Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho
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Entre
a civilização do mal-estar e a ilusão de um futuro
Pretendemos
rever os paradigmas que sustentam a ideia de um "desenvolvimento"
proporcionado pela civilização. Colocaremos em discussão o pensamento de Freud
e sua crítica à cultura, elaborada com mais vigor em Die Zukunft einer Illusion
(1927) e Das Unbehagen in der Kultur (1930). Como contraponto, utilizaremos a
"visão social" de Nietzsche, especialmente a terceira parte de Also
Sprach Zarathustra (1884). Resgataremos
ainda, nesse exercício crítico, o pensamento de três autores não-acadêmicos.
Tratam-se Mircea Eliade, em The Myth of the Eternal Return or Cosmos and
History (1954), de Julius Evola, e sua Rivolta Contro il Mondo Moderno (1934),
e, finalmente, René Guénon, autor de La Crise du Monde Moderne (1927) e Le
Règne de la Quantité et les Signes des Temps (1945). Utilizando
esses autores, pretendemos dar continuidade ao labor crítico dos mesmos e
questionar o direcionamento que a civilização ocidental contemporânea tem
privilegiado, com especial atenção ao fetichismo da quantificação.
Verificar-se-á a existência de um paradoxo entre o desenvolvimento material,
quantitativamente mensurável, e a miséria afetivo-emocional, qualitativamente
verificável, que se descortina ante o olhar do homem contemporâneo. A vã
expectativa de que os males para os humanos cessariam ante o progresso da
civilização se mostrou frustrada e hoje, mais que nunca, o homem tornou veraz o
dito latino segundo o qual homo homini lupus. O
paradigma que está por trás desta concepção é aquele segundo o qual somos
governados por forças instintuais e, sobretudo, inconscientes que nos remete
aos conflitos que, começando com o enfrentamento com os pais, reverberam a
posteriori nos conflitos com as autoridades e, em última análise, com a própria
civilização. Será nessa direção que nossa conferência vai abordar o grande
mistério do sentido da existência do homem e sua inscrição na cultura. De modo
que a questão é desde logo exposta: entre a natureza e a cultura, onde se
inscreve a possibilidade de desenvolvimento humano? Esta conferência antecipa tal preocupação
e sugere algumas linhas de reflexão. O MAL-ESTAR DO FUTURO E A ILUSÃO DA
CIVILIZAÇÃO A questão fundamental da existência humana pode ser
sintetizada em uma expressão: a busca da felicidade. Este é um objetivo implícito
e precípuo na vida de todas as pessoas. Estamos neste mundo, neste vale de
lágrimas, envoltos em um entramado de impedimentos para a consumação dos
prazeres mais simples e naturais. Entretanto, continuamos cultivando nossos
sonhos de felicidade. Todas as grandes obras produzidas pelo homem têm como
objetivo proporcionar algum tipo de felicidade. Porém a história da humanidade
tem nos ensinado que este bem é o mais raro de todos. A felicidade, essa
sensação passageira de plenitude, ocorre (quando ocorre) de modo fugaz, porque
felicidade é algo extremamente volátil. A história do homem sobre a face da terra é testemunho
da violência do homem contra o homem. Desde os primórdios da civilização — que
se teria iniciado em uma época proto-histórica — até a idade contemporânea,
especialmente após as revoluções industrial e tecnológica, a humanidade tem
conhecido avanços culturais nunca dantes imaginado. O avanço e as conquistas da civilização, em suas
múltiplas diversidades, nunca proporcionaram ao homem um maior bem-estar e
conforto interior. Muito pelo contrário, o que temos assistido é um aumento do
grau de infelicidade, de desamparo, de "desajustamento" que é cada
vez mais característico do chamado "homem moderno". Estamos, pois, diante de um paradoxo. Se, por um lado,
dominamos uma tecnologia que objetivamente nos proporciona conforto e uma espécie
de satisfação material imediata, por outro lado, convivemos com um
"mal-estar" intrínseco à própria civilização. Segundo a Organização
Mundial de Saúde, existem atualmente cerca de 340 milhões de pessoas sofrendo
depressão. Isso apenas nos casos diagnosticados! Imaginem que apenas um caso em
cada três são diagnosticados. Significa que mais de um bilhão de pessoas
padecem desse verdadeiro mal de fim-de-século. Não é um quadro dos mais
promissores para o devir humano. Estamos diante de uma civilização doentia. O que se passa com a civilização? Será a doença
afetivo-emocional o ônus da cultura? E o bônus da cultura, qual será (se é que
tem algum)? Quais os objetivos da civilização, senão proporcionar felicidade à
humanidade? Os bens materiais produzem felicidade perene? Os prazeres corporais
podem nos proporcionar felicidade? Enfim, qual o sentido último da civilização?
Estas são questões difíceis de responder de modo unívoco. Os filósofos têm se
debruçado sobre o tema desde eras pretéritas. Um dos mais célebres filósofos de
todos os tempos, Heráclito de Éfeso, já nos ensinava que a felicidade não está
relacionada aos bens materiais ou aos prazeres carnais. Diz ele, no fragmento
4: "(Se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo), deveríamos chamar
felizes os bois quando encontrassem capim para comer". Portanto, não são os bens materiais que podem nos
proporcionar felicidade. Há algo de intangível, de impossível, nos sonhos de
felicidade do ser humano. E então, perguntamo-nos, vivemos para quê? Qual o
sentido do nosso existir? Essas preocupações exigiam respostas que, séculos
após séculos, diversos amantes da sabedoria procuraram responder. Nessa busca,
o príncipe Sidarta Gautama revelou que o mundo se resume a quatro nobres
verdades: tudo é dor; a dor nasce do desejo; a dor se extingue com a extinção
do desejo; para se obter a cessação do desejo, é preciso seguir o caminho dos
oito passos (correção de opiniões, intenções, motivos, palavras, ocupação,
esforço, pensamento e meditação). Mais perto de nós, Platão nos ensinou na sua Sétima
Carta, que não haverá remédio para os males que afligem a humanidade, enquanto
os sábios não governarem a terra ou que os governantes não possuírem a
sabedoria. Dado que o amor à sabedoria não é encontrado entre os governantes,
nem os verdadeiros sábios conseguem ser eleitos para os cargos mais
importantes, somos levados à conclusão que a felicidade não é fácil de ser
conquistada. Para explicar essa nossa inquietude, esse mal-estar congênito e
intrínseco à civilização, vamos escutar as palavras inventivas de Sigmund
Freud, o criador da Psicanálise. Sua obra extensa e profunda, parte de um
pressuposto radical: não podemos ser felizes. Por que? Porque nossos desejos
mais naturais, mais primitivos, mais viscerais, são proibidos porque vão de
encontro aos objetivos da civilização. Em duas obras, Freud explica a mecânica
por assim dizer dessa "doença cultural". Em O Futuro de Uma Ilusão e
em O Mal-Estar na Civilização, Freud estabelece os princípios teóricos da nossa
permanente infelicidade. Segundo este autor, nós, os seres humanos, não somos
governados pela razão, mas sim por forças instintuais, obscuras, que nos são
desconhecidas porque são frutos do nosso inconsciente. Esta descoberta provoca
o mesmo sentimento de desamparo, quanto as descobertas de que a terra não era o
centro do universo, e de que os homens são parentes dos macacos. Para termos uma ideia do que é felicidade vale ressalta que o amor
sexual proporciona "nossa mais intensa experiência de uma transbordante
sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca de
felicidade." Entretanto, a felicidade não pode ser realizada e, por causa
dessa infelicidade culturalmente congênita, temos que lutar contra o mundo pois
"o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por
nossa desgraça". Daí que "o impulso de liberdade, portanto, é
dirigido contra formas e exigências específica da civilização ou contra a
civilização em geral". O certo é que, para Freud, o homem é inimigo da
civilização. Isto é o paradigma mais radical já enunciado por um pensador. Por
quê? Porque toda civilização se ergue sobre a coerção e sobre a renúncia aos
instintos. Sabemos que em todos os indivíduos, mesmo naqueles mais cultos e
mais mansos, sobrevivem impulsos destrutivos e anti-sociais. Em algumas pessoas
tais tendências são excessivamente fortes e determinam o repertório do
comportamento social (ou melhor, anti-social) do indivíduo. Daí porque a
sociedade deve tomar medidas para que a exigência de satisfação dos instintos
mais primitivos de tais indivíduos não ponham em perigo o conjunto da
sociedade. Tal visão se baseia na sua teoria das pulsões. Estas
colocam em evidência exigências instintuais que reivindicam pura e simplesmente
a satisfação total de todos os seus desejos. Ora, sabemos que o homem inserido
na cultura não pode usufruir do gozo pleno e irrestrito dos seus instintos.
Para defender-se dessa exigência de gozo, a sociedade elaborou as normas e
criou instituições para garantir as proibições que a cultura impõe aos
indivíduos. Acredita-se que sem controle social, os homens reunidos em grandes
grupos tornam-se incontroláveis e por isso precisam ser liderados por uma
minoria. Neste sentido, as massas não podem prescindir de serem dirigidas por
uma minoria como também deve existir uma coerção ao trabalho porque os homens
não gostam de trabalhar e só o fazem por força da necessidade. Nenhuma sociedade produziu um homem que
espontaneamente gostasse de trabalhar e que abdicasse de satisfazer seus
instintos mais primitivos. Existem indivíduos que são prisioneiros dos seus
desejos instintuais, de tal maneira que serão sempre pessoas anti-sociais. Esse
pessimismo freudiano demonstra que Freud não compartilhava da visão
romântico-messiânica do comunismo porque o marxismo parte de um pressuposto
equivocado: a de que o homem, liberto das relações de classe, se tornaria um
altruísta, generoso, bondoso, como que um retorno à sua condição de "bom
selvagem". Freud afirma, em O Mal-Estar na Civilização, que o ser humano possui
uma "inclinação para a agressão" e que tal inclinação "constitui
o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo" de tal
forma que, para impedir transtornos maiores, a civilização deve gastar muita
energia para conter a agressividade humana. Freud afirma também, em O Futuro de
uma Ilusão, que existe uma "mania destrutiva dos participantes da civilização".
Assim, os instintos mais "naturais" no ser humano estão fadados a
permanecer sob o tacão das normas ditas civilizadas. Desse modo, origina-se a
frustração dos instintos que, impedidos de exercer a plenitude dos seus gozos,
procuram sabotar as proibições impostas pela civilização. Desde os primórdios da civilização, existe um
repertório de privações dos prazeres realizada pelas proibições culturais. Isso
faz renascer em cada geração uma espécie de revolta contra a civilização. Os
desejos instintuais mais violentamente reprimidos são o canibalismo, o incesto
e o homicídio. Desses três desejos instintuais, só o canibalismo parece ter
sido proscrito em todo o mundo, ao passo que o homicídio acompanha a história
da humanidade desde sempre, e quanto ao incesto, diz Freud: "A intensidade
dos desejos incestuosos ainda pode ser detectada por detrás da proibição contra
eles". Os instintos que reclamam satisfação sexual são recalcados pela
sociedade. É aqui que a religião desempenha importante papel para a civilização
posto que contribuiu para "domar" o instinto sexual, embora
felizmente não de modo total. A frustração decorrente das proibições e interdições
culturais, a maioria de caráter sexual, proporcionou a descoberta de que
"um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e
infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se
libertar", afirma Freud. Para combater paixões intensas de caráter
instintual, foram proibidos o incesto e o homicídio. A interdição do assassínio
e do incesto deram origem ao totemismo, arcabouço das religiões. Freud
questiona como é possível os homens permanecerem submetidos às suas paixões e
exigências instintuais. A substituição da religião pela razão tem sido tentada,
mas sem sucesso. E, ao mesmo tempo, assistimos ao refortalecimento dos
sentimentos religiosos na neoliberal e pós-moderna sociedade ocidental. Freud
explica: "o efeito das consolações religiosas pode ser assemelhado ao de
um narcótico". O paradoxo do ser humano é que ele é governado por
forças que desconhece. Assim, "o intelecto do homem não tem poder, em
comparação com sua vida instintual". Nossa razão é limitada pelo poder dos
nossos desejos inconscientes. Somos prisioneiros, por assim dizer, das
reivindicações de prazer que nossos instintos reclamam. Mas no combate entre o
instinto e a razão, esta apesar de mais fraca termina por impor uma certa ordem
porque "a voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue
uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém
êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito
do futuro da humanidade", garante Freud. Para impedir a plenitude do princípio do prazer,
existe um outro princípio, o da realidade, que é o guardião de todos os valores
sociais e culturais. Isso porque existe um perigo nos prazeres instintuais. Eis
o alerta que Freud nos traz em O Mal-Estar na Civilização: O sentimento de felicidade derivado da
satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é
incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que
já foi domado. Eis aqui o ponto central da nossa reflexão. A
felicidade possível, a quota de possibilidade real de prazer que cada um de nós
pode retirar do mundo, depende da força que podemos utilizar para modificar o
mundo e o modelar de acordo com nossos desejos. É aqui que o pensamento de
Freud se cruza com a filosofia de Nietzsche, naquilo em que o poder assenta-se
sobre a vontade férrea de um desejo que não se deixa ludibriar. Para ser feliz em plenitude, a pessoa deveria ter
acesso ao gozo pleno, gozo esse no sentido de algo que se situa para além do
princípio do prazer, algo da ordem do indizível. Todos os instintos do homem
buscam a sua consumação, até mesmo o instinto de morte. Portanto, a civilização
deve erigir-se por sobre os instintos, renunciando aos mesmos. Essa
"frustração cultural" permeia as relações humanas e causa
hostilidades tanto entre os homens quanto entre estes e a própria civilização.
"Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um
instinto. Não se faz isso impunemente", adverte Freud. A necessidade do trabalho para suprir a necessidade e
a busca do objeto sexual e do amor, possibilitam a sociabilidade e o advento da
civilização. Entretanto, esta não será uma relação amistosa porque, segundo
Freud, "o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização" e
esta, por sua vez, "ameaça o amor com restrições substanciais." Nesse ponto devemos recordar que Nietzsche afirmou:
"Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de
razão na loucura." Sabemos que a primeira e mais forte norma cultural é
de natureza sexual. Trata-se do tabu do incesto, proibição universal, presente
em todas as sociedades de todos os tempos, sofrendo apenas variações de uma
cultura para outra. Freud afirmou que a proibição do incesto "constitui,
talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época
já experimentou." Entretanto, a transposição do homem de seu estado
natural para o cultural ocorre devido a proibição da satisfação dos impulsos
sexuais dentro da própria família. Dito de outro modo, a cultura nasce da repressão
da aspiração primeira de todo o ser humano, que é possuir como objeto sexual as
pessoas que amou na infância. Além do mais, a civilização exige que cada um de nós
utilizemos uma grande quantidade de energia psíquica em nossos trabalhos, e
essa energia é subtraída da energia sexual. Por isso a civilização ergue tantos
empecilhos à vida sexual. Até há pouco tempo, a vida sexual só era admitida na
sua expressão heterossexual e, mesmo assim, restrita ao casamento. Desta
maneira, os canais de expressão da energia sexual eram muito limitados. Freud
percebe este paradoxo e afirma peremptório: "Apenas os fracos se
submeteram a uma usurpação tão ampla de sua liberdade sexual". Aqui temos,
portanto, outro paradigma psicanalítico: o amor é anti-social. Mas, afinal, o
que há de anti-social no amor? O caráter anti-social do amor pode ser percebido
quando observamos que os casais apaixonados evitam a presença de terceiros,
procurando sempre estar a dois. Daí o motivo da frase "enfim sós",
que os recém-casados dizem na lua de mel. Contra essa tendência isolacionista
do amor, é necessário utilizar a libido inibida em seus objetivos sexuais para
que as relações coletivas, como as amizades, possam existir e fazer nascer
vínculos comunitários. O homem possui uma inclinação instintiva para a
agressão. Essa agressividade se expressa em uma "hostilidade de cada um
contra todos e a de todos contra cada um", o que é, no dizer de Freud,
"o maior impedimento à civilização." Vejam o que nos ensina Nietzsche: "Não vos
aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. (...)
Não é possível estar calado e permanecer tranquilo senão quando se tem a flecha
no arco", proclama o filósofo iracundo. Para lutar contra essa inclinação
"para o mal", a civilização fez surgir no indivíduo um mecanismo de
internalização da agressividade que, sob a forma de "consciência",
faz o indivíduo submeter-se às regras sociais. Isso só é possível porque o poder da autoridade
externa (pai) é introjetada e o superego assume o papel de coação moral que
fora exercida pelo pai e depois pelas demais figuras de autoridade. Entretanto,
o princípio do prazer consiste em encontrar a felicidade e este objetivo jamais
é descartado. Se o princípio do prazer é ligado ao instinto da vida (Eros), o
princípio da realidade é subordinado ao instinto de morte (Tanatos). A questão
fundamental, para Freud, refere-se a saber se é possível à espécie humana, em
seu desenvolvimento cultural, dominar os instintos de agressão e de
autodestruição presentes nos homens. Freud alimenta a esperança de que no
permanente combate entre Eros, o instinto de vida, e Tanatos, o instinto de
morte, o primeiro afirme sua primazia. Entretanto é impossível prever o
resultado desta luta que se trava a todo momento no interior de cada um e de
todos nós, no lento e imprevisível desenvolvimento humano e civilizacional. Desiludido nas suas andanças por entre os homens
demasiado humanos, Zaratustra retorna, após breve interlúdio de contato com a
civilização, à solidão da montanha onde vivia como um eremita e por lá ficou
por algum tempo antes de iniciar nova viagem, desta vez por alto mar. Estamos já na terceira parte do Assim Falava
Zaratustra, onde o bordão nietzscheano relembra-nos que "o homem deve ser
superado" porque "até nos melhores há qualquer coisa repugnante, até
o melhor é coisa que se deve superar!" Nietzsche lança um desafio à
civilização ao mesmo tempo que justifica com antecipação a descoberta freudiana
de que o homem é o maior inimigo da civilização. Diz Nietzsche: "se alguma
virtude há em mim, é não temer nenhuma proibição". Essa revolta contra o mundo, contra a civilização,
contra o modus vivendi do moderno homem ocidental recebeu fortes críticas também
de outros grandes filósofos que agora vamos conhecer com brevidade. Em primeiro
lugar, na nossa crítica à civilização, devemos lembrar que as demais culturas e
civilizações também excluem a possibilidade de ser feliz porque, como está
escrito no Eclesiastes: "O que foi, será, o que se fez, se tornará a
fazer: nada há de novo sob o sol". Mircea Eliade, em O Mito do Eterno Retorno, afirma:
"Nenhuma acontecimento é único, nada acontece apenas uma vez; todo episódio
já aconteceu, é repetido, e será reprisado de modo perpétuo; os mesmos
indivíduos apareceram, aparecem e continuarão aparecendo, a cada giro do
círculo. O tempo cósmico é uma repetição e anakuklosis, o eterno retorno." A permanência da cultura do mal-estar e da
infelicidade está aliada à uma ilusão em um futuro promissor. Ora, isso não
parece ser uma esperança factível. Sabemos que as sociedades, as culturas e as
civilizações se movem em uma mesma direção, de forma contínua, cíclica e
espiralada. Isso significa que tanto no futuro como no passado, as condições
subjetivas de existência do homem são mais ou menos aquelas que conhecemos. Dois autores são fundamentais, além de Freud e
Nietzsche, para compreender a "crise existencial" que sofre a
humanidade. O primeiro é René Guénon, autor da Crise do Mundo Moderno, e o
outro autor é Julius Cesare Evola, autor de Revolta contra o Mundo Moderno. Este último autor considera que nossa atual
civilização é a pior de todas. Para ele, "se houve alguma vez uma
civilização de escravos em grande escala, foi exatamente a civilização moderna
(...) que é imposta de maneira aparentemente inofensiva pela tirania do fator
econômico (...) assim a escravidão hoje é a mais tenebrosa e a mais desesperada
de todas as que foram alguma vez conhecidas." A visão de Evola não é propriamente pessimista. Contra
todas as terceiras e quartas ondas do "neo" (neocapitalismo,
neopositivismo, neoliberalismo) e do "pós" (pós-modernismo,
pós-vanguardismo, pós-historicismo), o homem encontra-se a sós com o seu
destino de repetir ad infinitum os mesmos dramas e tragédias. É essa circularidade do tempo e da história que
permite a sobrevivência das literaturas clássicas: vivemos as mesmas emoções
profundas que os habitantes da Grécia do século V, tanto que até hoje lemos as
tragédias de Sófocles, por exemplo. Assim, temos diante de nós o desafio de
propor novas soluções para velhos problemas, se é que existem soluções novas ou
velhas. Já prelibando a finalização desta conferência,
gostaria de lhes proporcionar uma reflexão acerca da obra de Freud, elaborada
por um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise. Talvez essa crítica à psicanálise
diminua o mal-estar que nossas inquietações filosóficas por acaso tenham
causado na susceptibilidade do público, que nos ouviu afirmar que nós, os
humanos, somos prisioneiros do nosso inconsciente e que somos governador por
forças psíquicas que desconhecemos. Com isso estamos afirmamos o primado da
irracionalidade, contra todas as reivindicações da Razão formal, isso significa
que por trás dos nossos pensamentos, razões e decisões, encontram-se os desejos
inconsciente que são anti-culturais e anti-civilizatórios. Mas René Guénon pode proporcionar alívio às senhoras e
aos senhores, na sua crítica feroz a Freud. Em seu livro O Reino da Quantidade
e os Sinais dos Tempos, Guénon afirma que o caráter geralmente ignóbil e repugnante
das interpretações psicanalíticas constitui, a esse respeito, uma 'marca' que
não engana; (...) Na realidade, a psicanálise só pode ter como efeito o trazer
à superfície, tornando-o claramente consciente, todo o conteúdo destes fundos
baixos do ser que formam aquilo a que se chama propriamente o 'subconsciente'. e é
este:
Nota
[1] [N. do E.] A
publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de
Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico
Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº
22, Junho - Porto Velho, 2000.
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