Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho
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A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
Este
artigo pretende apresentar uma análise do documento deixado pelo presidente
Getúlio Vargas em 1954, quando de sua morte, a Carta-Testamento, à luz da
Análise do Discurso Francesa - AD. Buscar os sentidos e as imagens construídos
no documento é o nosso objetivo. É interessante, antes de transcrever o texto e
iniciar a análise buscar o que, desde Jakobson, convencionou-se chamar de
interação verbal, apenas para estabelecer, em seguida, um contraponto com a
noção de interação verbal postulada pela AD. Dik
(1978: 1; 1989: 3) aponta que, num paradigma funcional a língua é concebida, em
primeiro lugar, como um instrumento de interação
social entre seres humanos usado com o objetivo principal de estabelecer
relações comunicativas entre os usuários. Está em Dik (1989:8-9) o esquema, bem
como sua explicação, de um modelo de interação
verbal que equaciona a consideração funcionalista do papel da expressão lingüística
dentro da comunicação (Neves, 1997: 19). Nesse modelo, a expressão
lingüística é função: da intenção do falante; da informação pragmática do
falante; da antecipação que ele faz da interpretação do destinatário. E a
interpretação do destinatário é função: da expressão lingüística; da informação
pragmática do destinatário; da sua conjetura sobre a intenção comunicativa que
o falante tenha tido. Em
qualquer estágio da interação verbal
o falante e o destinatário têm informação pragmática. Quando o falante diz algo
a seu destinatário, sua intenção é provocar alguma modificação na informação
pragmática dele. Para isso, o falante tem de formar alguma espécie de intenção comunicativa, uma espécie de
plano mental concernente à modificação particular que ele quer provocar na
informação pragmática do destinatário. O falante tenta antecipar a
interpretação que o destinatário, num determinado estado da sua informação
pragmática, possivelmente atribuirá à sua expressão lingüística. É
importante observar que a relação entre a intenção do falante e a interpretação
do destinatário é mediada, mas não estabelecida, pela expressão lingüística.
Do ponto de vista do destinatário, isso significa que a interpretação será
apenas em parte baseada na informação contida na expressão lingüística em si;
igualmente importante é a informação que o destinatário já possui e pela qual
ele interpreta a informação lingüística. Do ponto de vista do falante, isso
significa que a expressão lingüística não precisa ser uma verbalização plena da
sua intenção; dada a informação que o falante tem acerca da informação que o
destinatário tem no momento da fala, uma verbalização parcial será normalmente
suficiente, sendo que, muitas vezes, uma verbalização não-direta pode ser mais
efetiva do que uma expressão direta da intenção. Para
a Análise do Discurso – AD, a interação verbal não se trata, entretanto, apenas
de transmissão de informação, nem há essa linearidade na disposição dos
elementos da comunicação (sujeito-falante/destinatário). A mensagem não resulta
de um processo serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se num
código e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Não. O que a AD propõe é
exatamente pensar, ao invés da mensagem, o discurso. Assim,
para a AD, a transmissão de informação tão somente não tem lógica pois na
interlocução, isto é, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos
e sentidos afetados pela língua e pela história, tem-se um complexo processo de
constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente uma
transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de
argumentação, de subjetivação, de construção da realidade, etc. Por outro lado,
esse esquema não se assenta apenas na idéia da comunicação.. As relações de
linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e
variados. A língua e o sujeito se constituem nos processos interativos. O
sujeito constitui-se pela internalização dos signos que circulam nas interações,
não só verbais, de que participa. Bakhtin
(1981) afirma que o sujeito se constitui como tal à medida que interage com os
outros; sua consciência e seu conhecimento do mundo resultam como “processo sempre inacabado” deste mesmo
processo no qual o sujeito internaliza a linguagem e constitui-se como ser
social, pois a linguagem não é o trabalho de um artesão, mas trabalho social e
histórico seu e dos outros e é para os outros e com os outros que ela se
constitui. Isso implica que não há um sujeito dado, pronto, que entra em
interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas e nas
falas dos outros. Segundo
Geraldi (1996: 20), Daí a definição de discurso
(Orlandi, 1999: 21): “Discurso é efeito de sentidos entre locutores.” Os
dizeres não são, portanto, apenas mensagens a ser decodificadas. São efeitos de
sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma
forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista do
discurso tem de apreender. São pistas (Ginzburg, 1989) que ele aprende a seguir
para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua
exterioridade, suas condições de produção.
Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em outros lugares,
assim como com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Desse
modo, as margens do dizer do texto também fazem parte dele. Cada palavra
emitida “é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém” (Bakhtin, 1977: 113). O
sujeito negocia sentidos, incorpora a seus conhecimentos prévios novos
sentidos, constitui-se como interlocutor, escolhendo estratégias de interação.
E compreende as falas dos outros. Ora, “entender não é reconhecer um sentido
invariável, mas ‘construir’ o sentido de uma forma no contexto no qual ela
aparece” (Gnerre, 1985: 14). Mas
o que são, então, as condições de
produção? Elas compreendem
fundamentalmente os sujeitos e a situação. A memória também faz parte da
produção do discurso. As condições de produção incluem o contexto
sócio-histórico, ideológico. Neste caso, da Carta-testamento, o contexto
imediato é o Brasil, no período cronológico compreendido entre 1928 e 1954, o
presidente Getúlio Vargas, o momento histórico da escritura da carta e o próprio
fato de ser uma carta tipo testamento. Um contexto mais amplo seria a
conjuntura política da época. E, finalmente, entra a história, a produção dos
acontecimentos, que significam alguma coisa, sempre dependendo da conjuntura. As
condições de produção, que constituem os discursos, funcionam de acordo com
certos fatores. Um deles é a relação de
sentidos. Segundo essa noção, não há discurso que não se relacione com
outros. Os discursos resultam de relações: um discurso aponta para outro. As
condições de produção implicam o que é material
(a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social) e o mecanismo imaginário, que produz imagens dos sujeitos, assim como
do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Tem-se, assim,
a imagem da posição sujeito locutor
(quem sou eu para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que
eu lhe fale assim?), e também a do objeto
do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?) (Pêcheux,
1988). É, pois, todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. Esse
jogo é muito complexo, pois implica também em a imagem que o locutor faz da
imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o interlocutor faz da imagem
que ele faz do objeto do discurso e assim por diante. Tudo
isso vai contribuir para a constituição das condições em que o discurso se
produz e portanto para seu processo de significação. Na Análise do discurso,
não se menospreza a força que a imagem tem na constituição do dizer. O
imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. E é eficaz.
Ele não brota do nada : assenta-se no modo como as relações sociais se
inscrevem na história e são regidas por relações de poder. A imagem que se tem
de um sacerdote, por exemplo, não cai do céu. Ela se constitui nesse confronto
do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições.
Desse modo é que se acredita que um sujeito na posição de padre de esquerda
fale “X”, enquanto um da direita fale “Y”. O que nem sempre é verdade, fato que
torna a análise muito importante. Por meio dela “pode-se atravessar esse imaginário que condiciona os sujeitos em suas
discursividades e, explicitando o modo como os sentidos estão sendo produzidos,
compreender melhor o que está sendo dito” (Orlandi, 1999: 42) Não
é no dizer em si mesmo que o sentido é de esquerda ou de direita, nem tampouco
pelas intenções de quem diz. É preciso referi-lo às suas condições de produção,
estabelecer as relações que ele mantém com sua memória e também remetê-lo a uma
formação discursiva – e não outra – para compreender o processo discursivo que
indica se ele é de esquerda ou de direita. “Os
sentidos não estão nas palavras. Estão aquém e além delas.” (1999: 42). As palavras mudam de sentido segundo
as posições daqueles que as empregam. Elas ‘tiram’ o seu sentido dessas
posições, isto é, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições
se inscrevem. A formação discursiva se define como
aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição
dada em uma conjuntura sócio-histórico dada – determina o que pode e deve ser
dito. (1999: 43).
A
contextualização histórica, numa análise, é sobremodo importante, haja vista
que de época para época, há diferenças nos pontos de vista - as noções vigentes
em uma não serão as mesmas vigentes na outra, enfim, muda a conjuntura. Por
exemplo, se analisarmos um texto escrito no século XVIII, pensando a época na
Inconfidência Mineira, vamos propor um dispositivo que mobiliza noções que não
serão as mesmas se considerarmos o mesmo texto em função de uma outra época e,
do mesmo modo, em função de uma análise que visa compreender como neles se
encontram traços do discurso dominante, por exemplo. Os textos não são
documentos que ilustram idéias pré-concebidas, mas monumentos nos quais se
inscrevem múltiplas possibilidades de leitura. Nem tampouco nos atemos aos seus
aspectos formais, como já dissemos. A repetição de tais aspectos é garantida
pelas regras da língua – sua materialidade é lingüístico-histórica e interessa
ao analista, é lógico. Remete-se não às regras, mas às suas condições de
produção em relação à memória, onde intervém a ideologia, o inconsciente, o
esquecimento, a falha, o equívoco. O que interessa ao analista não são as
marcas em si, mas o seu funcionamento no discurso. Sendo
assim passarei a “relatar” o acontecido no período histórico onde se situa,
cronologicamente o texto em análise uma vez que, como já dissemos,
consideramos, como Certeau, a “história como operação”. A
partir do início de 1929, o Brasil presenciou o início das articulações com
vistas à sucessão de Washington Luís. O presidente procurou impor o nome de
Júlio prestes, político de São Paulo. Em agosto de 1929, iniciou-se a luta pela
sucessão. Três Estados – Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba – aliados às
oposições locais (Rio de Janeiro) organizaram a Aliança Liberal, que fez
veicular um manifesto no Rio de Janeiro e, a 20 de setembro, os nomes de
Getúlio Vargas e João Pessoa foram proclamados numa convenção, como candidatos
à presidência e à vice-presidência, respectivamente, chapa que mereceu o apoio
de grande parte do movimento tenentista. A
1º de março, o resultado das urnas indicou a vitória de Júlio Prestes.
Começaram, então, denúncias de fraude. Iniciou-se uma conspiração, que tinha
como foco o Rio Grande do Sul e à qual se associaram, além das forças políticas
que haviam composto a Aliança Liberal, apenas alguns tenentes. A
1º de Maio, Getúlio lançou um manifesto à nação, no qual apelava para que o
povo se manifestasse, operando a “necessária retificação”. A 26 de julho João
Pessoa foi assassinado no Recife, criando as condições favoráveis para as
articulações revolucionárias. Em outubro, Washington Luís foi deposto e assumiu
uma junta governativa. Em novembro, Getúlio recebe o poder de chefe do governo
provisório. Tentou organizar o novo governo compondo-o de diversas forças
políticas em que se apoiava. Em
julho de 1932 teve início a revolução constitucionalista em São Paulo.
Vitorioso, Getúlio teve que fazer concessões aos derrotados. Convocou eleições
para a assembléia constituinte, marcadas para maio de 1933. Nessas eleições, as
forças políticas tradicionais tiveram ampla maioria. A constituição, promulgada
a l6 de julho de 1934, era eclética. Ao mesmo tempo em que mantinha a
legislação social editada nos últimos anos e consagrava o princípio da
intervenção do Estado na economia, restabelecia, em grande parte, o quadro
político-jurídico anterior à revolução. Aprovou também a eleição indireta para
o próximo presidente pela própria constituinte, embora se esforçasse por
limitar os poderes do chefe da nação. Getúlio foi, então, eleito pelo
congresso. A
constituição de 1934 previa a eleição direta do presidente da república em
1938. Em 1937 surgiram candidatos e Getúlio sofria pressões para impor uma
solução continuísta. Sob o pretexto de que os comunistas estariam prestes a
desencadear a guerra civil, foi dado o golpe: no dia 10 de novembro foi fechado
o congresso e revogada a constituição de 1934, substituída por outra, elaborada
por Francisco Campos. Com
o advento do Estado Novo, Getúlio reprimiu toda atividade política e tomou
medidas econômicas de tendência nacionalista, como a criação do Conselho
Nacional do Petróleo e da Companhia Siderúrgica Nacional. A
segunda guerra mundial atrapalhou o governo de Vargas. Começou um
descontentamento geral com o seu governo. O processo de deposição foi
desencadeado quando Vargas resolveu substituir o chefe de polícia João Alberto
por seu irmão Benjamim, que não era bem visto pelo alto comando das Forças
Armadas. Getúlio,
eleito em 1950, volta à presidência, apesar da oposição tentar impedir sua
posse. Consegue apoio militar. No segundo mandato, entretanto, não teve
tranqüilidade. O “Manifesto dos Coronéis” foi uma grande prova do
descontentamento das Forças Armadas com o governo. Vargas tenta dar a volta por
cima, anunciando aos trabalhadores, a 1º de maio, um aumento de 100% no salário
mínimo, ao mesmo tempo que lhes fazia um apelo radical para que se organizassem
em defesa do governo. A oposição, em represália, intensificou sua campanha
contra o governo, denunciando o aumento salarial como inflacionário e demagógico
e, em meados do ano de 1954, apresenta no Congresso o pedido de impeachment do
presidente. A
pressão sobre o governo intensificou-se no congresso e várias instituições
aderiram à tese da renúncia de Getúlio, a começar pela Ordem dos Advogados. O
próprio vice-presidente João Café Filho, apresentou a fórmula da renúncia, pela
qual ele e o presidente renunciariam a seus mandatos. No
dia 22 de agosto, brigadeiros reunidos no Clube de Aeronáutica resolveram
apresentar ao presidente a exigência da renúncia imediata. No dia seguinte, o
movimento estendeu-se à marinha e ao exército. Diante do pronunciamento
militar, Getúlio reuniu o ministério e concordou com seu licenciamento, até que
todas as responsabilidades pelo assassinato do major Vaz, ocorrido quando do
atentado sofrido por Carlos Lacerda, a 5 de agosto, fossem apuradas. Às primeiras horas do dia 24,
recebeu a notícia de que o exército não aceitara a fórmula do afastamento
temporário e que o próprio ministro da Guerra optara pela tese do afastamento
definitivo. Diante do impasse, Getúlio põe fim à vida, com um tiro no coração,
deixando uma Carta-testamento de natureza fundamentalmente política. É essa Carta-Testamento que
pretendemos analisar neste artigo, à luz da Análise do Discurso. Tentaremos
levantar os sentidos e as imagens que vão sendo construídos pelo presidente
Vargas, ao longo do discurso contido no documento. Precisam
sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a
defender, como sempre defendi, o povo
e principalmente os humildes.(...) A
campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais
revoltados contra o regime de garantia do trabalho. (...) Quis criar a
liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás
e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. (...) Tenho
lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante,
incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim
mesmo, para defender o povo, que
agora se queda desamparado. Nada mais vos
posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de
alguém, querem continuar sugando o povo
brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar
sempre convosco. Quando vos humilharem,
sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado.
Quando a fome bater à vossa porta,
sentireis em vosso peito a energia
para a luta por vós e vossos filhos...Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de
meu sangue, será uma chama imortal na vossa
consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo
com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória.
Era escravo do povo e hoje me
liberto para a vida eterna. Mas esse povo
de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará
para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.(...) Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para
entrar na História. (Lamounier, 1988). Do
ponto de vista da interlocução, a Carta-testamento apresenta uma situação sui-generis. A interação acontece quando
o sujeito comunicante já está morto. É um morto, portanto, que fala e sua fala
utilizará dos veículos da mídia (rádio e imprensa escrita). Os
enunciados trazem à cena discursiva vários sujeitos: o próprio EU, referido no sujeito comunicante
Getúlio Vargas, os interlocutores (vos)
– povo – destinatário privilegiado e
os terceiros, ausentes - eles. Achamos
interessante abordar, nessa altura do trabalho, a noção de subjetividade de
Benveniste[1].
A
categoria de pessoa, para Benveniste (1988: 257) possui duas correlações: 1- a
da pessoalidade, em que se opõem pessoa
(eu/tu) e não-pessoa (ele), pessoas
da enunciação e do enunciado, respectivamente; 2- a da subjetividade, em que se
contrapõem eu e tu. A
primeira e a segunda pessoas do plural nós/vós,
por serem distintas, mostram que não há nelas um caso simples de
pluralização. Benveniste diz que a marca de plural assinala a ausência de
pessoalidade (1988: 258). O nós não é a multiplicação de objetos
idênticos, mas a junção de um eu com
um não-eu. Há três nós: um nós inclusivo, em que se acrescenta um tu ao eu (singular ou
plural); um nós exclusivo, em que ao eu se juntam ele ou eles (nesse caso o
texto deve estabelecer que SN o ele
presente no nós substitui) e um nós misto, em que ao eu se acrescem tu (singular ou plural) e ele(s) Benveniste
afirma que “esse nós inclusivo é algo diferente de uma junção de elementos
definíveis; a predominância do eu é
aí muito forte, a tal ponto que, em certas condições, esse plural pode
substituir o singular. A razão está em que nós não é um eu quantificado ou
multiplicado, é um eu dilatado (...)”(1988: 258). Isso
significa dizer que o nós anexa ao eu uma globalidade indistinta de outras
pessoas. É portanto, um nós
produtivo, pois por seu intermédio, o locutor pode associar-se a vários
referentes, sem especificá-los, o que faz com que ocorra a ambigüidade. Esse
fato implica em que esse mais de um’,
ou seja, uma não-pessoa discursiva ou pessoa não-nomeada é a que o ‘eu’ se associa para constituir nós, o sujeito político. Inicialmente,
o você aparece como outro – povo, humildes.. Há um implícito: você, portanto, é estratégia de interpelação. O interlocutor se
reconhecerá dessa forma. Há
um nós – “nossas riquezas”, que congrega eu
+ você, enquanto nação. “Riquezas”, por sua vez, remete ao
patrimônio cultural da coletividade de todos os brasileiros. Que
imagens estão ali construídas, de cada um desses sujeitos? Comecemos por EU
– é uma imagem construída com muitas faces. Senão vejamos: .
alguém que luta (“tenho lutado”) . defende permanentemente o
povo, principalmente os “humildes” (“para que eu não continue a defender, como
sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”). Aqui já observamos a presença de um enunciador – humilde -, incluso em um grupo maior de enunciadores
expresso pelo item genérico povo que,
aliás, está presente em todo o texto. .
resiste (“resistindo a uma pressão
constante, incessante”). .
silencia quando necessário (“tudo
suportando em silêncio”) .
perdoa (“tudo esquecendo”) . renuncia, sacrifica-se, dá a vida (“renunciando a mim mesmo”, “meu sacrifício ficará para sempre”,
“eu vos dei a minha vida”) o pronome
vos, do recorte, implica também no
grupo de enunciadores expressos em povo. .
ampara o povo (“agora se queda
desamparado”) . é
escravo do povo (“Era escravo do povo”) . é
responsável pela instauração do regime de garantia do trabalho. Ainda
percebe-se a construção de uma imagem de alguém que, na sua grandiosa
capacidade de discernimento político (enquanto líder) aceita o jogo fatal no
qual dá a vida para derrotar os adversários. (“eu ofereço em holocausto a
minha vida”). E,
finalmente, alguém que, conhecendo a conjuntura em que está escrevendo, talvez
numa “previsão do pós-morte”, pois já se decidiu pelo suicídio, tem consciência
do lugar que viria a ocupar na memória histórica e da repercussão que teria,
nacionalmente, seu ato (“saio da vida
para entrar na história”). Vejamos,
na seqüência, os sentidos criados em torno do ATO DO SUICÍDIO. Que
sentidos estão construídos em relação ao próprio ato? .
suicídio é uma compensação : a liberdade para quem era escravo (“libertação para a vida eterna”). .
suicídio institui um outro sujeito, um sujeito que passa para o plano da
História e nele vai ocupar um lugar grandioso. Vargas morto, “chama imortal”, “vibração sagrada”
(novamente o componente religioso), “memória
permanente”, “energia para a luta”, “bandeira de luta”. . o
suicídio é também sua “vitória sobre os
inimigos”. Derrotado em vida, Vargas proclama-se como sujeito vitorioso. O
suicídio constitui sua vitória. ‘Os
inimigos’ constitui um outro grupo de enunciadores representados pelos
partidos de oposição ao governo. Vejamos,
a seguir, os sentidos assumidos pelo pronome você: O povo assume três sentidos: .
enquanto parcela da nação – “povo” e
não totalidade da nação X em oposição a determinados grupos nacionais,
associados a grupos internacionais; .
enquanto setor dessa parcela maior – os humildes,
que pode ser pensado como interlocutor privilegiado.
.
constrói-se em associação à pobreza, humildade, sofrimento, fome; .
mas esse mesmo povo pobre é elevado à
condição de senhor do seu líder, que se assume como escravo. Em
nenhum momento são identificados esses adversários. Aparecem sempre
genericamente enquanto “forças”, “interesses”, constituindo enunciadores
coletivos. Nesse grupo estão os adversários do eu e, portanto, também de você;
“grupos econômicos e financeiros”, “pressão constante, incessante”, “aves de rapina”, “portadores do
ódio”, os que “escravizam o povo”. Que
matrizes ideológicas comparecem enquanto memória de outros discursos? Há
inúmeras marcas de componentes ideológicos mobilizados nesse discurso. Nos
recortes selecionados, é possível reconhecer a presença do discurso
nacional-desenvolvimentista, assumido pelo sujeito comunicante, a partir da
evocação do nome da empresa estatal criada em seu governo e que, durante
décadas, foi símbolo de soberania nacional e de desenvolvimento econômico no
Brasil -–a Petrobrás (que também
constitui grupo de enunciadores). De
que forma o discurso apela para os imaginários sociais? Como já se mencionou, a
análise permite recuperar uma complexa teia de sentidos mítico-religiosos,
utilizados como estratégia retórica de persuasão e de apelo, como é o caso da
própria transmutação da morte em “holocausto”,
em “bandeira de luta”, em “presença imortal”, “chama imortal” (que
evoca a luta), acompanhando o povo,
transmitindo-lhe energia, guiando-o, etc. Inúmeros
recursos retóricos são mobilizados nesse discurso: repetições retóricas “dia a dia”, “mês a mês”, “hora a hora”,
“tudo suportando”, “tudo esquecendo”;
metáforas: “chama imortal”, “aves de
rapina”; oposições: escravidão –
liberdade, escravo – senhor, ódio – perdão, vida – morte, vida – história. Poderíamos,
finalmente, reconhecer nessa complexidade de sentidos, um vago apelo à
resistência (“cada gota do meu sangue...manterá a vibração sagrada para a
resistência”) à luta que levaria à derrota do inimigo. Como
foi visto, pensar a Carta-Testamento de Getúlio Vargas implica pensar como ela
significa, quais são os sentidos produzidos nela e sobre ela pelos diversos
discursos que a configuram e interpretam. Segundo Maingueneau (1987) sujeito e
sentido são produzidos a partir de condições de produção sempre específicas e
determinadas. Um
outro aspecto que procuramos ressaltar são os diversos efeitos de sentido
construídos pelas palavras que consideramos chave, no discurso do presidente
brasileiro em questão. Essa pluralidade, produzida por deslizamentos de
sentidos, leva-nos a refletir sobre o seguinte: Qual é o limite entre real,
virtual e imaginário no caso do suicídio de Getúlio Vargas? Do
ponto de vista discursivo, o imaginário...não se constitui como um determinado domínio
de objetos, mas como algo inalienavelmente presente em todo material
significante (Sergovich, 1977: 31-32). E, dado que a relação do sujeito com
sua ‘realidade’ é mediada pela linguagem, o imaginário não se opõe à realidade,
mas é parte constitutiva dela. Por
refletir a realidade de tal ou qual maneira, são os sentidos (produzidos
pelo discurso na sua dimensão simbólica, isto é, lingüística) que dão forma às representações
(Idem:38) que definem a ‘realidade’ para o sujeito. Assim, em lugar de opor
‘realidade’ a imaginário proponho, parafraseando Sergovich, definir a ‘realidade’ como um efeito do imaginário. Entendemos,
a partir daí, a ‘realidade’ como um conjunto de evidências que aparecem para o
sujeito como necessárias, como imagem fiel do mundo. Essas evidências são
produzidas pelo funcionamento da memória
discursiva, que fornece ao sujeito os elementos do seu dizer. Em
outras palavras, se a realidade significa, isto é, se determinado estado de
coisas é interpretado como sendo ‘a realidade’, é porque os fatos fazem sentido
para o sujeito, eles ressoam (Serrani, 1993) num concerto de significações e
significantes presentes como memória discursiva. Segundo Orlandi (1996: 37), o sujeito é um lugar de significação historicamente
constituído pela memória discursiva. E
foi a história que mostrou que o recado foi compreendido. O impacto da morte de
Vargas levou multidões às ruas de todas as grandes cidades, e principalmente da
capital do país, diante das quais o adversário silenciou. Pelo menos por algum
tempo... BIBLIOGRAFIA AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. HÉTÉROGÉNÉITÉ MONTRÉE ET
HÉTÉROGÉNÉITÉ CONSTITUTIVE. DRLAV – REVUE DE LINGUISTIQUE (26). 1982: 91-151. BAKHTIN, M. MARXISMO
E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. São Paulo, Hucitec, 1981. BENVENISTE,
Émile. DA SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM. PROBLEMAS DE LINGÜÍSTICA GERAL,
vol. I. São Paulo, Editora. Nacional/USP, 1988. BORGES, Maria
Cristina Ramos. RONDÔNIA: O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO DA EMANCIPAÇÃO DO
ESTADO. (Dissert.) São Paulo, IEL/UNICAMP, 1999. CERTEAU,
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W. LINGUAGEM E ENSINO. Campinas, Mercado de Letras, 1996. GNERRE,
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Helena Moura. A GRAMÁTICA FUNCIONAL. São Paulo, Martins Fontes, 1997. ORLANDI, E.P..
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Michel. ANÁLISE AUTOMÁTICA DO DISCURSO. GADET;
HAK (orgs.). POR
UMA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO DISCURSO Campinas, Unicamp, 1993. __________. SEMÂNTICA
E DISCURSO. Campinas, Unicamp, 1988. __________. DISCURSO:
ESTRUTURA OU ACONTECIMENTO. Campinas, Pontes, 1990. [1] Alertamos, entretanto, que
Benveniste deixa de lado a possibilidade de participação de outras ‘pessoas’ no
discurso e trabalho somente a questão do eu/tu, fato que a Análise do Discurso
não concorda. Vide Pêcheux, 1969. |
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