Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 13 Vol. 1 - 2011 - Janeiro/Junho


Olhar do professor diante do texto do aluno[1]

Maria Janete Gonçalves Machado

 Introdução

                 O trabalho com a produção de textos vem nos mostrar que são muitas as dificuldades da escrita. Direcionando nosso olhar para a história da Língua Portuguesa veremos a trajetória na relação escola/texto, o que fica evidente é, dentre outras coisas, que o formalismo linguístico e a tradição gramatical têm sido seguidos com muita fidelidade pela maioria de nossos professores.

                As variedades linguísticas trazidas pelo aluno são desconsideradas em detrimento a um ensino monológico, um fazer pedagógico com insucessos, em que o professor detém o saber e o aluno é visto como sujeito assujeitado.

                Ao lado de tais considerações, podemos ver que o espaço do conhecimento do professor, sua formação acadêmica e seu envolvimento com o processo ensino-aprendizagem, estão tomados de uma concepção de linguagem purista e idealizada incluindo a sua experiência concreta. Acreditando estarem desenvolvendo um trabalho eficiente e contemplativo, porque julgam serem possuidores de informações, de conhecimentos que satisfazem a uma camada social, tais profissionais caminham satisfazendo aos anseios de um grupo social privilegiado (dominante) em que a língua é usada como objeto de opressão e discriminação social.

                A abordagem desse tema se justifica, pois, pela necessidade de levantar as causas prováveis que contribuem para um fazer pedagógico cheio de insucessos em que alunos se angustiam diante de aulas de leitura e produção de textos cujos professores repetem, como rituais, temas descontextualizados da vida e da realidade deles.

                Para explicar essa prática em que o professor acredita contribuir para a ascensão social de seus alunos, surgem questionamentos como esses: quais são os caminhos trilhados por esses professores? Como o professor vê o texto do seu aluno? O que eles acreditam ser ensinar Língua Portuguesa? As diferentes maneiras de ver o texto, dentre outros.

                Pretendo, com esse trabalho, deixar uma contribuição acerca de questões pertinentes à prática de produção de texto na escola, a importância atribuída à leitura-prazer dentro da escola pública bem como a importância dada à produção e criação textual.

 Como o Professor Vê o Texto do Aluno

 
               
Quando a língua é vista pela escola a partir de uma perspectiva mais tradicional, ou seja, como um sistema de formas estáveis, normativas e por isso mesmo hermética, o que se busca ao direcionar o seu olhar para o texto do aluno são as “imperfeições”. Por isso as correções são gramaticalistas e ortográficas, ficando com isso esquecido o que deveria ser o verdadeiro sentido do texto que é o de conhecimento do seu autor, a construção de significados.

                Esta prática pedagógica é perigosa e porque não dizer nociva para o fazer linguístico. Em nossas escolas o aluno não sente prazer em escrever, pois ele já sabe quem será o leitor de seus textos e quais os objetivos que o seu leitor espera alcançar. Consciente disso o aluno deixa morrer sua espontaneidade, suas verdades e, sobretudo, sua criatividade em detrimento a uma insegurança gramatical principalmente.

                Ao deparar com um texto escolar, o professor atua como caçador de desvios normativos. O resultado dessa prática são textos rabiscados (coloridos) apontando para toda a natureza gramatical, ortográfica e fonológica. O que menos lhe interessa é o sentido do texto, o que está por trás daquele emaranhado de palavras; a significação textual. O que para o aluno seria essencial, vai sendo mortificado à medida que ele escreve para ser avaliado como bom ou mau conhecedor das regras que regem uma linguagem idealizada, reacionária, purista, por isso mesmo morta. A língua é dinâmica, e é esse dinamismo que faz com que ela seja viva, variável e solta das amarras normativas tradicionais. A riqueza das variedades dialetais nos aponta para uma flexibilidade vocabular. Tendo conhecimento de qual é o olhar docente o aluno começa a hipocrizar seus textos a burlar sua consciência criadora para não contradizer a ideologia professoral.

                O mais triste de tudo isso é que a maioria desses professores acreditam estar contribuindo para o crescimento acadêmico desse aluno.

A Escola: Crescimento ou Alienação?

 
               
Entendemos a educação como um dos requisitos básicos à transformação social. Seu atuar é um esforço para atingir um objetivo de formar homens ideais para uma sociedade ideal.

                A escola pública ocupa um lugar de destaque para a formação de cidadãos. Esta, por sua natureza contraditória, se coloca a serviço dos interesses de uma classe dominante quando carrega, em seu bojo, uma ideologia e defende uma concepção de mundo.

                O professor atuante nessa escola subjaz um direcionamento político social que reflete em sua prática em sala de aula. SILVA JÚNIOR nos mostra que o poder social e político atinge também as instituições escolares do país levando os nossos professores a agirem conforme regras sociais ditadas pelo poder:

No plano dos critérios e dos valores que norteiam a organização social propriamente dita, é notória a absorção plena no Brasil de hoje das regras de poder e de comportamento determinados pela expansão e conceituação do capital. Tais regras, obviamente, se refletem na organização e no funcionamento das instituições escolares do país. (1993: 26)

                O sistema educacional brasileiro atribui ao professor a responsabilidade de divulgações de valores sociais como formar e informar a criança para o exercício pleno da cidadania. Nesse tipo de prática, que papel ocupa a linguagem? Como formar uma criança para conviver em uma sociedade desconhecida por ela e por seus familiares? Sabemos que a desigualdade social é refletida e, sobretudo, detectada na linguagem trazida por essa criança. De que maneira essas crianças poderão corresponder a um modelo que a elas não dizem respeito? Sobre isso ALMEIDA diz:

 Numa sociedade como a brasileira, que por sua dinâmica econômica e política, divide e individualiza as pessoas, isola as em grupos, distribui a miséria entre a maioria e concentra os privilégios nas mãos de poucos, a língua não poderia deixar de ser, entre outras coisas, também a expressão dessa mesma situação. (1984:13)

                 O trabalho que o professor de língua portuguesa desenvolve é um trabalho voltado para a elite na medida em que a linguagem é totalmente alheia à realidade. O desconsiderar o dialeto trazido pela criança deixa-a num patamar de inferioridade com relação aos dogmas pregados pela escola. Essa prática pedagógica é explicada na formação deste professor.

                Viemos de uma escola em que a tradição, o conservadorismo linguístico é “status” para a instituição. O aluno só sabe comunicar perfeitamente se fizer uso da norma culta da língua. Para a sociedade é inconcebível que um professor de língua portuguesa não domine todas as suas regras e exceções que estão contida na gramática normativa.

                Estando consciente dessa realidade e possuindo uma formação purista dogmática com relação à língua, o professor sente necessidade e, por que não dizer, obrigação em transmitir o saber que a ele foi concebido. Temos claro que tais professores desconhecem a sociolinguística e, mais ainda, que o sistema não valoriza essa ciência; tanto é que nos currículos de formação do magistério não existe essa disciplina.

               Observe a grade curricular do curso de magistério do nosso Estado.

                Com o desconhecimento sociolinguístico como o professor poderá entender as variedades dialetais trazidas por seu aluno?

                E se não as conhece, não as entende e, consequentemente, as desconsideram.

                Vejo que a formação de professores no curso do magistério está desde a sua implantação até os dias atuais incompleta, deficiente. Incompleta por faltar o conhecimento para a compreensão de uma visão social da língua; deficiente ou equivocada, por dissociar a literatura do ensino de língua portuguesa. Como o sistema educacional pode pecar tanto! Não será a literatura a forma mais dinâmica da língua portuguesa?

                Atentos para essas distinções, os linguistas se perguntam mesmo o que é ensinar o português. Por outro lado, muitos professores, inconformados com o bizantinismo dos programas oficiais têm tentado superar, na prática, a dicotomia língua/literatura. De que maneira essa prática vem acontecendo? Nas aulas de leitura e produção de texto. Nessas aulas, o aluno assume uma prática crítica e, assumindo tal postura, cria, recria e, sobretudo, atua como sujeito do discurso. Lígia Chiappini nos mostra que realmente essa dissociação de língua e literatura, essa dicotomia não é procedente, e que há uma preocupação em torno desse assunto para que equívocos dessa natureza venham a ser corrigidos:

Nos últimos vinte anos, com o aprofundamento dos estudos de lingüística e de teoria literária, tem ficado cada vez mais claro que o material com que trabalha a literatura é fundamentalmente a palavra e que, portanto, estudar literatura significa também estudar língua e vice-versa. (Chiappini apud GERALDI, 1997: 18)

                A literatura é a mais autêntica forma de estudar a língua, pois não se concebe estudar nenhum texto descontextualizado da palavra que representa o sujeito, sua forma de vida, seu mundo. Corroboro com Chiappini no que diz respeito ao estudo lingüístico língua/palavra viva.

 
O Olhar do Professor

                 Acreditando ser o lugar ideal para a transmissão do conhecimento, a escola adota uma postura única de que só ela detém e sabe transmitir o seu conhecimento. Tomada por tal postura, se coloca acima de seus alunos vendo neles pessoas carentes de saber e, portanto, desprovidas de ações recíprocas.

                Esse pensar e agir monológico pressupõe em um atuar reacionário e ultrapassado. A escola não leva em conta a diversidade de seu alunado, o seu conhecimento adquirido em família, na comunidade em que vive, que certamente o direcionará para um “fazer de novo”, no qual as experiências vividas pela criança dará um direcionamento que implicará em uma concepção filosófica educacional voltada para o conhecimento humano e social da escola. Enfim, a escola idealiza seu aluno, e aqueles que não correspondem às metas traçadas por ela são excluídos de um ou outro modo.

                Ao chegar na escola, a criança traz consigo toda uma cultura adquirida em família, em seu meio social, e depara com valores que a escola prega, que pode ou não se assemelhar ao dela. Quando essa interação não acontece, a escola alija a criança, criando barreiras que a fazem estagnar de tal maneira a se achar incapaz, e, consequentemente, é concebida como “criança problema”. Essa criança é deixada de lado por simples preconceito. Geralmente esse preconceito é externado pela linguagem. O dialeto usado pela criança é a forma mais eficaz que muitos professores encontram para classificá-la dentro de uma das suas potencialidades.

                Descobrindo-se diferente, a criança se silencia no seu mundo diferente e/ou procura reproduzir um mundo que agrade mais ao seu professor, pois percebe, com isso, que sendo autêntica, com sua história de vida, não chegará onde a escola quer que ela chegue. Será que para essa criança a escola está sendo benéfica? Não será essa uma das razões pelas quais encontramos muita resistência quando propomos ao nosso aluno que produza um texto?

                O professor ao tomar contato com o texto de seu aluno não o faz com o objetivo conhecer a criança, de interagir com ela. Chega muitas vezes a não se dar conta do que essa criança está tematizando em seu texto. A criança é essencialmente fiel ao seu mundo interior. Ela, por não encontrar espaço para diálogo, dialoga com seu texto muito livremente, o que faz desses textos um ‘corpus’ riquíssimo para o conhecimento do professor. Só conhecendo o seu aluno é que o professor fluirá em seu trabalho docente. Diz Solange Jobim e Souza:

 É por meio da linguagem que a criança constrói a representação da realidade na qual está inserida. Agindo, ela é capaz de transformar a realidade, mas, ao mesmo tempo, é também transformada por esse seu modo de agir no mundo. Sua participação na dialética da subordinação e do controle deve ser entendida a partir do papel que ela assume na recriação de sua realidade histórica por meio do uso que faz da linguagem nas interações sociais. (1996: 24)

                 Tendo o professor o conhecimento da importância que é conhecer o texto de seu aluno, pois este é a porta de entrada para o mundo dele o educador dispensará uma atenção especial para as produções textuais, pois é por meio delas que ele conhecerá e com isso estabelecerá uma interação social com essa criança.

 
A Crença no Texto

 
               
O trabalho com a produção de texto na escola, aparentemente democrática, porque oferece a oportunidade a todos de criar, é na verdade paradoxa. Ao estar diante dos textos das crianças o professor começa por fazer uma seleção de texto “bons”. O critério usado por ele na seleção de tais textos é, sobretudo, o uso da “norma culta da língua”. Isso pressupõe a existência de uma única modalidade linguística (padrão) que deverá ser ensinada e usada na escola por todas as crianças. A discriminação e o preconceito ficam evidentes nesse olhar do professor. Por desconhecimento e, como já foi dito, por falta de uma boa formação pedagógica ou mesmo por uma ideologia político-social, o professor não leva em conta que recebe crianças oriundas de diferentes classes sociais e, por isso mesmo, com variedades dialetais, forma própria de se expressar, de mostrar o seu mundo. Nesse aspecto, levam vantagens as crianças de classes sociais melhor privilegiadas, porquanto essas crianças, certamente, atenderão com mais facilidade aos anseios do professor no que diz respeito à produção de texto. Fazendo essa discriminação, o professor não dá conta de perceber que está promovendo cotidianamente na escola o silenciamento dessa criança, que acaba convencida de que não sabe escrever, já que o professor, em sua prática com a produção de textos, encarrega de mortificar a criatividade e, sobretudo, o mundo dessa criança, vejamos o que diz Sônia Kramer (1994: 82) a esse respeito:

“Poucas são as oportunidades de troca, de interação verbal, oferecidas pelos professores às crianças... a escola lida (com) e fala (das) “coisas da escola”. Desconsiderando o contexto sócio-cultural, os fatos concretos e as situações reais de vida, ela estabelece uma fenda entre os conhecimentos culturais/vivenciais das crianças e os conhecimentos escolares”.

                Voltando para as palavras de Gnerre, “a escrita é um bem certamente desejável”, porém desejar dominar o padrão normativo da língua não deveria implicar em sacrifícios, angústias e, sobretudo, medo. Deveria, sim, sinonimizar prazer e, por que não dizer, certeza em alcançar ou poder escolher sua forma de interação com o meio social que envolve o sujeito, pois

a verdade, a situação é um pouco mais caótica ainda. Simula-se que inexistem diferenças entre a variedade que se quer ensinar e a variedade que o aluno domina. Constata-se essa diferença é impossível esconder o sol com a peneira - mas age-se como não a escuta. Porque escutá-la para calá-la, mas ouvir vozes que preferiríamos caladas. Ou que outros preferem caladas. (GERALDI, 1997:90)

                Essa indiferença de que fala Geraldi é o que chamamos anteriormente de ideologia político-social e pedagógica. O professor impregnado de um conceito social em que a escola está voltada para os interesses de uma classe dominante, como respeitar e reconhecer uma outra verdade na criança? Ora, não é interessante que se busque na criança verdades, pois como a escola iria conviver com essas verdades sem contrariar o autoritarismo social?

                O professor acredita estar desenvolvendo uma prática interessante quando consegue fazer com que seu aluno “reproduza” em seus textos um discurso que não “choca” esse autoritarismo, um discurso “velado”, um discurso no qual a criança, para agradar ao professor, fala coisas num dialeto que é bem vindo ao sistema:

Uma verdade lingüística “vale” o que valem na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. (Gnerre apud Geraldi, 1997:43)

                O sujeito, neste prisma, é visto dependendo do seu lugar ocupado no grupo social, e principalmente a que grupo ele pertence. Se faz parte de um grupo dominante economicamente é mais aceitável o dialeto escolhido por ele do que um falante pertencente a um grupo menos privilegiado.

 Diferentes Formas de Tratar o Texto

 
                O Texto Serviçal

                 Ao perguntar aos professores com os quais convivi e compartilhei com eles uma prática pedagógica porque ensinavam o aluno a produzir textos, quase que em sua maioria responderam que o texto ajuda o aluno a desenvolver seu raciocínio, expressar melhor suas ideias, ajuda a compreender as regras gramaticais, a enfrentar os problemas.

                Diante de depoimentos como esses, fica clara a intenção do professor ao solicitar uma produção de texto. O objetivo que ele pretende alcançar com essa prática está muito longe de ser um meio de interagir com a criança e seu mundo. O processo de interação nesse texto é inexistente, pois o professor, ao lê-lo, não está interessado em discutir com a criança a tematização textual, seu mundo, mas em saber se a criança conseguiu assimilar questões gramaticais. O texto é considerado “bom”, se não apresentar problemas de ordem gramatical, mesmo que esse seja, por assim dizer, “comprometido no seu significado”.

                O para quê do trabalho desses professores tem uma intenção muito louvável: ensinar a criança a enfrentar as dificuldades da vida, vencer obstáculos. Nesse aspecto a leitura e a produção textual ganham um significado. Devo dizer que é “importante”; que as aulas de português sirvam para ensinar a criança a descobrir caminhos para a ascensão social. Mas devo dizer, também, que o sucesso alcançado será bem mais prazeroso se houver um conhecimento voltado para valores afetivos, humanos, em que professor e aluno possam interagir e com isso sair da dureza da realidade e viajar por mundos diferentes, criar. Paulo Freire (1988: 29) diz: “A sua leitura do real, contudo, não pode ser a repetição mecanicamente memorizada da nossa maneira de ler o real”.

                Podemos falar do real sem nos aliarmos a ele; o professor pode e deve despertar na criança a criatividade, a evasão, os sonhos.

Possibilitar que a criança vivencie a condição de autor, manifestar nela o poder de expressar, de mostrar seu verdadeiro mundo (exterior) e (interior). Estimulando, e não enfraquecendo com cobranças e imposições de regras e conceitos, o professor aproxima-se da criança e nasce com isso confiança mútua e, consequentemente, crescimento mútuo.

 

O Texto que Aponta

                 O olhar do professor se multiplica. É um olhar polissêmico. Não só para ajudar a enfrentar as dificuldades do mundo, para sobreviver, mas também para cumprir as exigências do plano de curso que o professor trabalha o texto na sala de aula.

                Sem saber muito o que fazer com o texto do seu aluno o professor direciona seu olhar para os “erros linguísticos”. Uma vez apontados, tais professores fazem um verdadeiro emaranhado nas criações textuais; em seguida, entrega-os aos seus verdadeiros donos sem nenhum comentário relevante.

                As crianças, tomando posse dos textos, mandam-os para o lixo, outras jogam no fundo da pasta escolar sem mesmo olhar as observações do seu professor (os riscos). Prática assim não seria o mesmo que “nadar e morrer na praia”? Qual o objetivo alcançado pelo professor com uma prática como essa? A meu ver, é apenas a de cumprir um programa estabelecido. Em conversa com os professores pesquisados o que pude sentir é que não sabem muito bem o que fazer com o texto depois de corrigido. Reclamam das “deficiências” dos alunos e acham que o trabalho com a produção de texto tomam muito o tempo escolar que já é pouco para tantas exigências. Um trabalho voltado para o “cumprir exigências” sem tomar consciência da sua importância é um trabalho “inútil” que, acredito, ao invés de despertar para a vida, mortifica o aluno criando nele aversão às aulas de produção de texto.

                Em vez de apenas assinalar os erros nos textos dos alunos e devolver-lhes, seria mais interessante fazer com que eles aprendessem a rever o que escreveram, para que se familiarize com os usos linguísticos. É imprescindível também a conversa com a criança sobre o texto produzido por ela. Essa conversa estabelecerá relações de conhecimento e fará com que a criança se sinta importante, pois saberá que seu texto não é para cumprir exigências, mas, sim, uma forma de entrada e vivência do professor/escola em seu mundo.

 
Texto - Prazer

 A linguagem permite não só o contato com o mundo externo, mas também o contado “consigo mesmo”, exercendo uma função crucial no processo de formação da consciência”. (Vygotsky)

                 A criança sente necessidade de ser compreendida; então a palavra verbal não é suficiente. Fica visível o lugar privilegiado que ocupam as interações sociais na construção de sentidos, e fica evidenciado o papel que ocupa a linguagem na criação do sujeito.

                Dessa forma, as atividades de criação de textos tornam-se um prazer, desde que a escolha de significados seja feita pela própria criança de acordo com sua necessidade, suas emoções... que o seu texto não seja cristalizado, direcionado pelo professor. Que o professor seja um mediador, em que o importante seja dar a criança a chance de construir livremente o seu texto e aprender a caminhar. É importante valorizar o texto da criança sem com isso deixar de interferir nele de uma forma a interagir com ela, entrar no seu mundo aguçando sua sensibilidade. Observe:

 O campo semântico da realidade, embora criado a partir da linguagem, não se esgota nas intenções estritamente verbais entre os homens, mas expande e se renova nas interações dos homens com o mundo dos objetos criados por eles. (Jobim e Souza, 1996: 66)

                Embora saibamos da importância desse espaço criador, o professor parece não assimilar muito bem isso. Os professores que convivi, em sua maioria, não conseguem encontrar tempo dentro do horário de aula para desenvolverem essas atividades, embora reconheçam a sua importância. Além do horário, alegam também falta de embasamento, de formação.

                Um outro fator abordado por “eles” na prática dessas atividades é o sistema como um todo. As cobranças para que os conteúdos programáticos sejam dados são muito grandes, tanto por parte da escola como por parte dos pais. Na língua, o que a escola e a família valorizam ainda é o “significante”. O significado não é muito compreendido, o que dificulta um trabalho desse porte.

                O professor tem que estar muito seguro de seus objetivos e deixar muito claro tanto para a escola como para a família a sua concepção de educação e de linguagem. Caso isso não ocorra, ele corre o risco de ser taxado de “professor enrolado”.

                Com uma postura tradicional, a escola ainda encontra dificuldades em aceitar práticas interativas, em que professor atua como mediador de um processo ensino/aprendizagem em que a criança tenha a liberdade de se construir como sujeito desse mesmo processo.

                Fica evidente que o texto-prazer é aquele que a criança cria, põe as experiências vividas em seu cotidiano, ou que sonham com elas. Nesse contexto, as criações fantásticas, o mundo maravilhoso é o mundo sonhado por ela. Os heróis, as bruxas e fadas e todas as personagens do imaginário aparecem em seus textos, vivificando as situações reais. Uma forma de solucionar problemas vividos por ela ou por sua família.


 Conclusão

                 Foi na observação da prática pedagógica que percebi o quanto é relevante o tratamento dado ao texto em sala de aula. Desde o texto trazido pelo professor para ser explorado em sala até os textos criados por seus alunos.

                Se quisermos realmente aprimorar o desempenho linguístico da criança no que compete à leitura e produção de texto, não pode se restringir apenas ao uso da norma culta da língua. O trabalho com o texto é polivalente. Considerando que o texto é feito de signos, recepções e formas diversas, que deixam muitos espaços vazios, criando ambiguidades e propiciando ao leitor o preenchimento desses espaços com sua leitura, com sua história de vida, e estabelecendo novas e diferentes relações semânticas do texto com o contexto, e do texto com outros textos, não podemos olhá-los apenas por um prisma: o prisma do “ideal”, mas também pelo prisma do real, vivo e dinâmico.

                Não podemos falar de produção de textos, de interpretações de textos sem antes, porém, falar sobre a “leitura”, sobre o ato de ler. Pois só cria textos, só analisa e interpreta textos quem lê. Nós sabemos que a escola não caminha muito bem nos processos de criação de leitor.

                A leitura é um processo complexo e não se restringe à palavra escrita. Não se lê apenas letras, palavras. Lê-se tudo que se encontra à nossa volta; cores, sinais, gestos, expressões, olhares, uma infinidade de outras coisas que para tal não tem necessariamente que ser letrado. É a leitura do mundo. Paulo Freire nos faz uma importante consideração a esse respeito: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele” (1988:11).

                Essa polêmica acerca da leitura, da construção de leitores e produtores de textos já, há bastante tempo, vem sendo tratada por teóricos e estudiosos da educação. mesmo assim não conseguiram sensibilizar a escola para essa problemática, por ela viver alheia a tal problema.

                À escola é dada a incumbência de “iniciar” a criança na leitura da palavra, dos textos. No entanto, ela se esquece de que a leitura da palavra pode e deve ser iniciada levando em consideração e utilizando-se daquela que a criança já possui; levando-a à aprender a leitura da palavra e ampliar sua visão de mundo, formando, assim, um elo: “a leitura do mundo e o mundo da leitura”.

                Assim, volto a insistir na complexidade do ato de ler. É necessário fazer correlações, apreciações, análises e críticas a respeito do texto lido. Ler, portanto, é um ato aprendido gradativamente e para que a criança avance no estágio da leitura é necessário que a escola desempenhe seu papel de, além de ensinar, proporcionar situações diversas de leitura e criação de textos, porque assim estará promovendo a socialização do processo criativo da língua.

                Dentre muitas maneiras de tratar o texto a mais considerável é que ele, na sua complexidade, garanta a preparação para vida, a sociabilização de ideias e nos permita prazer e, mais ainda, nos leve ao conhecimento do mundo real e imaginário.


Nota

[1] [N. do E.] A publicação desse texto faz parte do projeto editorial, realizado pela Zona de Impacto, com o intuito de republicar trabalhos que compuseram o periódico Caderno de Criação - ISSN 0104-9389. Esse artigo foi publicado no Ano VII, Nº 22, Junho - Porto Velho, 2000.


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