Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho




 




 Louis Riel – "O Tiradentes Canadense"[1]

 
Miguel Nenevé

             No Canadá, o conceito do Oeste como “protesto” é perceptível na Literatura e História Canadense e parece que está firmemente estabelecida na consciência pública. A resistência das Pradarias do Oeste contra a subordinação política ao Governo Central foi registrada por vários historiadores. Os primeiros representantes de uma perspectiva do Oeste e das Pradarias saíram do comércio de pele. Estes eram os “Metis” ou mestiços, descendentes de Europeus – principalmente Franceses – que tinham casado com mulheres nativas. Eles viam a si próprios como porta-vozes da região e revelavam aspiração por um controle político da região. Um líder muito importante deste povo foi Louis Riel que liderou resistência contra a exploração que o Leste (governo central) fazia na região. Riel foi enforcado “por traição” pelo governo central do Canadá em 1885. Um poeta brasileiro da época iria chamá-lo de "O Tiradentes Brasileiro". O exemplo de Riel permanece e é uma característica importante da identidade regional. Neste artigo eu me proponho a explorar a autodeterminação do Oeste e a resistência à submissão como herança dos Metis, representados por Louis Riel. É importante lembrar que neste sentido de regionalismo quando se fala no Oeste se exclui a província de British Colúmbia que fica no extremo Oeste do Canadá. Esta província tem uma história distinta das outras três províncias. Assim ao mencionarmos o Oeste estaremos nos referindo somente às províncias de Alberta, Saskatchewan e Manitoba, principalmente esta última.

            A província de Manitoba foi explorada primeiramente ao longo da rota de seus grandes rios por comerciantes de pele. Como todo o oeste canadense, ela tem uma história de protesto e disposição para resistir à opressão e à dependência. Esta característica estava presente na região até mesmo antes da anexação da província ao domínio do Canadá em 1870. George Melnink sugere que “a história dos descontentes no Oeste começou na época do comércio de pele no final do século dezessete quando os recursos do Oeste estavam sendo explorados pelo mercado europeu. Em 1670, Charles II cedeu à Companhia Hudson’s Bay o controle de toda a terra banhada pelos rios que corriam pela bacia. A ocupação branca na região era transitória e ligada somente ao comércio de pele e a postos de venda que eram estabelecidos rapidamente pela Companhia Hudson’s Bay. Os índios Chepewyan e Crees que tinham vivido na região por milhares de anos, logo se tornaram instrumentos importantes no comércio de pele, trabalhando como pessoas que capturavam os animais. Em 1763 Pierre Gaultier de la Verendrye alcançou a confluência dos rios Assiniboine e Red, estabelecendo um posto de comércio no local onde hoje está Winnipeg (que ficou conhecida dos brasileiros por causa dos últimos "Jogos Panamericanos"). Nas décadas seguintes, os comerciantes de pele franceses e seus índios aliados tornar-se-iam os habitantes mais importantes da região das pradarias ajudando a formar as características da região. Estes mestiços descendentes de caçadores brancos e mulheres indígenas, caçavam búfalo das pradarias e forneciam a carne de búfalo (mais especificamente “pemican”) para os comerciantes. Em 1812 o Lord Selkirk da Companhia Hudson's Bay trouxe colonizadores escoceses para o vale do Rio Red. Portanto os colonizadores escoceses também contribuíram para o desenvolvimento de uma etnia mista através do casamento com indígenas. Estas pessoas de sangue misto levavam uma vida independente e acreditavam que eles tinham autoridade sobre a região. O seu futuro, no entanto, estava nas mãos do Canadá Central.

            Assim que o Sul de Manitoba se desenvolvia em um importante centro de comércio de pele e tornava-se o centro de transporte entre o Leste e o Oeste canadenses, as forças colonizadoras fora da região estavam observando o seu potencial para explorações futuras. Em 1821 a Companhia Hudson's Bay absorveu a Companhia Northwest. Antes da absorção, a competição entre as duas companhias provocou muita tensão entre os Métis. O comércio de pele permaneceu, no entanto, vitalmente importante para a região e os Métis continuaram a desempenhar um papel importante como caçadores de búfalo fornecendo comida para a região. Os Metis tinham orgulho de sua terra e consideravam-se os verdadeiros herdeiros dela. O interesse do leste canadense no Oeste, no entanto, aumentava. Na década de 1840 George Brown, o dono do jornal Toronto Globe, um periódico que representava o interesse da elite canadense conduziu uma campanha para anexar as terras da companhia Hudson’s Bay ao Canadá. Muitos políticos interessados nos negócios Ocidentais assumiram a causa da expansão para o Oeste.

            Em 1867, a Confederação ou Domínio do Canadá, foi estabelecido pelo “British North America Act.” A federação centralizada incluía a província de Canadá (Ontario e Quebec), Nova Scotia, New Brunswick, e fazia um acordo para a inclusão dos territórios restantes que pertenciam à América do Norte sob o controle britânico. O Oeste estava destinado a se ligar ao Canadá central que em 1868 comprara as terras que pertenciam à companhia Hudson. Em 1869 a companhia transferiu seu território ao domínio do Canadá sem informar as pessoas que viviam na área. O governo canadense não deu atenção aos Métis; seu interesse principal era o planejamento da estrada de ferro transcontinental. Outra preocupação do governo era a colonização da área com a intenção de formar um Canadá totalmente britânico de costa à costa. Os indígenas e Métis, que partilhavam de um estilo de vida semelhante e falavam a mesma língua, reclamavam os direitos territoriais como povos aborígenes. No entanto, uma vez que os Métis, diferentemente de seus “primos índios”, não tinham direito legal sobre as terras (reservas), a sua situação tornava-s ainda pior (Margaret Laurence, 140).

            Em dezembro de 1869 o líder Métis Louis Riel, amplamente apoiado pelos povos do Rio Red, conduziu uma resistência contra o governo canadense, estabelecendo o corpo representativo dos Métis. Este governo era capaz de forçar o governo central a negociar. Através do “Manitoba Act” resultante destas negociações, os Métis receberam garantias lingüísticas (permissão para falar francês, pôr exemplo) culturais e educacionais e a província de Manitoba foi criada em 1870. O nome “Manitoba” foi escolhido pelo próprio Louis Riel e significa o “espírito” (Manito) "que fala" ou, em outra versão, “estreito do espírito”. Os colonizadores do leste começaram a chegar à província, que experimentava um crescimento rápido na década de 1870. Em 1873 a famosa "Polícia Montada do Noroeste" foi fundada a fim de servir como um instrumento de controle federal. A polícia montada caçava comerciantes americanos e policiava os índios e Métis. Tendo vivido por milhares de anos sem polícia, os índios não viam razão para força policial na área. Para os índios e Métis, a Polícia montada representava a força colonizadora e portanto os opressores. Em muitos casos, a presença da polícia que deveria significar "a garantia da ordem" era apenas fonte de opressão e agitação. Além disso os índios estavam perdendo o direito às terras através de muitos tratados e eram enviados às reservas. Em 1880 a estrada de ferro chamada "Canadian Pacific Railway" foi aberta. O ministro dos transportes, Charles Tupper, revelando que não tinha nenhuma preocupação por Manitoba, declarou que os interesses de Manitoba deveriam ser sacrificados pelos interesses do Canadá. As autoridades políticas viam o oeste canadense como um "local vazio", disponível para qualquer empreendimento. Não havia preocupação, da parte das autoridades britânico-canadenses, com os Métis e os índios que estavam passando por uma condição econômica muito ruim, passando fome com o fim da caça ao búfalo nos anos de 1880. Quando ameaçado pelo grande número de colonizados, os Méis pediram ajuda para obter sementes de cereais, mas em vez de receber ajuda tiveram que pagar pôr sua própria terra. A fim de lutar contra as injustiças e a situação difícil, Louis Riel, que tinha conduzido a resistência em 1870, foi chamado dos Estados Unidos, onde ele vivia desde 1873, depois do acordo que criou a província de Manitoba.

            Em 1885 Louis Riel foi a Saskatchewan para ajudar os povos da região em sua luta contra o governo central canadense. Em março ele estabeleceu seu próprio governo na região. Dois meses depois os Métis foram derrotados pelas forças centrais que usavam todo o poder do exército. Louis Riel foi preso. Ele foi submetido a diversos tipos de opressão e humilhação, que às vezes, totalmente estressado, parecia estar louco. Daí o fato de algumas pessoas ligadas ao governo central divulgarem que Riel era um visionário louco. Em 16 de novembro de 1885 depois de passar por vários tribunais e julgamentos, Riel foi enforcado "por traição" sob as ordens do primeiro ministro John Alexander Macdonald. Os Métis perderam sua terra e alguns revolucionários foram condenados à prisão perpétua. Louis Riel foi considerado pelas autoridades, como louco, ignorante, violento, entre outras qualificações negativas. Isso reflete bem a teoria de Edward Said que ao discutir o imperialismo europeu afirma que os colonizadores e opressores vêem a resistência ao colonialismo e ao governo central como "trabalho de doidos milenários e assim pôr diante" (CI, 198). O Brasil está cheio de exemplos deste tipo que não convém citar aqui. O líder canadense Métis, odiado pelo governo central recebeu, no entanto, a simpatia de muitos habitantes do oeste e mesmo do leste canadense. Douglas Owran relata que um ministro presbiteriano marchava com a tropa para prender Riel e pregava, não o mal da rebelião, mas sim os erros do governo canadense. O ministro dizia que os Métis tinham sido roubados por comerciantes sem princípio, pauperizados por caridades e corrompidos pelos vícios canadenses (Melnyk, 92).

            Não muito tempo depois da revolta de 1885, os Métis foram suplantados por milhares de americanos e europeus na região, e o comércio de pele da região acabou. Após a rebelião, a condição dos Métis era deplorável. Sem terra para cultivar, muitos deles se retiraram da região para terras marginais. Com o passar do tempo a sua história começou a ser revista e recontada. Riel que era tido como louco ou revolucionário violento, começou a ser visto como um herói a quem o Oeste canadense deve muito.

            A escritora canadense Margaret Laurence, nascida em Manitoba, muitas vezes revela sua simpatia pelos Métis que sofreram profunda injustiça. Ela se refere a estes povos como seus ancestrais porque ela nasceu na sua terra, "numa terra que eles tinham habitado, formado e investido como seus espíritos" (M. Laurence: carta para Al Purdy em 12 de junho de 1974). Em seus romances, especialmente em The Diviners eles aparecem como vítimas do governo canadense-britâncio, que considerava a cultura britânica como superior à dos Métis. A história dos Métis no Oeste tinha ajudado a caracterizar os povos da região como inimigos da opressão e da colonização.

            Aritha Van Herk, uma escritora de Alberta também tem usado sua ficção para re-escrever a história dos Métis e de Louis Riel em particular. Em um de seus contos, "There si nothing to do but Die" (Não há nada a fazer senão morrer) Van Herk apresenta um diálogo (supostamente no céu) entre Louis Riel e Joana D'Arc. Neste diálogo o personagem Riel conta um pouco de sua história e a história dos Métis, sob sua perspectiva isto é sob a perspectiva dos oprimidos. Ele demonstra, entre outras coisas, como a cultura dos Métis era tida como inferior pelos britânicos, dizendo que um dos motivos de ser enforcado foi por usar mocassim.

            Muitos outros escritores canadenses do século vinte se propuseram a rever a história de Riel. Interessante é perceber que no Brasil mesmo houve quem escrevesse sobre este revolucionário logo após a sua morte. Matias Carvalho, um poeta carioca do final do século dezenove fez poemas em homenagem a Riel. Estes poemas foram traduzidos para o Francês e publicados quase cem anos depois em Quebec. Isto significa que a vida e os escritos de e sobre Riel estão sendo revisitados e revistos por estudiosos atuais.

            A influência de Riel é perceptível também na tradição do Oeste Canadense para se mobilizar contra as injustiças e opressões. É importante lembrar que depois de 1885 a estrutura social do Oeste Canadense desenvolveu-se em uma sociedade de classes. Os agricultores comuns e os trabalhadores formavam a maioria da população, mas recebiam os benefícios mínimos tendo pouco poder. Os agricultores reclamavam que enquanto os preços das mercadorias subiam, o preço dos seus produtos eram desprotegidos. Enquanto os agricultores tomavam sua própria iniciativa para exigir tratamento justo, os trabalhadores se organizavam-se em sindicatos a fim de lutar pelos benefícios. Assim se formou a OBU - One Big Union, ou Grande Sindicato Único, que influenciou muito na Greve Geral de Winnipeg em 1919 - a maior retirada de trabalhadores em toda a América.

            Outro movimento que tem raízes semelhantes foi o "Social Gospel" ou Evangelho Social. Ele apareceu dentro da Igreja presbiteriana nas primeiras décadas do século vinte. Referindo-se a ao Social Gospel, Matthews afirma que "a noção que Jesus e a primeira igreja eram os primeiros socialistas, tinham papel importante em legitimar o socialismo." (66). O movimento combinava a moralidade cristã com a justiça social e lutava para o fim da exploração de classe e por um sistema que lutaria contra a pobreza. Os líderes religiosos pregavam que o amor de Deus somente poderia ser manifestado no amor ao próximo ou na política.

            O CCF - Cooperative Commonwealth Federation - ou Federação das Cooperativas Comunitárias - criada sob a orientação de Woodsworth foi mais radical que o "Crédito Social". O movimento propunha uma legislação mais favorável aos trabalhadores que as encontradas em qualquer parte do país. T.C. Douglas defendia a idéia de que a fim de combater o capitalismo, os agricultores deveriam organizar cooperativas. O CCF deu origem mais tarde ao NDP - New Democratic Party - que é o partido de centro esquerda no Canadá até hoje.

            É importante lembrar que todos estes movimentos receberam a influência de Louis Riel e das lutas dos Métis no Oeste canadense contra as forças centrais. Quando uma forma de luta contra as forças desaparecia, outra surgia, mantendo a tradição do Oeste como insubmisso à opressão e à injustiça. Portanto, como Tiradentes no Brasil, Louis Riel no Canadá é reverenciado como um herói que não se curva às injustiças e lutas contra as forças opressoras. Riel também deixou escritos que, sem serem considerados grandes obras, revelam que tinha um ideal e tinha princípios de liberdade. Hoje, mais do que nunca, se pesquisa tudo o que envolve sua luta, sua vida e seus escritos.

 

BIBLIOGRAFIA

 

LAURENCE, Margaret. ARQUIVOS DE MARGARET LAURENCE. Scott Library, York University, Toronto, 1991.

MELNINK, George, RIEL TO REFORM : A HISTORY OF PROTEST IN WESTERN CANADA, Saskatoon, 1992.

SAID, Edward. ORIENTALISM. N. York, Vintage Books, 1979.

__________. CULTURE AND IMPERIALISM. N York, Vintage Books, 1994.

VAN HERK, Aritha. THERE IS NOTHING TO DO BUT DIE. IMAGES OF LOUIS RIEL IN CANADIAN FICTION. Saskatoon, 1991


Nota

[1] [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000