fonseca. Acaba que a história do então presidente da República fica sendo apresentada, em parte, pela visão dos que não ocupam os altos escalões da administração pública e da política brasileiras. Com isso Rubem Fonseca adota uma estratégia narrativa mais comprometida com a vertente ficcional, pois a investigação do assassinato do empresário está sob o comando do comissário Mattos.

            O inventado supera a história porque a ele é atribuída maior importância na narrativa. O suicídio de Getúlio, que quase encerra o enredo; o atentado a Lacerda, enquanto crime que deve estar sob uma investigação incontestável, acabam se limitando a consequências do forte poder político da época. Com eles, as conspirações também fazem parte de um conjunto significativo no romance. Elas se prestam a uma boa margem de ficcionalidade, uma vez que uma delas se refere ao assassinato do empresário. Como são ações que, por princípio, não podem ser divulgadas, as conspirações podem ser manipuladas de acordo com os interesses do autor. Se não na totalidade, pelo menos em parte, elas admitem a intervenção do imaginário, sem que as alterações, acréscimos, ou mesmo perdas comprometam a eficácia literária do texto.

            Sugestiva, também, uma passagem do romance, aparentemente despretensiosa, em que o narrador apresenta um pensamento de Alzira, filha do presidente Vargas. É um parágrafo importante por revelar uma diferença entre uma imagem individual em confronto com uma imagem coletiva, histórica.

            Alzira pensara que a História redimira seu pai em 1950. Agora, naquele aflitivo agosto de 1954, em que pela primeira vez via o pai como um velho desencantado, um homem sem esperança, sem desejo, sem vontade de lutar; um homem pequeno, frágil, doente, vítima das aleivosias torpes dos inimigos, dos julgamentos ambíguos dos amigos; agora, ela tomava consciência da História como uma estúpida sucessão de acontecimentos aleatórios, um enredo inepto e incompreensível de falsidades, inferências fictícias, ilusões, povoado de fantasmas. Ela agora se perguntava, então deixara de existir aquele outro homem cuja memória guardara tantos anos em seu coração? Era ele um outro fantasma, nunca existira? Esse pensamento lhe foi tão doloroso e insuportável que por momentos ela pensou que não resistiria e morreria de dor, ali, na janela do Palácio do Ingá, em Niterói (1991: 304).

            O pai de Alzira não é mais o Getúlio de 54. Como se pode conviver com um paradoxo dessa natureza? Para ela, ele é verdadeiramente uma idéia cristalizada pela memória; para a história, ele é a imagem da derrota política. Para a filha, positivo, para a política, negativo. Por mais próximo que o presidente pudesse estar da filha, ela já o sente como uma figura da história. De indivíduo político, ele já passa a ser concebido como figura política, o que será resolvido pela imagem política que a própria história cuidaria de inscrever.

            Vargas, portanto, é uma figura da história que serve de contraponto para o romancista. Por mais paradoxal que possa parecer, todos os fatos históricos em torno de sua imagem estão postos para confirmar os limites do relato histórico. Rubem Fonseca, na verdade, criou um romance em que o confronto das duas modalidades de narrativas, literária e histórica, revelam o poder da ficcionalidade dos fatos. O limite entre uma e outra é extremamente impreciso. Talvez Rubem Fonseca esteja advogando o mesmo pensamento de Hayden White, para quem a origem dos fatos não determina se eles são mais históricos ou mais ficcionais; o que está em jogo é a construção narrativa, processo no qual o poder de reorganização da matéria a ser narrada, atribuído, por princípio, a quem constrói a narrativa, inviabiliza qualquer tentativa de definição inquestionável. E Agosto, sob esse julgamento, é uma prova dessa flexibilidade entre ficção e história na narrativa.

 

BIBLIOGRAFIA

 

DE DECCA, Edgar. O QUE É O ROMANCE HISTÓRICO. AGUIAR, Flávio (et alii). GÊNEROS DE FRONTEIRA: CRUZAMENTOS ENTRE O HISTÓRICO E O LITERÁRIO. Xamã, São Paulo, 1997.

CANDIDO, Antonio (et alii). A PERSONAGEM DE FICÇÃO. Perspectiva, São Paulo 1995.

_____. LITERATURA E SOCIEDADE. Nacional, São Paulo, 1967.

FONSECA, Rubem. AGOSTO. 2ed, Companhia das Letras, São Paulo, 1991.

NUNES, Benedito. NARRATIVA HISTÓRICA E NARRATIVA FICCIONal. RIEDEL, Dirce Côrtes (org.). NARRATIVA: FICÇÃO & HISTÓRIA. Imago, Rio de Janeiro, 1988.

WHITE, Hayden. TRÓPICOS DO DISCURSO: ENSAIOS SOBRE A CRÍTICA DA CULTURA. Edusp, São Paulo, 1994.

 

Notas

[1] [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000.

[2] O artigo de Benedito Nunes é uma síntese do pensamento de Paul Ricoeur.