Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho



Entre a civilização do mal-estar e a ilusão de um futuro
Uma crítica filosófico-psicanalítica ao neo-pós-tudo
[1]

 
Juarez Caesar Malta Sobreira

 PROLEGÔMENOS

 
            A tarefa de realizar uma reflexão – desde uma perspectiva histórico-filosófica – sobre o desenvolvimento cultural da humanidade provoca um questionamento radical sobre o sentido da própria existência humana. Para aventar hipóteses sobre o sentido ôntico e radical do existir, devemos utilizar algumas contribuições teóricas de Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Mircea Eliade, René Guénon e Julius Evola.

            Pretendemos rever os paradigmas que sustentam a ideia de um "desenvolvimento" proporcionado pela civilização. Colocaremos em discussão o pensamento de Freud e sua crítica à cultura, elaborada com mais vigor em Die Zukunft einer Illusion (1927) e Das Unbehagen in der Kultur (1930). Como contraponto, utilizaremos a "visão social" de Nietzsche, especialmente a terceira parte de Also Sprach Zarathustra (1884).

            Resgataremos ainda, nesse exercício crítico, o pensamento de três autores não-acadêmicos. Tratam-se Mircea Eliade, em The Myth of the Eternal Return or Cosmos and History (1954), de Julius Evola, e sua Rivolta Contro il Mondo Moderno (1934), e, finalmente, René Guénon, autor de La Crise du Monde Moderne (1927) e Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps (1945).

            Utilizando esses autores, pretendemos dar continuidade ao labor crítico dos mesmos e questionar o direcionamento que a civilização ocidental contemporânea tem privilegiado, com especial atenção ao fetichismo da quantificação. Verificar-se-á a existência de um paradoxo entre o desenvolvimento material, quantitativamente mensurável, e a miséria afetivo-emocional, qualitativamente verificável, que se descortina ante o olhar do homem contemporâneo. A vã expectativa de que os males para os humanos cessariam ante o progresso da civilização se mostrou frustrada e hoje, mais que nunca, o homem tornou veraz o dito latino segundo o qual homo homini lupus.

            O paradigma que está por trás desta concepção é aquele segundo o qual somos governados por forças instintuais e, sobretudo, inconscientes que nos remete aos conflitos que, começando com o enfrentamento com os pais, reverberam a posteriori nos conflitos com as autoridades e, em última análise, com a própria civilização. Será nessa direção que nossa conferência vai abordar o grande mistério do sentido da existência do homem e sua inscrição na cultura. De modo que a questão é desde logo exposta: entre a natureza e a cultura, onde se inscreve a possibilidade de desenvolvimento humano?

Esta conferência antecipa tal preocupação e sugere algumas linhas de reflexão.

 

O MAL-ESTAR DO FUTURO E A ILUSÃO DA CIVILIZAÇÃO

 

                A questão fundamental da existência humana pode ser sintetizada em uma expressão: a busca da felicidade. Este é um objetivo implícito e precípuo na vida de todas as pessoas. Estamos neste mundo, neste vale de lágrimas, envoltos em um entramado de impedimentos para a consumação dos prazeres mais simples e naturais. Entretanto, continuamos cultivando nossos sonhos de felicidade.

                Todas as grandes obras produzidas pelo homem têm como objetivo proporcionar algum tipo de felicidade. Porém a história da humanidade tem nos ensinado que este bem é o mais raro de todos. A felicidade, essa sensação passageira de plenitude, ocorre (quando ocorre) de modo fugaz, porque felicidade é algo extremamente volátil.

                A história do homem sobre a face da terra é testemunho da violência do homem contra o homem. Desde os primórdios da civilização — que se teria iniciado em uma época proto-histórica — até a idade contemporânea, especialmente após as revoluções industrial e tecnológica, a humanidade tem conhecido avanços culturais nunca dantes imaginado.

                O avanço e as conquistas da civilização, em suas múltiplas diversidades, nunca proporcionaram ao homem um maior bem-estar e conforto interior. Muito pelo contrário, o que temos assistido é um aumento do grau de infelicidade, de desamparo, de "desajustamento" que é cada vez mais característico do chamado "homem moderno".

                Estamos, pois, diante de um paradoxo. Se, por um lado, dominamos uma tecnologia que objetivamente nos proporciona conforto e uma espécie de satisfação material imediata, por outro lado, convivemos com um "mal-estar" intrínseco à própria civilização. Segundo a Organização Mundial de Saúde, existem atualmente cerca de 340 milhões de pessoas sofrendo depressão. Isso apenas nos casos diagnosticados! Imaginem que apenas um caso em cada três são diagnosticados. Significa que mais de um bilhão de pessoas padecem desse verdadeiro mal de fim-de-século. Não é um quadro dos mais promissores para o devir humano. Estamos diante de uma civilização doentia.

                O que se passa com a civilização? Será a doença afetivo-emocional o ônus da cultura? E o bônus da cultura, qual será (se é que tem algum)? Quais os objetivos da civilização, senão proporcionar felicidade à humanidade? Os bens materiais produzem felicidade perene? Os prazeres corporais podem nos proporcionar felicidade? Enfim, qual o sentido último da civilização? Estas são questões difíceis de responder de modo unívoco. Os filósofos têm se debruçado sobre o tema desde eras pretéritas. Um dos mais célebres filósofos de todos os tempos, Heráclito de Éfeso, já nos ensinava que a felicidade não está relacionada aos bens materiais ou aos prazeres carnais. Diz ele, no fragmento 4: "(Se a felicidade estivesse nos prazeres do corpo), deveríamos chamar felizes os bois quando encontrassem capim para comer".

                Portanto, não são os bens materiais que podem nos proporcionar felicidade. Há algo de intangível, de impossível, nos sonhos de felicidade do ser humano. E então, perguntamo-nos, vivemos para quê? Qual o sentido do nosso existir? Essas preocupações exigiam respostas que, séculos após séculos, diversos amantes da sabedoria procuraram responder. Nessa busca, o príncipe Sidarta Gautama revelou que o mundo se resume a quatro nobres verdades: tudo é dor; a dor nasce do desejo; a dor se extingue com a extinção do desejo; para se obter a cessação do desejo, é preciso seguir o caminho dos oito passos (correção de opiniões, intenções, motivos, palavras, ocupação, esforço, pensamento e meditação).

                Mais perto de nós, Platão nos ensinou na sua Sétima Carta, que não haverá remédio para os males que afligem a humanidade, enquanto os sábios não governarem a terra ou que os governantes não possuírem a sabedoria. Dado que o amor à sabedoria não é encontrado entre os governantes, nem os verdadeiros sábios conseguem ser eleitos para os cargos mais importantes, somos levados à conclusão que a felicidade não é fácil de ser conquistada. Para explicar essa nossa inquietude, esse mal-estar congênito e intrínseco à civilização, vamos escutar as palavras inventivas de Sigmund Freud, o criador da Psicanálise. Sua obra extensa e profunda, parte de um pressuposto radical: não podemos ser felizes. Por que? Porque nossos desejos mais naturais, mais primitivos, mais viscerais, são proibidos porque vão de encontro aos objetivos da civilização. Em duas obras, Freud explica a mecânica por assim dizer dessa "doença cultural". Em O Futuro de Uma Ilusão e em O Mal-Estar na Civilização, Freud estabelece os princípios teóricos da nossa permanente infelicidade. Segundo este autor, nós, os seres humanos, não somos governados pela razão, mas sim por forças instintuais, obscuras, que nos são desconhecidas porque são frutos do nosso inconsciente. Esta descoberta provoca o mesmo sentimento de desamparo, quanto as descobertas de que a terra não era o centro do universo, e de que os homens são parentes dos macacos.

                Para termos uma ideia  do que é felicidade vale ressalta que o amor sexual proporciona "nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca de felicidade." Entretanto, a felicidade não pode ser realizada e, por causa dessa infelicidade culturalmente congênita, temos que lutar contra o mundo pois "o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça". Daí que "o impulso de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências específica da civilização ou contra a civilização em geral". O certo é que, para Freud, o homem é inimigo da civilização. Isto é o paradigma mais radical já enunciado por um pensador. Por quê? Porque toda civilização se ergue sobre a coerção e sobre a renúncia aos instintos. Sabemos que em todos os indivíduos, mesmo naqueles mais cultos e mais mansos, sobrevivem impulsos destrutivos e anti-sociais. Em algumas pessoas tais tendências são excessivamente fortes e determinam o repertório do comportamento social (ou melhor, anti-social) do indivíduo. Daí porque a sociedade deve tomar medidas para que a exigência de satisfação dos instintos mais primitivos de tais indivíduos não ponham em perigo o conjunto da sociedade.

                Tal visão se baseia na sua teoria das pulsões. Estas colocam em evidência exigências instintuais que reivindicam pura e simplesmente a satisfação total de todos os seus desejos. Ora, sabemos que o homem inserido na cultura não pode usufruir do gozo pleno e irrestrito dos seus instintos. Para defender-se dessa exigência de gozo, a sociedade elaborou as normas e criou instituições para garantir as proibições que a cultura impõe aos indivíduos. Acredita-se que sem controle social, os homens reunidos em grandes grupos tornam-se incontroláveis e por isso precisam ser liderados por uma minoria. Neste sentido, as massas não podem prescindir de serem dirigidas por uma minoria como também deve existir uma coerção ao trabalho porque os homens não gostam de trabalhar e só o fazem por força da necessidade.

                Nenhuma sociedade produziu um homem que espontaneamente gostasse de trabalhar e que abdicasse de satisfazer seus instintos mais primitivos. Existem indivíduos que são prisioneiros dos seus desejos instintuais, de tal maneira que serão sempre pessoas anti-sociais. Esse pessimismo freudiano demonstra que Freud não compartilhava da visão romântico-messiânica do comunismo porque o marxismo parte de um pressuposto equivocado: a de que o homem, liberto das relações de classe, se tornaria um altruísta, generoso, bondoso, como que um retorno à sua condição de "bom selvagem". Freud afirma, em O Mal-Estar na Civilização, que o ser humano possui uma "inclinação para a agressão" e que tal inclinação "constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo" de tal forma que, para impedir transtornos maiores, a civilização deve gastar muita energia para conter a agressividade humana. Freud afirma também, em O Futuro de uma Ilusão, que existe uma "mania destrutiva dos participantes da civilização". Assim, os instintos mais "naturais" no ser humano estão fadados a permanecer sob o tacão das normas ditas civilizadas. Desse modo, origina-se a frustração dos instintos que, impedidos de exercer a plenitude dos seus gozos, procuram sabotar as proibições impostas pela civilização.

                Desde os primórdios da civilização, existe um repertório de privações dos prazeres realizada pelas proibições culturais. Isso faz renascer em cada geração uma espécie de revolta contra a civilização. Os desejos instintuais mais violentamente reprimidos são o canibalismo, o incesto e o homicídio. Desses três desejos instintuais, só o canibalismo parece ter sido proscrito em todo o mundo, ao passo que o homicídio acompanha a história da humanidade desde sempre, e quanto ao incesto, diz Freud: "A intensidade dos desejos incestuosos ainda pode ser detectada por detrás da proibição contra eles". Os instintos que reclamam satisfação sexual são recalcados pela sociedade. É aqui que a religião desempenha importante papel para a civilização posto que contribuiu para "domar" o instinto sexual, embora felizmente não de modo total. A frustração decorrente das proibições e interdições culturais, a maioria de caráter sexual, proporcionou a descoberta de que "um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar", afirma Freud. Para combater paixões intensas de caráter instintual, foram proibidos o incesto e o homicídio. A interdição do assassínio e do incesto deram origem ao totemismo, arcabouço das religiões. Freud questiona como é possível os homens permanecerem submetidos às suas paixões e exigências instintuais. A substituição da religião pela razão tem sido tentada, mas sem sucesso. E, ao mesmo tempo, assistimos ao refortalecimento dos sentimentos religiosos na neoliberal e pós-moderna sociedade ocidental. Freud explica: "o efeito das consolações religiosas pode ser assemelhado ao de um narcótico".

                O paradoxo do ser humano é que ele é governado por forças que desconhece. Assim, "o intelecto do homem não tem poder, em comparação com sua vida instintual". Nossa razão é limitada pelo poder dos nossos desejos inconscientes. Somos prisioneiros, por assim dizer, das reivindicações de prazer que nossos instintos reclamam. Mas no combate entre o instinto e a razão, esta apesar de mais fraca termina por impor uma certa ordem porque "a voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade", garante Freud.

 SOBRE A FELICIDADE

                 Se existe algum propósito da existência humana, este deve ser a conquista da felicidade que significa ausência de sofrimento e experiência intensa de prazer. Portanto, a humanidade se mobiliza em função do princípio do prazer. Mas contra a consecução do princípio do prazer encontram-se as proibições culturais. Por outro lado, a infelicidade está mais ao alcance de todos porque nos ataca desde três diferentes direções: desde dentro do nosso próprio corpo, desde o mundo externo (social) e desde nossos relacionamentos interpessoais.

                Para impedir a plenitude do princípio do prazer, existe um outro princípio, o da realidade, que é o guardião de todos os valores sociais e culturais. Isso porque existe um perigo nos prazeres instintuais. Eis o alerta que Freud nos traz em O Mal-Estar na Civilização:

 

O sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado.

 

                Eis aqui o ponto central da nossa reflexão. A felicidade possível, a quota de possibilidade real de prazer que cada um de nós pode retirar do mundo, depende da força que podemos utilizar para modificar o mundo e o modelar de acordo com nossos desejos. É aqui que o pensamento de Freud se cruza com a filosofia de Nietzsche, naquilo em que o poder assenta-se sobre a vontade férrea de um desejo que não se deixa ludibriar.

                Para ser feliz em plenitude, a pessoa deveria ter acesso ao gozo pleno, gozo esse no sentido de algo que se situa para além do princípio do prazer, algo da ordem do indizível. Todos os instintos do homem buscam a sua consumação, até mesmo o instinto de morte. Portanto, a civilização deve erigir-se por sobre os instintos, renunciando aos mesmos. Essa "frustração cultural" permeia as relações humanas e causa hostilidades tanto entre os homens quanto entre estes e a própria civilização. "Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente", adverte Freud.

                A necessidade do trabalho para suprir a necessidade e a busca do objeto sexual e do amor, possibilitam a sociabilidade e o advento da civilização. Entretanto, esta não será uma relação amistosa porque, segundo Freud, "o amor se coloca em oposição aos interesses da civilização" e esta, por sua vez, "ameaça o amor com restrições substanciais."

                Nesse ponto devemos recordar que Nietzsche afirmou: "Há sempre o seu quê de loucura no amor; mas também há sempre o seu quê de razão na loucura."

                Sabemos que a primeira e mais forte norma cultural é de natureza sexual. Trata-se do tabu do incesto, proibição universal, presente em todas as sociedades de todos os tempos, sofrendo apenas variações de uma cultura para outra. Freud afirmou que a proibição do incesto "constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou."

                Entretanto, a transposição do homem de seu estado natural para o cultural ocorre devido a proibição da satisfação dos impulsos sexuais dentro da própria família. Dito de outro modo, a cultura nasce da repressão da aspiração primeira de todo o ser humano, que é possuir como objeto sexual as pessoas que amou na infância.

                Além do mais, a civilização exige que cada um de nós utilizemos uma grande quantidade de energia psíquica em nossos trabalhos, e essa energia é subtraída da energia sexual. Por isso a civilização ergue tantos empecilhos à vida sexual. Até há pouco tempo, a vida sexual só era admitida na sua expressão heterossexual e, mesmo assim, restrita ao casamento. Desta maneira, os canais de expressão da energia sexual eram muito limitados. Freud percebe este paradoxo e afirma peremptório: "Apenas os fracos se submeteram a uma usurpação tão ampla de sua liberdade sexual". Aqui temos, portanto, outro paradigma psicanalítico: o amor é anti-social. Mas, afinal, o que há de anti-social no amor?

                O caráter anti-social do amor pode ser percebido quando observamos que os casais apaixonados evitam a presença de terceiros, procurando sempre estar a dois. Daí o motivo da frase "enfim sós", que os recém-casados dizem na lua de mel. Contra essa tendência isolacionista do amor, é necessário utilizar a libido inibida em seus objetivos sexuais para que as relações coletivas, como as amizades, possam existir e fazer nascer vínculos comunitários.

                O homem possui uma inclinação instintiva para a agressão. Essa agressividade se expressa em uma "hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um", o que é, no dizer de Freud, "o maior impedimento à civilização."

                Vejam o que nos ensina Nietzsche: "Não vos aconselho o trabalho, mas a luta. Não vos aconselho a paz, mas a vitória. (...) Não é possível estar calado e permanecer tranquilo senão quando se tem a flecha no arco", proclama o filósofo iracundo. Para lutar contra essa inclinação "para o mal", a civilização fez surgir no indivíduo um mecanismo de internalização da agressividade que, sob a forma de "consciência", faz o indivíduo submeter-se às regras sociais.

                Isso só é possível porque o poder da autoridade externa (pai) é introjetada e o superego assume o papel de coação moral que fora exercida pelo pai e depois pelas demais figuras de autoridade. Entretanto, o princípio do prazer consiste em encontrar a felicidade e este objetivo jamais é descartado. Se o princípio do prazer é ligado ao instinto da vida (Eros), o princípio da realidade é subordinado ao instinto de morte (Tanatos). A questão fundamental, para Freud, refere-se a saber se é possível à espécie humana, em seu desenvolvimento cultural, dominar os instintos de agressão e de autodestruição presentes nos homens. Freud alimenta a esperança de que no permanente combate entre Eros, o instinto de vida, e Tanatos, o instinto de morte, o primeiro afirme sua primazia. Entretanto é impossível prever o resultado desta luta que se trava a todo momento no interior de cada um e de todos nós, no lento e imprevisível desenvolvimento humano e civilizacional.

 PERSPECTIVAS FILOSÓFICAS

                 A sensação de cansaço com o "mundanal ruído", a que faz referência Fray Luis de León, reverbera na figura do sábio e santo Zaratustra, personagem da obra máxima de Nietzsche, quando este diz que "o ruído assassina os pensamentos..." Aos trinta nos Zaratustra abandonou sua pátria para refugiar-se durante dez anos no alto de uma montanha.

                Desiludido nas suas andanças por entre os homens demasiado humanos, Zaratustra retorna, após breve interlúdio de contato com a civilização, à solidão da montanha onde vivia como um eremita e por lá ficou por algum tempo antes de iniciar nova viagem, desta vez por alto mar.

                Estamos já na terceira parte do Assim Falava Zaratustra, onde o bordão nietzscheano relembra-nos que "o homem deve ser superado" porque "até nos melhores há qualquer coisa repugnante, até o melhor é coisa que se deve superar!" Nietzsche lança um desafio à civilização ao mesmo tempo que justifica com antecipação a descoberta freudiana de que o homem é o maior inimigo da civilização. Diz Nietzsche: "se alguma virtude há em mim, é não temer nenhuma proibição".

                Essa revolta contra o mundo, contra a civilização, contra o modus vivendi do moderno homem ocidental recebeu fortes críticas também de outros grandes filósofos que agora vamos conhecer com brevidade. Em primeiro lugar, na nossa crítica à civilização, devemos lembrar que as demais culturas e civilizações também excluem a possibilidade de ser feliz porque, como está escrito no Eclesiastes: "O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo sob o sol".

                Mircea Eliade, em O Mito do Eterno Retorno, afirma: "Nenhuma acontecimento é único, nada acontece apenas uma vez; todo episódio já aconteceu, é repetido, e será reprisado de modo perpétuo; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e continuarão aparecendo, a cada giro do círculo. O tempo cósmico é uma repetição e anakuklosis, o eterno retorno."

                A permanência da cultura do mal-estar e da infelicidade está aliada à uma ilusão em um futuro promissor. Ora, isso não parece ser uma esperança factível. Sabemos que as sociedades, as culturas e as civilizações se movem em uma mesma direção, de forma contínua, cíclica e espiralada. Isso significa que tanto no futuro como no passado, as condições subjetivas de existência do homem são mais ou menos aquelas que conhecemos.

                Dois autores são fundamentais, além de Freud e Nietzsche, para compreender a "crise existencial" que sofre a humanidade. O primeiro é René Guénon, autor da Crise do Mundo Moderno, e o outro autor é Julius Cesare Evola, autor de Revolta contra o Mundo Moderno.

                Este último autor considera que nossa atual civilização é a pior de todas. Para ele, "se houve alguma vez uma civilização de escravos em grande escala, foi exatamente a civilização moderna (...) que é imposta de maneira aparentemente inofensiva pela tirania do fator econômico (...) assim a escravidão hoje é a mais tenebrosa e a mais desesperada de todas as que foram alguma vez conhecidas."

                A visão de Evola não é propriamente pessimista. Contra todas as terceiras e quartas ondas do "neo" (neocapitalismo, neopositivismo, neoliberalismo) e do "pós" (pós-modernismo, pós-vanguardismo, pós-historicismo), o homem encontra-se a sós com o seu destino de repetir ad infinitum os mesmos dramas e tragédias.

                É essa circularidade do tempo e da história que permite a sobrevivência das literaturas clássicas: vivemos as mesmas emoções profundas que os habitantes da Grécia do século V, tanto que até hoje lemos as tragédias de Sófocles, por exemplo. Assim, temos diante de nós o desafio de propor novas soluções para velhos problemas, se é que existem soluções novas ou velhas.

                Já prelibando a finalização desta conferência, gostaria de lhes proporcionar uma reflexão acerca da obra de Freud, elaborada por um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise. Talvez essa crítica à psicanálise diminua o mal-estar que nossas inquietações filosóficas por acaso tenham causado na susceptibilidade do público, que nos ouviu afirmar que nós, os humanos, somos prisioneiros do nosso inconsciente e que somos governador por forças psíquicas que desconhecemos.

                Com isso estamos afirmamos o primado da irracionalidade, contra todas as reivindicações da Razão formal, isso significa que por trás dos nossos pensamentos, razões e decisões, encontram-se os desejos inconsciente que são anti-culturais e anti-civilizatórios.

                Mas René Guénon pode proporcionar alívio às senhoras e aos senhores, na sua crítica feroz a Freud. Em seu livro O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Guénon afirma que

 

o caráter geralmente ignóbil e repugnante das interpretações psicanalíticas constitui, a esse respeito, uma 'marca' que não engana; (...) Na realidade, a psicanálise só pode ter como efeito o trazer à superfície, tornando-o claramente consciente, todo o conteúdo destes fundos baixos do ser que formam aquilo a que se chama propriamente o 'subconsciente'.

 CONCLUSÃO

                 E o vosso mais alto pensamento deveis ouvi-lo de mim,

e é este:

 o homem deve ser superado.


Nota

[1] [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000.