Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho
|
|
|
|
Cápsula
Narrativa[1]
O
Centro de Hermenêutica do presente apresentou recentemente, como fruto de
trabalhos com História Oral, o conceito de Cápsula Narrativa. A criação desse
conceito se deu em função das dificuldades que os oralista encontravam para
efetuarem o processo de transcriação, decorrente da prática de um tipo de
História Oral que tem em José Carlos Sebe Bom Meihy seu principal mentor. Na
fase de transcriação o pesquisador tem que transformar um texto transcrito do
código oral para o escrito, em texto literário, preservando o núcleo central da
entrevista, de forma tal que no momento da conferência o colaborador se
reconheça no texto final. Antes
da criação da Cápsula Narrativa, o oralista tinha que construir o eixo
narrativo à revelia do colaborador, e o trabalho transcriativo era mais árduo,
além de que no resultado final se percebe claramente as intervenções do
entrevistador. A
primeira vez que o conceito de Cápsula narrativa aparece é no Caderno de
Criação (Caldas, 1998). No artigo intitulado “Seis Ensaios Sobre História
Oral”, Caldas define o conceito e versa sobre sua utilização. Num
Caderno de Criação (1999c), o criador da técnica reabre o debate, na busca de
precisar melhor o conceito. Percebemos que ocorre uma ampliação das
propriedades da cápsula, e em alguns momentos a cápsula se confunde com a
narrativa, em outra palavra, ocorre um hiper-dimensionamento das propriedades a
ela atribuídas. Não é a Cápsula que nos coloca em contato com o presente, e sim
as narrativas em si mesmas que, no nosso modo de ver, é a matéria em que
queremos atuar. Para
delimitar melhor a nossa posição, gostaríamos de começar demarcando os pontos
de discordância em relação ao que até aqui foi estabelecido: primeiro, a
Cápsula Narrativa é um instrumento facilitador do trabalho transcriativo; não
é, absolutamente, um instrumento que formate ou não o colaborador; segundo, a
utilização da cápsula narrativa não é garantia de imparcialidade e, terceiro, a
utilização da cápsula não rompe, de forma alguma com o tipo de História Oral
desenvolvido por Meihy. Um
dos argumentos presentes, ou subentendidos, na definição da cápsula narrativa,
é o de que a utilização da mesma assegura ao oralista a não formatação do
colaborador, ou seja, assegura que o colaborador não seja rotulado de negro,
homossexual, hanseniano, marginal, etc., rótulos usuais em nossa sociedade como
forma de assegurar a exclusão social. O que irá determinar a não rotulação do
narrador é a postura ética que o oralista deve assumir, não para com o outro,
no caso o entrevistado, mas para com ele mesmo. Se partirmos do pressuposto de
que todo oralista deve ser ácido para com o estabelecido, sua acidez deve começar
com esse tipo de prática. O entrevistador não pode adjetivar, rotular ou impor
qualquer situação ao narrador. Para termos uma noção do que estamos nos
referindo iremos fornecer um exemplo: ao entrevistar um portador da hanseníase
supomos que o mesmo é vítima de discriminação e preconceito, no entanto, se o
mesmo não narra nenhuma situação que confirme tal hipótese, em momento algum
podemos afirmar ou falar em discriminação, pois se assim o fizermos estaremos praticando
a discriminação ao qual queremos eliminar. No
entanto, temos que ter sempre presente que não é a utilização adequada da
cápsula que assegurará este comportamento. O oralista pode muito bem utilizar a
cápsula e ao término dela, formular perguntas que criarão os rótulos que tanto
combatemos. Uma pergunta fora do contexto narrativo é suficiente para quebrar
esse tipo de argumentação. Enfim, só a ética do oralista é que garante uma
postura não discriminatória. Quanto
à questão da imparcialidade, percebemos que se trata de um ranço positivista
que ainda persegue os oralistas em geral e, especificamente, os membros do
Centro de Hermenêutica do Presente. Ranço positivista perceptível na sutil
crença que a Cápsula Narrativa pode servir de “campo de força ou redoma de
proteção” aos verdadeiros fluxos narrativos do colaborador. A construção do
pensamento, como apresentado no Caderno de Criação (1999c), induz o leitor a
pensar que existe um fluxo discursivo melhor que outro, a partir do momento que
for utilizada a Cápsula Narrativa. Essa é a ilusão em que cai todo o cientista,
afirmando que existe uma forma, uma chave, para a boa “ciência”, e é assim que
é apresentada o referido instrumental. A intervenção não deve ser motivo de
vergonha, nem deve ser camuflada, afinal em qualquer tipo de pesquisa, o
“cientista” interfere, de uma forma ou de outra, no “objeto” pesquisado, aliás
essa afirmação já não se constitui em novidade, na realidade tomamos de
empréstimo de Bachelard (sd.). A questão que colocamos é a forma como ocorrerá
essa intervenção. É
evidente que em trabalhos de História Oral, sempre ocorrerá um confronto entre
o eu e o outro, mas é inevitável a intervenção, quer com perguntas ou com a
simples presença. Sem a presença do oralista, seria possível qualquer
construção discursiva? Para nós do Centro de Hermenêutica esse tipo de problema
não deveria, se quer, existir, primeiro porque não acreditamos na existência de
objeto independente do sujeito e de uma prática social; em segundo trabalhamos
com discursos e esses não fazem sentido em si, não têm cor nem cheiro, são
fluxos, que só existem em uma rede discursiva. Os discursos não se reportam a
algo concreto, não falam de uma história ou de um acontecimento, são momentos
discursivos cheios de presente, que é o magma que iremos trabalhar, não para
reconstituir algo do passado, mais para irmos além, para construirmos algo
novo, não num sentido evolutivo que essa afirmação pode adquirir, mas no
sentido de novo fluxo discursivo. Derivamos
então que o elemento que nos coloca em contato com o presente, que queremos
diluir, é constituído principalmente por discursos, e a via de acesso a ele é
as entrevistas, no entanto temos que ter sempre presente que teremos os
discursos com ou sem a utilização da Cápsula Narrativa, e independente da forma
como os constituirmos, serão sempre fluxos, estarão sempre inseridos em todos
os outros fluxos preexistentes. Essa forma de trabalhar as entrevistas não nos
afasta, nem marca um divisor entre o Centro de Hermenêutica do Presente e o
tipo de História Oral desenvolvido por Meihy. Muito pelo contrário, aprofunda
os laços entre nós e ele. Afinal quem constitui as entrevistas enquanto
subjetividade, enquanto discurso desvinculado da prática da História
tradicional é exatamente Meihy. Se
observarmos os trabalhos desenvolvidos por essa vertente, (Colônia
Brasilianista (1990), Canto de Morte Kaiowá (1991),Vozes em Marcha (1998)),
iremos perceber que, ao assumir a intervenção do oralista no texto, o
pesquisador dessacraliza as entrevistas, transformando-as em texto literário.
No Manual de História Oral essa tendência já é evidente, quando o autor defende
a utilização de técnicas da tradução: transcriação; e da literatura: teatro de
linguagem, além de garantir a subjetividade do colaborador: “A história oral de
vida é muito mais subjetiva que objetiva” (Meihy, 1996: 35), ou ainda: “A
questão da verdade neste ramo de história oral depende exclusivamente de quem dá
o depoimento” (1996: 35). É inegável que avançamos muito, não porque criamos a
Cápsula Narrativa, mas porque avançamos nas teorias da análise do discurso e,
principalmente, porque assumimos uma postura ácida diante do mundo, do
estabelecido. Avançamos
em decorrência dessa postura diante do mundo, mas ela antecede a utilização da
Cápsula Narrativa, e se ainda resta alguma dúvida, basta analisar o livro “Nas
Águas do Texto: Palavra, Experiência e Leitura em História Oral”, nele
encontraremos um brilhante trabalho em História Oral que não utilizou o
conceito de Cápsula Narrativa, e não fica devendo absolutamente nada em termos
de criatividade. Criatividade que transforma o discurso de Chico Paula em
descortinador do mundo, não só do mundo Cuniã, ou Rondônia, mas de toda uma
galáxia cultural que é a ocidentalidade. Apesar
de nossas observações, gostaríamos de evidenciar o papel que a Cápsula
Narrativa trouxe aos oralistas, facilitando seu trabalho e assegurando o
controle da construção do eixo narrativo ao colaborador. Ela será sempre um
instrumento eficazmente facilitador, e só isso. BACHELARD,
Gaston. A EPISTEMOLOGIA. Edições 70, Lisboa, sd. BARTHES,
Roland. O PRAZER DO TEXTO. Perspectiva, São Paulo, 1977. __________.
S/Z. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1992. CALDAS,
Alberto Lins. INTERPRETAÇÃO E REALIDADE. Caderno de Criação, UFRO/Dep.
de História/CEI, n.º 13, ano IV, Porto Velho, setembro, 1997. __________.
SEIS ENSAIOS DE HISTÓRIA ORAL. Caderno de Criação: 38/58, UFRO/Centro de
Hermenêutica do Presente, nº15, ano V, Porto Velho, junho, 1998. __________.
ORALIDADE, TEXTO E HISTÓRIA. Loyola, São Paulo, 1999a. __________.
HISTÓRIA E VIRTUALIDADE. Caderno de Criação: 06/12, UFRO/Centro de
Hermenêutica do Presente, nº18, ano VI, Porto Velho, junho, 1999b. __________.
A NOÇÃO DE CAPSULA NARRATIVA. Caderno de Criação: 53/59, UFRO/Centro de
Hermenêutica do Presente, nº20, ano VI, Porto Velho, outubro, 1999c __________.
NAS ÁGUAS DO TEXTO: PALAVRA, EXPERÊNCIA E LEITURA EM HISTÓRIA ORAL.
(DIGITADO), Porto Velho, 2000. CALDAS,
Fabíola Lins. A CIDADE DOS EXCLUÍDOS: UM PROJETO EM HISTÓRIA ORAL. Caderno
de Criação: 14/22, UFRO/Centro de Hermenêutica do Presente, nº 20, ano VI,
outubro, 1999. FOUCAULT,
Michel. A ORDEM DO DISCURSO. Loyola, São Paulo, 1999. MEIHY,
José Carlos Sebe Bom. A COLÔNIA BRASILIANISTA. Nova Stella, São Paulo,
1990. __________.
CANTO DE MORTE KAIOWÁ. Loyola, São Paulo, 1991. __________.
MANUAL DE HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1996a. __________.
(org.), VOZES DA MARCHA PELA TERRA. Edições Loyola, São Paulo, 1998. ORLANDI, Eni Puccinelli. AS FORMAS DO SILÊNCIO. UNICAMP, Campinas, 1995.
Nota
[1] [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000. |
|