Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho
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A
pré-consciência e os pré-socráticos[1]
Muito
já se disse sobre a contribuição da Filosofia Grega para a formação da
Cultura
Ocidental. Não pairam dúvidas sobre a decisiva influência do pensamento
de pelo
menos dois gregos na constituição de toda a Filosofia Ocidental: Platão
e Aristóteles.
Porém
acerca dos pré-socráticos, compete-nos ainda reforçar alguns aspectos
basilares, que contribuíram de maneira decisiva para a identidade do
homem
ocidental, mas que foram sendo distorcidos com o passar do tempo, em
verdadeiro
exercício estalinista de
esquecimento voluntário e de inversão de premissas. Como resultado,
vinculamos
quase sempre o papel do pensar, anterior à tradição grega clássica, à
lembranças de modos singelos de lidar com o mundo, como aventura
romântica de arco e flechas do conhecimento, como se
o conhecimento tivesse origem a partir de Sócrates, cabendo ao antes a
imagem
de rudimentares construções.
O
pensamento pré-socrático se justifica para a filosofia, como reflexão
despojada
do caráter filosófico, devido a aparente precariedade de sua
construção, muitas
vezes revelando-se como exercício de pensamento tipificado como
lógico-matemático, na tentativa de somente dizer a phýsis ou a arché,
revelando
profunda perplexidade diante do mundo que o cercava, porém, apoiados em
razão
incipiente. Se tomarmos a tradição do pensamento de Anaximandro ou
Xenófanes,
não reconhecemos que não ultrapassavam a compreensão da natureza, e nem
mesmo
era sua pretensão, sendo por causa disto identificados nos escritos
tanto de
Platão quanto de Aristóteles como estudantes
da natureza.
Mantendo
o mesmo sentido, Parmêmides, Leucipo ou Demócrito parecem ter realizado
papel
semelhante, ao buscarem os elementos constitutivos, onde as coisas
primárias,
pudessem fazer surgir as secundárias.
Faz-se
evidente aos nossos olhos ocidentais, que estas expressões de sondagem
do mundo
dentro de forte apelo sensorial ou dentro de procedimentos
especulativos
simplificados, não conseguiram se constituir como filosofia, pois
faltava à
elas disciplina metódica tal que pudessem apresentar corpo rigoroso no
âmbito
da intelecção, ou seja, nunca se prestaram, apesar de não ser este seu
propósito, a organizar método de compreensão do homem e do mundo a
partir dos
mesmos elementos básicos que conseguiriam irradiar ordem e sentido
partindo de
uma premissa epicêntrica.
Não
é possível falarmos ainda em filosofia, como corpo racional ocidental,
tipificado como razão, pois não
foram sistemáticos o suficiente para atingirem a radicalidade racional
de cada
tema, ou seja, a raiz epistêmica como eixo explicativo daquilo que
buscavam
compreender.
Nem
mesmo foram capazes de fazer o exercício inverso, ou seja a inserção do
conhecimento particular que peremptoriamente estabeleciam na sua
totalidade,
para poderem compreender de forma mais extensiva o sentido e a
profundidade de
suas proposituras, nem realizaram as relações evidentes
entre as partes e o todo, nem compararam o produto de
cada tradição, expressão típica do modo de pensar da ocidentalidade,
nem mesmo
identificam os elementos ou pontos fragilizados que seriam passíveis de
nova
ação investigativa.
Para
a maioria dos manuais de filosofia, a contribuição dos pré-socráticos
foi
importante apenas por lançar as bases do rompimento com o conhecimento
místico,
muito embora continuasse perigosamente preso ao mito. Como resultado
sua
atitude efetivamente não convence a ocidentalidade, mas é inegável, que
após a
instauração da razão grega - estabelecendo a distinção entre sagrado e
profano,
entre razão e mito – esta nova tradição toma o que lhe antecede como
parte da
sua história constitutiva, onde o resultado desta fagocitose evolutiva
é a
crença segura de que fora da filosofia ou da razão, havia apenas
fragmento.
Esta
situação aponta para uma vontade por criar oposição e dicotomias entre
criador
e criatura, gerando ou apenas incrementando mais tarde outras
oposições: corpo
e alma (Malebranche), sujeito e objeto (Hume), ser e aparência
(Platão),
racional e irracional (Kant), consciente e inconsciente (Freud),
indivíduo e
sociedade (Durkheim), desejo e dever (Agostinho), fé e razão
(Descartes),
comunismo e capitalismo (Marx), sociedade e natureza (Rousseau),
materialismo e
idealismo (Hegel), popular e erudito (Marcuse) democracia e
autoritarismo (Habermas).
Antes
que seja tarde, afirmar que esta seria sua contribuição mais
significativa,
tomando a contribuição dos pré-socráticos dentro destes limites tão
estreitos,
presta-se antes ao reforço da sensação da imprescindibilidade da
filosofia,
como se tudo se partisse e se dirigisse a ela, numa trajetória
espiral-ascendente, onde as situações se somam evolutivamente, mesmo
que
aparentemente se revelem como novo paradigma (Kuhn).
Nem
mesmo a aferição do verdadeiro, ou o empenho na revelação das
inquietações do
homem se configuram como bases efetivamente importantes naqueles que, a
exemplo
de outras mitologias, aventuraram-se na jornada de instituição de um
tipo de
consciência.
Ao
inquietar-se com o mundo existente, os pré-socráticos estabeleceram a
possibilidade de tomá-lo, romperam com o discurso de outras identidades
míticas
que os antecederam, desacreditaram no natural preexistente,
carregando-as de
conteúdos novos e próprios, diga-se nova singularidade plasmada; os
seres
intrinsecamente ontológicos cuja existência não dependia do homem, é
imediatamente
posta em suspenso. O logos
heraclítico não realiza distinção entre criatura e criador, sua
constituição
prevalece em tudo, a consciência do homem a tudo se estende, tudo é ele.
As
afirmações de Parmênides em torno da invariabilidade do ser, como
condição de
superação da dóxa para o estabelecimento da alétheia, ilumina
paradoxalmente a
mesma direção de Heráclito, que defendia o oposto, a impossibilidade da
ontologia, dado o caráter mutagênico do ser. Ambos falam sobre a
natureza,
sobre o mundo como algo passível de tornar-se abstrato, de serem
instituídos e
reconhecidos, elevados à categorias sociais, são reconhecidas e
preenchidas de
significações e aí sim passível de serem ditas, comunicadas e sentidas.
Os
pré-socráticos inauguram a criação da natureza. Como deuses, passam a
se
reconhecer como homens e a dizer as coisas; o como e porquê existem,
dão vida à
natureza: vida humana. Instalam-na como modo de consciência, criam tudo
o mais
a imagem e semelhança do homem, humanizando o Caos. A natureza e todas
as suas
relações e desdobramentos passam a existir por causa do homem.
Estranhamente
a tradição filosófica inaugurada posteriormente não mais reconhece como
sendo
natureza e homem parte do mesmo todo. Desta cisão, onde se apartam
mundos,
inaugurando nova consciência que aparta criador e criatura, decorrem
ontologias
que obrigam o sujeito (agora existente) a extasiar-se com objeto
(também recém
criado). Estranhamente tudo passa a ter vida e existência própria,
provoca no
homem o ato de maravilhar-se, não mais se reconhecendo, não mais sendo
dele,
não podendo ser reinventada, mas descoberta e investigada.
Com
este deslocamento, o homem conquista a
perda de sua autenticidade, fazendo submergir sua singularidade,
sua
distinção, subalternizando-se lógica da natureza que criou. Ao narrar
sua
existência, e a maneira como a concebe, não vence a narração, não
preenche de
significado e significações sua vida, sucumbe ao discurso ordenador da
natureza, deixa-se envolver com o mundo e seus caprichos.
Os
pré-socráticos ao valorizarem a gênese do mundo, valorizaram na verdade
a
gênese demiúrgica de si próprios. Esta inquietação que acabou por
desembocar
até mesmo em vários conceitos-aforismos elaborados sobre a origem da
phýsis e
da arché, pode ter aos olhos da química ou da física modernas papel
insignificante, mas se os nossos primeiros
pensadores erraram para a ciência, acertaram para práxis social,
grosseiramente negligenciaram princípios básicos da química; por
desconhecimento,
negaram leis elementares da física, por descontinuidade lógica
inviabilizaram a
astronomia, porém constituíram o existir da natureza fecundada pelo por
cada
um.
Não
é sem motivos que Platão preocupou-se com os pré-socráticos e fez-lhes
crítica.
Porém, apesar de afirmar ser a psyché (princípio vital, alma) a fonte
do movimento,
em contrapartida à noção da própria natureza com origem própria, Platão
cede
aos encantos da filosofia, estabelecendo dois mundos, hierárquicos e
portadores
de ontologia própria.
Com
contribuições desta ordem, a filosofia acabou por permitir que o homem
aprofundasse cada vez mais certas formas de sistematização do
conhecimento, o
grande rebento da filosofia, acabou por realizar simbiose com um modo
de manifestação
do trabalho, enquanto ação do homem na natureza, assim solidificam-se a
tríade
filosofia, ciência e capital, numa união cada vez mais indissolúvel e
indistinguível.
A
força produtiva e destruidora desta aliança, acabou reforçando a
objetificação
das regras do mundo, desumanizando e eliminando a práxis social
enquanto
singularidade e elemento dirigente da criação, transformando-a em
acessória,
dependente a ponto de não conseguir validar nem reconhecer o que
produza se não
passar cientificamente pelo buraco da
agulha do método. Em momentos de Pós-Modernidade (denominação
desnecessária
se percebemos que a teia constituída pela ocidentalidade continua atada
aos
mesmos princípios), enquanto o ser social se desfaz em toda sorte de
relativismos, a ciência e o capital parecem esbanjar saúde,
arvorando-se o
direito de investigarem e validarem o mundo.
Mas
o que fez a ciência senão retirar-se do campo da historicidade e das
implicações epistemológicas, ontológicas e políticas, para validar a si
mesma
como conhecimento universal?
Se
tomarmos como verdadeiro, aquilo que pode ser repetido e mensurado,
dentro de
determinadas condições interpretativas impostas por ela, ciência, e
validada
também pelo ritual criado e reconhecido por ela, tudo o que está fora
dos seus
limites, não pode ser reconhecido, não tem o estatuto de verdadeiro,
não
existe, torna-se lenda, assume a condição
de mito. Todas as manifestações
sociais que forem encontradas fora da capacidade de domínio da ciência,
resumem-se a pura superstição ou suposição, passível de ser duvidada,
desacreditada e até mesmo negada como existente. O resultado disto é um
cosmos
sem identidade, onde até mesmo o ser social é colocado sob suspeita de
inverosimilhança. O existir possível passa inexoravelmente pelos
rigores do
método, e as manifestações aceitas devem caber em modelos fragmentados
que são
incapazes de serem abrangentes e articulados entre si. Neste caso a
soma das
partes nunca tem como resultado um todo.
Muito
embora a ciência surja como manifestação, tornou-se a única forma
aceitável
tanto material como espiritual de comunicação e investigação, só
podemos falar,
pensar, criar e procriar se respeitamo-la.
A
ciência moderna, em que pese a noção de confiabilidade e objetividade
que
inspire, revela-nos o mundo anterior e posterior aos pré-socráticos,
dominados
pela teogonia, onde dizer o Caos e ordená-lo era bastante precário
pois, quase
sempre os deuses é que dirigiam as coisas do universo o comportamento
de cada
ser social e o sentido de existência de cada comunidade. A ciência
apenas
substituiu os deuses, mantendo a mesma tradição. Substituímos os
discursos
míticos do passado por discursos míticos do presente. Diz ela, hoje, o
ser, o
destino e a origem das coisas. Assim a práxis social não reconhece na
produção
da ciência a si própria como autora, suspeitando e apartando-se de si
mesmo, ou
seja de outros discursos míticos que podem também ordenar o Caos,
despojando-se
da condição de criadora, para empossar a criatura (ciência) em seu
lugar,
aceitando a sina imposta por ela.
Vivemos
a pré-consciência, tempo da não criação, da resignação, da genuflexão
diante do
mundo dito de fora, obedecemos os deuses e seus caprichos para não ser
penalizado,
exatamente como os gregos que temiam a ira dos deuses do Olimpo.
Vivemos em
tempos onde o destino do homem é traçado pelas Esfinges, Minotauros,
Hidras,
Atenas e Hermes da ciência moderna, restando a cada um de nós, a
exemplo dos
gregos, pequenas combinações para minimizar o sofrimento, nunca
extirpá-lo,
para descobrir mais, nunca atingir o conhecimento pleno, para sermos
bons coadjuvantes,
nunca demiurgos.
Compete
nestes tempos de mercadoria, diálogo profundo e destrutivo consigo
mesmo, em
torno da nossa competência e capacidade, de romper o emaranhado
socialmente
produzidos, dissolvendo cada núcleo gerativo. Se a ciência não permite,
por
conta do seu núcleo fundante, outras alternativas que não estejam
contidas no
sistema que a nutre devem ser encontradas, mas inicialmente faz-se
imperioso
destruí-la.
Pensar
a filosofia com os fundamentos ontológicos e epistemológicos postulados
até o
presente, representa ficarmos restrito ao universo reformista. Não é
sem
motivos que muitas alternativas geradas no seio da filosofia, nestes
últimos
anos, foram rapidamente absorvidas e incorporadas, trazendo não a
contradição
para o coração do sistema, mas antes vitalidade, consenso e modernidade
as
relações materiais e espirituais do Capital. Nota
[1] [N. do
E.] A
publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela
Zona de
Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o
periódico
Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano
VII, Nº
22, Junho - Porto Velho, 2000. |
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