ISSN 1982-9108 - Zona de Impacto. Ano 15 - 2013 - Vol. I
Os rumos do movimento indígena Ticuna no Brasil: o papel das organizações nesse percurso (parte I)
Anderson Rocha de Almeida
PPGAS/UFAMRESUMO Este trabalho visa discutir as implicações da incorporação de modelos de organizações ocidentais implementado pelo povo Ticuna. Trata-se, portanto de traçar uma análise sobre a forma como esses modelos são incorporados e resignificados a lógica do grupo, focalizando o papel desempenhado pelos líderes do movimento nesse itinerário. A necessidade de se organizar diante de outros modelos que estabelecem outras formas de relações sociais teve implicação direta na organização social própria dos Ticuna, sendo que as discussões e negociações estabelecidas no interior do grupo se construíam através de alianças e conflitos faccionais, que na maioria dos casos visavam o controle político das organizações. Dessa forma o movimento indígena Ticuna tem sido conduzido por grupos de alianças que se revezam no poder, tendo na figura de seus assessores e instituições pró-índio a base de sustentação de suas atividades.
Palavras chave: Povo Ticuna, organizações indígenas, movimento indígena, facções políticas.
INTRODUÇÃO
As discussões que serão estabelecidas nesse trabalho estão voltadas para a análise do papel das organizações Ticuna na condução do movimento, procurando identificar os atores e instituições envolvidos nesse universo político, observando criticamente o papel destes últimos na mediação que se faz com o Estado nacional.
O alcance para tal discussão só foi possível graças a um trabalho de campo que se perfazia com visitas e observações in loco, bem como a participação em reuniões organizadas pelos líderes do movimento indígena Ticuna. Mas sem sombra de dúvidas as entrevistas com os dirigentes e integrantes das organizações se constituíram como marco principal de coleta de dados indispensáveis ao debate que nesse trabalho será desenvolvido. Não posso deixar de citar a minha experiência na Procuradoria da República no município de Tabatinga/AM que me proporcionou a visualização das reivindicações e inquietações que rodam o espaço político a que estão inseridas as organizações Ticuna.
Embora se tenha chegado ao fim do sistema de barracão atualmente o povo Ticuna vive em um universo de relações sociais, políticas, culturais, econômicas e religiosas que cotidianamente tem lhes submetido a uma reconfiguração étnica. O estreitamento com a lógica ocidental tem desembocado em um movimento em que os líderes do povo Ticuna têm a tarefa de decodificar para a linguagem de seu povo os meandros da “cultura do homem branco”.
Com o estabelecimento de uma ordem sociopolítica do Estado Nacional a etnia Ticuna assim como outros povos indígenas situados em território nacional terá um novo espaço político propício ao desenvolvimento de suas pautas de reivindicações. Dentro dessa nova conjuntura política os Ticuna, representado pelos líderes do movimento estabelecem nos princípios do ano de 1970, um significativo arranjo político repleto de alianças com os diversos segmentos da sociedade civil brasileira, com organizações pró-índio nacional e internacional.
O despertar para a luta pela demarcação de seus territórios foi que viabilizou a criação de organizações que pudessem servir de instrumento catalisador para a realização de seus objetivos. As discussões e negociações instituídas nas Assembléias Ticuna realizadas em suas comunidades figuravam a dinâmica de apropriação de uma nova forma de se organizar, para tanto se tornava necessário o estabelecimento de alianças co pesquisadores que pudessem ser por excelência seus assessores.
O Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT) foi à primeira organização indígena Ticuna e tinha a priori a missão de pressionar o Estado brasileiro para que esse viesse a demarcar os territórios por eles reivindicados. Essa “organização para fora” mesmo sendo criada através de uma participação coletiva vai acentuar ainda mais o faccionalismo político Ticuna, dividindo sob pólos grupos de famílias que disputavam os cargos de direção da organização.
Após a criação do CGTT surge à necessidade de mobilização orientada para o campo da educação, couberam àquelas lideranças que estavam à frente do movimento na luta pela posse de seus territórios à mobilização e o despertar para a organização na luta por uma educação laica e separada dos “princípios catequizantes”, “integracionistas”, “assimilacionista” que eram desenvolvidas pelos movimentos religiosos e pelas políticas indigenistas do Estado nacional, que tanto almejavam anular as diferenças étnicas, culturais, sociais, lingüísticas presentes no Estado nacional.
Envolvidos por um universo de relações sociais que havia lhes perpassado um sem número de doenças e epidemias que tiveram seus primeiros reflexos no século XVII com o surto de varíola. Pessoas ligadas aos líderes do CGTT e OGPTB criam a Organização dos Monitores de Saúde do Povo Ticuna (OMSPT) essa ampliará o leque de atuações do povo Ticuna revelando a existência de certa insatisfação com a centralização de poder político desempenhado pelo CGTT. Esse segmento que funda a OMSPT não visava apenas à resolução de problemas recorrentes no campo da saúde, mas em termos reais utilizaria a organização como um instrumento capaz de lhes proporcionar a ocupação de cargos diferenciados e um status também diferenciado.
Após vários anos atuando no campo da saúde e como decorrência de um processo de contratação de Agentes de Saúde junto a FUNASA alguns integrantes da OMSPT criam outra organização que reivindicava o status de “mais representativa e legítima” de seu povo no campo da saúde, a Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões (OSPTAS).
Com o propósito de criar um espaço privilegiado de diálogo entre os anciãos e os jovens. Na década de 90 do século XX os líderes do movimento indígena Ticuna em parceria com pesquisadores do Museu Nacional e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) criam o Museu Magüta na sede do antigo prédio do Centro de Documentação do Alto Solimões (Centro Magüta) e de colocar em evidencia pra sociedade local as características culturais de um povo que historicamente teve sua identidade étnica relegada à condição de caboclos.
Atualmente as lideranças do povo Ticuna criam a Polícia Indígena do Alto Solimões (PIASOL) motivado por um alto índice de violência em suas comunidades. Essa organização devido a sua auto intitulação de polícia indígena gerou grandes desconfortos naqueles que exaltam a soberania nacional e temem os separatismos indígenas, bem como colocou em cheque a legitimidade de suas atividades tanto para uma parcela do povo Ticuna quanto de alguns órgãos do Estado presentes na região do Alto Solimões.
A ORGANIZAÇÃO SOCIAL E AS RELAÇÕES INTERÉTNICAS VIVENCIADAS PELOS TICUNA DO ALTO SOLIMÕES
Baseado nos estudos de Roberto Cardoso de Oliveira (1996), João Pacheco de Oliveira (1988) e de tantos outros pesquisadores que dedicaram seus esforços teóricos e metodológicos na busca da explicação e compreensão do povo Ticuna, estabeleço as minhas análises acerca da organização social Ticuna e dos múltiplos fatores relativos às relações interétnicas que estarão contidos especificamente nesse capítulo.
Os Ticuna, assim denominados pela sociedade ocidental, são habitantes de uma região chamada alto Solimões, que faz fronteira com o Brasil, Peru e Colômbia. Sua população de acordo com o Instituto Socioambiental ISA (1998), chega à aproximadamente de 42 a 72 mil Ticuna, isso em uma estimativa que leva em consideração a população dos três países. No Brasil os Ticuna podem ser encontrados nos centros urbanos e áreas rurais ou territórios indígenas dos municípios de Benjamim Constant, Tabatinga, Santo Antônio do Iça, São Paulo de Olivença, Amaturá e Tefé, estes três últimos municípios são originários de antigos aldeamentos missionários que foram instalados às margens do rio Solimões, por jesuítas Espanhóis, vindos do Peru e liderados pelo padre Samuel Fritz (2006), isso em fins do século XVII. (Oliveira Filho, 1999)
De acordo com seu mito de origem, os Ticuna são originários do igarapé Eware, situado nas nascentes do igarapé São Jerônimo (Tonatü) que quer dizer na língua Ticuna “nosso pai”. De acordo com os estudos elaborados por João Pacheco de Oliveira Filho (1999), os Ticuna autodenominam-se magüta, que quer dizer na sua língua “povo que foi pescado com vara”.
Constatou-se em diversos trabalhos que a sociedade Ticuna está organizada de forma dual ou segmentada, ou seja, ela é constituída de dois elementos básicos, os clãs e as duas metades (aves e plantas). Os clãs possuem nomes próprios como (japó, maguari, urubu-rei) esses relacionados aos pássaros, mas há também aqueles que estão ligados a animais (onça, saúva) e outros relacionados a plantas (buriti, seringarana entre outros). Já as metades não possuem nomes próprios, e isso dificulta a classificação de um indivíduo às respectivas metades, mas essa dificuldade é encontrada naqueles que não partilham da cosmologia e cosmogonia Ticuna. Segundo Oliveira (1996) os clãs Ticuna são reconhecidos por um nome técnico, geral a todos eles, que é Kï’a, no idioma Ticuna. Em português, os índios traduzem-no por nação, o que demonstra a consciência que eles têm do clã como unidade significativa no “sistema social Tribal”. Nota-se que o contato constante dos Ticuna com a sociedade nacional, possibilitou a esses índios a construção de uma reflexão sobre o significado de seus conceitos e da aproximação de sentido deles com os conceitos ocidentais.
A origem das nações é relatada no mito principal dos Ticuna, o mito de criação do mundo, onde os irmãos Yoi e Ipi, seus heróis culturais, criam os homens e os separam por nações, ensinando como casar entre si. Neste tempo só existiam os imortais (üüne) e Yoi queria pescar seu povo. Usando uma fruta de tucumã como isca, os peixes que pegava se transformavam em animais: queixada, porco do mato, sempre macho e fêmea. Yoi, então, resolveu trocar de isca, e quando experimentou a macaxeira os peixes se transformavam em gente. Então pescou muita gente. Seu irmão Ipi também pescou o seu povo, mas eram todos peruanos. Aqueles que Yoi tinha pescado eram os Ticuna mesmo, eram o povo Magüta, que quer dizer povo pescado do rio. Esse povo, no entanto, tinha uma única nação e as pessoas não podiam se casar. Então, os irmãos resolveram matar uma jacarerana e fazer um caldo. Quando o caldo ficou pronto, chamaram as pessoas e todos os que provavam diziam o gosto e sabiam sua nação. Os primeiros que provaram receberam a nação de onça, depois veio saúva, e assim por diante, se criaram todas as nações que existem hoje. (ERTHAL, 1998, p.91-92)
Se procurarmos analisar as relações de parentesco Ticuna através do seu mito de origem, veremos que não existe o desejo de colocar as nações ou as metades em uma hierarquia. Oliveira Filho (1988) diz que a função das nações ou das metades se limita em auxiliar na regulação do casamento estabelecendo a proibição de contrair matrimônio não apenas dentro do mesmo clã, mas ainda, dentro da mesma metade a que esse clã pertença.
A descendência na sociedade Ticuna se dá através da patrilinearidade, onde o descendente adquire um nome próprio que lhe é passado por seu pai e consequentemente o pertencimento ao clã ou metade se dá através desse mecanismo. Seja em relação aos clãs ou metades, a descendência se institui por meio da identificação com o grupo, mas isso só é possível graças à existência de nomes próprios que estabelecem a distinção entre os indivíduos, classificando-os como pertencentes a clãs e metades distintas.
Existem dois casos no povo Ticuna que dificultam as explicações sobre as relações de parentesco e pertencimento clânico. Os clãs saúva (inseto) e onça (mamífero) fazem parte da metade planta, mas essa relação só é possível graças à cosmologia e cosmogonia Ticuna. Segundo Oliveira (1996) “a identificação de árvores com mamíferos é devido à concepção mística dos Ticuna da queda da alma (...) que certas árvores possuem. A alma da árvore deixa- a durante a noite sobe forma do animal com a qual árvore é identificada, voltando ao nascer do dia”.
Os mecanismos com que conta a sociedade Tükúna para atribuir aos seus membros o status clânico - e, em consequência, o de membro da comunidade Tükúna – fundam-se na descendência unilinear, agnática, isto é, no reconhecimento da linha paterna como técnica de “recrutamento por descendência” (...) (OLIVEIRA, 1996, p.96)
O sistema clânico dos Ticuna, não lhes da apenas a possibilidade de estabelecer a constituição de sua identidade e fronteira social frente ao “mundo dos brancos”, mas também diante dos próprios clãs do povo Ticuna como um todo. Mas a identificação de um indivíduo como pertencente a um determinado clã Ticuna só é possível através da enunciação do nome próprio, isso se constitui como uma espécie de código que é compartilhado por todos eles.
Majoritariamente foi a dissolução das malocas clânicas pelos patrões seringalistas que mais contribuíram para um aumento do número de incesto e infanticídio entre os Ticuna, já que passaram a coexistir indivíduos de metades opostas numa mesma unidade, o que permitiu a realização de casamentos dentro de uma mesma comunidade (...) (Erthal, 1998). Portanto é proibida a união de dois indivíduos que fazem parte de uma mesma metade, já que na cosmologia Ticuna eles seriam classificados como irmãos, e não poderiam jamais se casar, caso contrário, eram expulsos ou mortos pelo grupo, já que uma união indesejada entre dois irmãos se consolidaria como uma relação incestuosa, atraindo assim males e maus espíritos para o grupo.
Talvez a técnica mais usada com o propósito de intensificar a solidariedade tribal seja a troca de mulheres, realizada entre os diversos grupos de descendência que compõem uma sociedade segmentada como a dos Tukúna. A instituição que norteia ou estabelece normas a esse intercâmbio de esposas é o matrimônio. Por seu intermédio criam-se, entre os diversos segmentos, elos que se manifestam nos mecanismos de reciprocidade; esses mecanismos, por sua vez, começam a operar graças à consciência que os componentes de um segmento possuem da proibição de incesto (...) (OLIVEIRA, 1983, p.58)
Se tratando do matrimônio entre os Ticuna, Oliveira (1996) observou a existência de uniões entre primos cruzados matri e patrilaterais, mas no seio da sociedade Ticuna até pouco tempo o casamento preferencial era aquele estabelecido com a filha da irmã (casamento avuncular).
Geralmente o que leva um índio Ticuna cometer um suicídio, incesto ou infanticídio é a realização de uniões que são previamente proibidas, isso quer dizer que a quebra das regras de casamento ocasiona esse tipo de prática. Nesses casos quem sofrerá as consequências ou punições não serão apenas os indivíduos que praticaram a infração, mas todo o grupo, pois está aqui engendrada uma gama de relações, onde estão todos os sujeitos aos castigos sobrenaturais.
Também para as pessoas que realizam casamentos incestuosos as punições ocorrem a nível sobrenatural, quando uma parte de sua alma, aquela que ascende ao primeiro mundo superior, não consegue atravessar o portão de entrada que leva à casa de Taé, ou, caso consiga, é em seguida despedaçada pelos Tchoreruma, animais com corpo de anta e cabeça de peixe que executam o julgamento de Taé. (ERTHAL, 1998, p.95)
Fig. 1 Imagem que faz referencia ao mito Ticuna do “manatí-danta”. (Fonte: adaptado de www.natutama.org).
Uma figura bastante importante para os Ticuna quando se tratava de liderança política ou militar era to’ü (o líder de guerra) esse homem era treinado desde pequeno, com uma alimentação diferenciada que lhes ajudava na resolução de conflitos. Este possuía múltiplas habilidades, mais era na guerra onde ele se destacava com suas estratégias de ataque e defesa a clãs inimigos.
Mesmo tendo todo um prestigio e status diferenciado o to’ü não podia tomar uma decisão a partir de seus próprios desejos, pois ele era apenas uma espécie de “funcionário público” do clã ao qual ele pertença e, portanto a decisão era coletiva e não individual. Quando uma decisão individual ocorria por parte de to’ü este era expulso de seu “cargo”, e em casos mais raros havia até a morte deste, já que o grupo se sentia lesado em não ser consultado ou contrariado. Só em momentos de guerra que to’ü tem a tarefa de líder no povo Ticuna, quando a guerra se encerra ele volta a ser um simples membro de um clã sem status de liderança, pois as suas habilidades só podem ser postas em prática em momentos de guerra.
(...) Ele era escolhido ainda criança para vir a ser um to’ü. Aprendia todas as formas de luta que existem e conhecia melhor que todo o manejo das armas existentes. Usava lança comprida, zarabatana e um escudo de três círculos feito de couro de anta. Ele recebia uma alimentação especial, diferente das outras crianças, e se submetia a um tratamento para ficar muito forte (...) (OLIVEIRA FILHO, 1988, p.119).
Nos estudos de Oliveira (1996) e Oliveira Filho (1988) nota-se que a habilidade para dialogar com o “homem branco” era uma característica do líder to’ü, mas essa não se constitui como uma qualidade tão positiva para os Ticuna alegando eles que no tempo dos magüta não existiam “os brancos” e, portanto não precisavam desse mediador. Dentro dessa classificação de mediador se encaixa o te’ti, liderança mencionada por Nimuendajú (1929) que possuía essa característica.
Outra liderança existente na sociedade Ticuna era o yuücü (o feiticeiro) este não possuía tanto prestígio quanto o to’ü, pois as suas qualidades eram sempre postas em suspeita. Diferente de to’ü os yuücü eram distribuídos em um número considerável no interior dos clãs. Dependendo dos feitos dos yuücü estes possuíam graus diferenciados de prestígio junto ao povo Ticuna, isso dependia muito do tipo de eficiência de seus trabalhos.
Tendo em vista a progressiva dissolução das malocas e as constantes cisões clânicas, o líder to’ü que era indicado por seus atributos intrínseco e tendo o reconhecimento do povo Ticuna, segundo Oliveira Filho (1988) essa liderança foi perdendo toda a sua significação e não foi mais preenchido. É a partir desse momento que o patrão seringalista na companhia do Serviço de Proteção ao Índio- SPI e Exercito cria o tuxaua, uma liderança construída a partir dos princípios e desejos do patrão, e que, portanto não possuía o prestígio necessário para ser legitimado enquanto tal pelo povo Ticuna. O tuxaua servia aos desejos do patrão, ele por ser Ticuna conhecia os meandros de seu povo, e se apropriava dessa condição para persuadir seus patrícios.
Já o capitão o seu poder advinha do Exército e do SPI, este era utilizado como mediador entre o povo Ticuna e as agências de contato acima citadas. As suas habilidades se resumiam aos desejos do SPI, onde este último fazia uso dessa liderança para facilitar o seu controle diante dos Ticuna.
Os Ticuna no regime do seringal
A partir das duas últimas décadas do século XIX e início do século XX, a Amazônia como um todo se tornará um lugar por excelência da expansão de fronteira do Estado brasileiro, esse último influenciado majoritariamente pelos Estados Unidos e Inglaterra, países este que buscavam a apropriação da borracha ou “ouro negro” na época assim chamada, pois estavam envolvidos na Segunda Guerra Mundial.
No que concerne aos Tükúna, à tradicional beligerância entre eles e os Omágua (com vantagem sempre destes últimos) impediu por muito tempo a descida dos primeiros para as margens do grande rio, fato que os livrou de receberem o impacto com a civilização, ao menos com a mesma intensidade com que foram atingidos os Omágua. (OLIVEIRA, 1996, p.71).
Com um aumento progressivo do valor da borracha no mercado internacional, o Estado brasileiro se mobilizando, tratou de reunir um grande contingente de nordestinos para enviá-los para as áreas de maior produtividade do látex (Purus, Acre, Madeira e Baixo Amazonas). Sendo assim, poucos nordestinos se instalaram no Solimões, e com isso houve a necessidade de se utilizar o braço indígena para a implementação da empresa seringalista.
A chegada da frente de expansão extrativa trouxe consigo múltiplas formas de persuasão e submissão do trabalho indígena, sendo que os seus agentes faziam uso da força física em momentos distintos, na tentativa de inculcar na cabeça dos indígenas a sua suposta “superioridade branca”. A violência sofrida pelos grupos indígenas assim como os Ticuna, só era amenizada em proporções variáveis, através das missões religiosas, que procurava tornar os índios mão-de-obra voluntária e pacífica na conquista da Amazônia (Oliveira, 1996). Para tanto a catequese se tornou um elemento chave para a concretização dos projetos religiosos e coloniais então vigentes, pois através dela os missionários e capuchinhos ainda que de maneira parcial buscassem transmitir os códigos da cultura ocidental aos povos indígenas, e estes por sua vez às incorporavam de maneiras distintas, sendo cada um, orientados por seus próprios sistemas simbólicos.
Após a instalação dos Ticuna nas margens do Solimões, estes passaram a ser incorporados em um sistema de produção que desde as duas últimas décadas do século XIX já havia se assentado nas diferentes áreas da Amazônia. Mas devido à escassez de mão-de-obra para trabalhar nos vastos seringais amazônicos, os Ticuna assim como muitos outros grupos indígenas alcançados por essa frente de expansão foram recrutados para trabalharem na extração do látex.
A violência foi sempre algo muito presente no regime do seringal, não importando ao patrão quais seriam os métodos utilizados para a persuasão e submissão dos índios Ticuna ao regime, que ia desde os castigos físicos, até obrigação da troca de produtos agrícolas até as mercadorias que eram oferecidas no barracão, instrumento esse, que também estava sobre o comando do patrão.
Analisar a situação dos Ticuna no regime do seringal tomando como ponto de partida as situações que eram vivenciadas nos seringais do Acre e Purus seria no mínimo redundante, pois as relações estabelecidas entre o patrão e os Ticuna não se resumiam meramente as trocas do látex pelos produtos do barracão, nesses seringais o patrão também se apropriava da produção agrícola, da caça e do pescado, para o sustento e como uma fonte extra de acúmulo de capital.
Diferente da situação encontrada nos rios Javari e Curuçá, os Ticuna não foram atingidos nas mesmas proporções, ou seja, os Ticuna do alto dos igarapés sofreram menos impacto com a chegada da empresa extrativa do que aqueles que viviam nas margens do Solimões e que mantinham por sua vez relações comerciais ainda que de maneira esporádica com alguns centros comerciais da região. A instalação de um número considerável de índios Ticuna nas margens do rio Solimões facilitou a inserção desses no interior dos seringais, colocando- os em um novo sistema de trocas antes desconhecido por eles.
A empresa seringalista se caracterizou como afirma Oliveira (1996) pelo individualismo da produção, onde o índio, seringueiro, cuida isoladamente das árvores selecionadas para o corte. Esse tipo de trabalho marcadamente ocidental veio assolar as “formas tradicionais do trabalho coletivo”, transfigurando o “trabalho social” que visa o bem- estar do grupo.
Dizia Oliveira (1996) que durante os anos de maior intensidade de exploração extrativa, as atividades agrícolas quase desaparecem - forçadas pela ação da empresa que impede seus seringueiros de se dedicarem aos roçados. Mas isso não quer dizer que os Ticuna adotaram como forma de vida esse modo de produção, pelo contrário, nos momentos em que chegavam à colheita da mandioca, eles se reuniam através de um “ajuri” (trabalho coletivo onde uma pessoa ou família convida a comunidade), usando este como um pretexto para a reunião de parentes e amigos, (Oliveira, 1996) desenvolvendo estratégias de permanência cultural e social. Depois de um considerável período, os patrões seringalistas perceberam que os castigos físicos já haviam se configurado como o elemento básico para a permanência dos Ticuna no seringal. Após esse período seria, portanto viável tornar esses índios fregueses do barracão, para assim marcar de vez o domínio do patrão sobre os índios.
Os patrões seringalistas que se apossaram das terras tradicionalmente habitadas pelos Ticuna trataram logo de estabelecer as normas que deveriam ser seguidas pelos índios e regionais. Eles estabeleceram que fosse obrigatória a troca da produção por mercadorias que poderiam ser encontradas no barracão, ficando a encargo do patrão ou de seus encarregados à punição àqueles que burlem ou que tentem fugir às regras pré-estabelecidas.
Mesmo estando presos no sistema de barracão, onde as trocas eram restritas com o mesmo, os Ticuna ainda conseguiam se afugentar do domínio dos patrões, isso porque existia a presença muito forte de regatões na região do Alto Solimões. Os Ticuna que habitavam os igarapés Belém, Tacana e São Jerônimo, segundo Oliveira (1996) tinham suas cabeceiras em território colombiano, o que dá para os Tükúna neles residentes uma oportunidade de escaparem do controle das empresas, quando isso se faz necessário, seja para vender melhor os seus produtos, seja para fugirem dos maus-tratos recebidos dos empregados do seringal.
Após uma queda constante da produtividade e do “empobrecimento” das árvores como disse Roberto Cardoso (1996), os seringalistas perceberam que era necessário diminuir as pressões sobre os Ticuna, e desde então esses últimos passam a ter mais tempo de trabalho dedicado às suas “formas tradicionais” de se relacionar com a natureza, devido ao afrouxamento da autoridade do patrão.
Mesmo que as estratégias agora fossem outras, menos violentas e mais de cunho indireto, utilizando técnicas de convencimento, já não dava mais pra sustentar essa tradição do regime do seringal, pois o SPI havia se instalado na região do alto Solimões e a sua simples presença intimidava os seringalistas, pois se houvesse qualquer denuncia ou um flagrante de violência contra os índios, os responsáveis responderiam na forma da lei.
Mesmo estando inseridos num sistema de trocas comerciais, de bens e serviços, os Ticuna fazendo uso de suas “ferramentas culturais” procuravam minimizar os efeitos devastadores do tipo de relação que eram tecidos junto à sociedade nacional. Para tanto as “festas tradicionais”, assim como a “festa da moça nova” (Wareü) e os rituais de nominação das crianças se constituíam como “chamas” que mantinham viva as “formas tradicionais” de transmissão de conhecimento e de socialização da cultura Ticuna.
As políticas indigenistas do SPI e suas implicações entre os Ticuna
É a partir do ano de 1910 que o Estado brasileiro irá instituir o Serviço de Proteção aos Índios - SPI, esse órgão passava a ser o responsável pela aplicação das diretrizes da política indigenista nacional, ou seja, ficava a seu encargo, assegurar a integridade dos povos indígenas no Brasil. A presença do SPI na região durante esse período era meramente formal, com designação de um “delegado de índios”. (Oliveira Filho, 1999)
Mas o que efetivamente ocorreu com o Serviço de Proteção aos Índios- SPI foi à construção de uma política indigenista orientada a partir de suas próprias ideologias, imaginando sempre que o destino inefável dos grupos indígenas no Brasil era de se integrarem a sociedade nacional, atribuindo-lhes sempre uma condição de “incapaz”, ou seja, que os indígenas não teriam condições suficientes para se manterem vivos tanto do ponto de vista físico como cultural e que, portanto necessitavam de um tutor que lhes guiassem.
O que está sempre em cheque quando se trata da relação entre a política indigenista oficial de proteção aos povos indígenas e os grupos indígenas iniciada com o SPI em 1910 era sempre uma relação constante de forças atuando nesse campo das relações interétnicas, onde o primeiro classificava todos os povos indígenas em uma mesma categoria genérica e vazia “índio”, para assim facilitar o seu controle sobre esses povos, já que não haveria a necessidade de criar políticas indigenistas diferenciadas para suprir a necessidade de cada grupo indígena em questão. Na realidade o órgão protecionista não enxergava a existência de uma diversidade étnico-cultural dentro dessa categorização abstrata de unidade étnica dos povos indígenas.
Mesmo sendo criado a partir do ano de 1910 o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, a sua atuação em relação aos Ticuna só se concretizará de forma efetiva e com muitas variações, no ano de 1942, quando o estado brasileiro de maneira tardia percebeu que as relações existentes no Alto Solimões entre os Ticuna e os patrões seringalistas se constituíam de forma altamente negativa aos Ticuna (pois os patrões seringalistas faziam uso da força física para manterem os índios presos no seu seringal). Castigos físicos, pressões psicológicas praticadas por parte dos patrões foram os fatores que condicionaram a instalação do SPI entre os Ticuna.
Segundo Oliveira Filho (1988) o primeiro interesse mais concreto manifestado pelo SPI sobre os Ticuna ocorreu em 1929, quando foi confiada ao etnólogo Curt Nimuendajú a missão de “fazer uma visita à aldeia dos Ticuna”. O que o etnólogo alemão fez nessa sua viagem a serviço do SPI foi formular um relatório que continha informações sobre a cultura Ticuna e a relação de contato existente naquela região, e da qual os Ticuna estavam inseridos.
Durante toda a década de 30 se desconhece uma atuação do SPI frente aos Ticuna, só a partir do ano de 1940 que veremos uma documentação significativa elaborada pelo SPI, em relação aos Ticuna, mas até esta não era um todo convincente, já que condizia muito com a realidade vivenciada pelos Ticuna.
Assim como afirma Oliveira Filho (1988) a idéia era de no ano de 1942, sediar o Posto de Fronteira no igarapé Belém, no ano seguinte instalando os dois postos de alfabetização. A proposta de instalar o Posto Ticuna em Belém foi abandonada e, este foi transferido para Tabatinga, já que esta possuía a Guarnição de Fronteira – CFSOL e, portanto lhes dava o suporte necessário para trabalhar frente às atividades nocivas dos patrões seringalistas.
Poder-se-ia deduzir que a proposta do SPI desde a sua criação em 1910 é de preparar os índios, sejam eles Ticuna ou não, para se incorporarem a sociedade nacional, sem muitos transtornos, possibilitando a esses índios a incorporação dos novos códigos que ele deverá dominar. Essas idéias de criar Postos Indígenas ou Escolas Indígenas responsáveis pelas políticas indigenistas do Estado brasileiro vinham sempre de encontro àquela visão aculturativa, afirmando que o destino inefável dos povos indígenas é de se incorporarem a sociedade nacional, coisa que há muito tempo vimos não se tornar verdade.
Do ano de 1943 a 1945 o SPI irá viver um período de investimentos em escolas indígenas e no aumento do seu quadro de profissionais que atuavam em diversas regiões do país. Segundo Oliveira Filho (1988) a tendência do novo Inspetor, Alberto P. Jacobina, era de reforçar o Posto recém-criado. Outra atividade bastante desenvolvida pelo SPI e que aspirava aos desejos das políticas indigenistas nacionais era de engajar os Ticuna em um sistema de troca, onde os produtos produzidos por eles (farinha, milho, feijão etc) poderiam ser trocados junto ao Posto Indígena, ou serem vendidos nos mercados de Letícia e Peru, pois os valores pagos nesses mercados eram maiores do que aqueles oferecidos pelos patrões e regatões.
Após o ano de 1945 o SPI irá passar por uma apatia administrativa muito forte, pois os Inspetores que estarão à frente do SPI estavam intimamente ligados aos patrões. A relação entre estes era tão forte que um antigo encarregado havia sugerido também a transferência do PIT de Umariaçu para o Igarapé Preto (Oliveira Filho, 1988). Fica patente que o encarregado queria tirar a fiscalização ainda que fosse frágil do SPI de perto das terras dos seringalistas mais influentes da região.
Segundo Oliveira Filho (1988) os encarregados Manoel Pereira Lima, Cristóvão Emmerich Taumaturgo Lobo e Bernaldino Conceição foram aqueles que assumiram atitudes claras de defesa dos interesses dos índios perante os regionais. Com essas posturas os encarregados do SPI logo atraíram a desconfiança e a inimizade dos patrões seringalistas, pois eles iam de encontro aos desejos do patrão, lhes afrontando com denúncias dirigidas a Inspetoria Regional do SPI e Exército. Mesmo com todo um empenho desenvolvido pelos encarregados nada de mais rigoroso acontecia com os patrões, o que se via era um descaso com a situação dos Ticuna e no mais das vezes a transferência dos encarregados que combatiam a exploração de índios desenvolvidos pelo patrão.
(...) A tarefa do encarregado de um Posto Indígena, como representante local do SPI, era de tomar conta dos índios que residiam dentro da área sob sua jurisdição. Interpretações divergentes podiam ser atribuídas tanto à natureza quanto à abrangência do seu trabalho. (OLIVEIRA FILHO, 1988, p.228)
Quando o SPI estabelecia uma atuação mais constante nesse campo de relações interétnicas, as suas atividades eram vistas pelos comerciantes, patrões e entre outros regionais, como uma afronta ao desenvolvimento regional e nacional do país, e por vezes ele era classificado da mesma forma que os índios, como um “empecilho ao desenvolvimento regional”, como se esse órgão federal estivesse contra a integridade nacional.
Pensar nas práticas do SPI sem interligá-las ao Ministério da Agricultura seria minimizar por demais a sua atuação, pois quando o SPI foi criado ele fazia parte do Ministério da Agricultura. Oliveira (1972) diz que as várias tomadas de decisões do SPI estavam condicionadas às vontades dos grandes proprietários de terras ou de seus representantes, pois o Ministério da Agricultura estava sob o domínio desses latifundiários.
Após a instalação do SPI na região no ano de 1942 esse órgão de proteção ao índio irá se constituir como um lugar por excelência de refúgio de muitos índios. Mas é com o estabelecimento de um Posto Indígena em Tabatinga na área indígena Umariaçu que os índios “foragidos dos seringais contavam com acolhida e proteção certa, onde as histórias de cada uma das famílias relatam tensões e conflitos com “patrões ou seus assalariados (Oliveira, 1972).
Pensar que o Posto Indígena em Umariaçu resolveu o problema dos Ticuna em proporções gerais, ou melhor, que ele alcançou todos os Ticuna por igual, seria demasiadamente errôneo, pois as suas atividades atingiam àqueles que estavam mais próximos de sua jurisdição, deixando a mercê dos patrões seringalistas aqueles índios Ticuna mais afastados do Posto e das margens do rio Solimões.
Um ano após a instalação do SPI na região se verá um conhecimento mais claro por parte dos índios, da existência do órgão de proteção aos índios. Esse “período de nostalgia” foi proporcionado pelo encarregado do Posto Indígena Ticuna Manuel Pereira Lima ou como diziam uma grande parcela da população Ticuna “Manuelão”, este por sua vez permaneceu três anos entre os Ticuna que foi de 1943 a 1946. Ele desenvolveu atividades que procuravam tirar os índios Ticuna de um circulo vicioso de troca restrita com os patrões e regatões, lhes colocando em um novo sistema de troca, onde eles poderiam trocar seus produtos por dinheiro ou objetos.
(...) Logo em sua primeira fase de permanência na área, instalado no PIT, em Tabatinga, Manuelão adquiriu farinha de alguns índios e lhes forneceu em troca algumas mercadorias. O preço por ele estabelecido era muito superior àquele fixado pelo barracão. Em relatórios à 1º Inspetoria Regional de Manaus ele recomendou um novo estoque de mercadorias, pois “os índios têm voltado sempre ao Posto para trocar farinha”... (OLIVEIRA FILHO, 1988, p.162).
Manuelão percebendo a progressiva descaracterização do trabalho coletivo no povo Ticuna criou outra forma de atração e resgate do trabalho coletivo, para tanto ele inaugurou as chamadas “roças do Posto”, onde os índios que nelas estavam inseridos recebiam dinheiro em troca pelo serviço prestado. A adesão dos Ticuna para com esse empreendimento de Manuelão está associada diretamente ao seu mito de origem e ao seu herói cultural Yoi, pois este último em tempos passados havia descido o rio Solimões na busca por mercadorias no mundo dos brancos, prometendo trazer muita fartura para o povo Ticuna. Manuelão é, no entanto incorporado pelos Ticuna como o enviado de Yoi e deve conseqüentemente ser seguido.
Mesmo se configurando como um espaço de troca de bens e serviços, as roças do Posto não se diferenciavam muito daquelas que eram organizadas nas proximidades do barracão, pois estava posto em ambas a relação patrão-empregado, já que o encarregado do SPI era o responsável pelas roças e pelo pagamento das diárias, e era, portanto ele quem ditava as regras que deveriam ser seguidas na produção agrícola.
O PROTAGONISMO POLÍTICO DO CONSELHO GERAL DA TRIBO TICUNA - CGTT
Diante das relações de contato interétnico á que estiveram submetidos o povo Ticuna, é a partir da década de 1970 que essa sociedade vai (ainda que de maneira “prematura”) inaugurar um movimento que tem como pretensão o desvencilhamento por completo das relações de submissão em que eles estiveram submetidos dentro do sistema de barracão. Essa tarefa assim como a luta pela posse da terra teria que ser desenvolvida pelo nascente Conselho Geral da Tribo Ticuna (CGTT). Essa organização surge dentro de um processo de mobilização política indígena que tem na transição da ordem sociopolítica do Estado brasileiro (Ortolan, 2006, p.109) um novo espaço propício ao estabelecimento de novas formas de relações com o Estado nacional. Nesse contexto irão se intensificar as alianças entre os povos indígenas no Brasil e os diversos setores e segmentos da sociedade nacional e instituições internacionais.
É importante, antes de iniciarmos as reflexões sobre o CGTT, não perder de vista as discussões e negociações que se faziam constante nas reuniões organizadas no interior da sociedade Ticuna, e da parceria que esse povo estabeleceu com os pesquisadores que viviam em meio a seu povo e que se tornaram por excelência assessores indígenas, dando o suporte necessário as lutas do povo Ticuna. Não só as alianças com os pesquisadores deram as coordenadas para os rumos do movimento indígena Ticuna, mas de início foi muito forte a presença dos princípios dos movimentos religiosos e messiânicos, esses sendo representados pela Association of Baptists for Word Evangelism e pela Irmandade da Santa Cruz. Esses dois movimentos vão despertar nos Ticuna o desejo de ocupar cargos historicamente exercidos pelos “brancos”. Dentro desse contexto vão surgir às aspirações por cargos diferenciados, que uma vez sob os domínios de uma liderança específica esse vai “beneficiar” sua parentela e seus aliados (seja por laços matrimoniais ou político-ideológicos), portanto essa é uma das atitudes que irão acentuar ainda mais o faccionalismo social e político Ticuna.
Ainda que de maneira discreta a década de 70 do século XX é o ponto de partida para uma tomada de consciência coletiva antes não experimentada pelos povos indígena no Brasil, ou seja, é dentro de uma conjuntura política de ditadura militar com grandes repressões a mobilizações sociais, que o movimento indígena se unindo a setores da sociedade civil vai inaugurar um importante instrumento de luta e de diálogo entre os povos indígenas. Surgem então em 1974 às chamadas assembléias indígenas.
Mesmo que em outras situações históricas houvesse a necessidade de um líder que falasse em nome do grupo, essa “lacuna” entre os Ticuna começa a ser preenchida não com as indicações dos líderes tuxaua e capitão, respectivamente elegidos pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios, Comando de Fronteira do Alto Solimões (CFSOL) e pelos patrões seringalistas, já que não se correspondiam com aqueles atributos que o povo Ticuna julgava como legítimos para a indicação de um determinado líder. Pedro Inácio com a chegada da Irmandade da Santa Cruz vai se constituir como um líder “para fora”, assumindo o papel de intermediador entre o povo Ticuna e a religião da Santa Cruz, já que a sua estadia na casa do patrão Quirino Mafra lhe deu a condição de ser uma espécie de tradutor dos códigos da cultura do “homem branco” para uma linguagem que pudesse ser inteligível aos seus patrícios.
As assembléias indígenas se constituem como um espaço em que a troca de experiências e problemas vividos dá origem a uma noção de solidariedade indígena nunca antes experimentada (Neves, 2003, p.116) pelos povos indígenas no Brasil. Com o protagonismo político de Pedro Inácio Pinheiro (Ngematücü) e com a ajuda de outras lideranças, a participação do povo Ticuna nessa assembléia de 1974 só pôde ser possível graças às estreitas alianças que esse povo havia estabelecido com a Operação Anchieta - OPAN (instituição ligada a Igreja Católica) que lhes orientou sobre a importância da participação deles nesse encontro.
Tanto a OPAN quanto o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) patrocinaram a viagem de mais ou menos três lideranças Ticuna, dentre eles estavam Pedro Inácio da comunidade de Vendaval, Robertinho de Porto Cordeirinho e Paulo Mendes, este último se caracterizando como uma liderança importantíssima no diálogo com as instituições ligadas a Igreja Católica.
A participação das lideranças Ticuna nessa assembléia lhes proporcionou uma visão mais clara sobre o que era terra indígena e como eles poderiam se organizar em prol da posse da terra. No ano seguinte em 1975, Pedro Inácio Pinheiro realiza uma assembléia na comunidade de Vendaval. O objetivo desse encontro era apresentar ao povo Ticuna uma nova forma de se organizar para ver a concretização de seus objetivos.
O que demonstra não ser o povo Ticuna uma sociedade homogênea, estava expresso na diferentes posições relativas à luta pela posse da terra. Passados quatro anos após a primeira assembléia Ticuna em Vendaval. O ano de 1979 é marcado por litígios, majoritariamente advindos dos adeptos da Santa Cruz e Missão Batista. Nesse último ano, as discussões estabelecidas entre as lideranças e caciques das comunidades giravam em torno da pauta de criação de uma nova forma de se organizar. Estava lançada a proposta de se criar uma “organização pra fora”, ou seja, um instrumento que se apresentasse como uma representação fidedigna do povo Ticuna.
Segundo a liderança Santo Cruz, a assembléia de 1979 também foi realizada na comunidade de Vendaval, e tinha como proposta eleger através do voto a nascente organização que representaria o povo Ticuna. Dessa forma foi eleita a Associação Conselho Geral da Tribo Ticuna (ACGTT). Nas palavras de Santo Cruz “o lema desse encontro era três coisas: era a demarcação da terra, educação e saúde, esse era os três lema importante que podia fazer, com a terra demarcada aí o povo podia ter educação e saúde”.
Após essa primeira assembléia geral, muitas outras foram realizadas alternando-se entre as comunidades de Belém do Solimões, Campo Alegre, Betânia, Nova Itália, Umariaçú e em Porto Cordeirinho. A realização das assembléias nessas comunidades demonstra muito bem o peso político das mesmas, e isso se deve não apenas pela densidade demográfica, mas muito mais pelo fato de que as lideranças que estão à frente do movimento vivem nelas e, portanto concentram as decisões em seus interiores.
Como no inicio da década de 80 do século XX as principais lideranças do movimento indígena Ticuna concentravam-se nas aldeias maiores, a assembléia de 1981 organizada por Pedro Inácio e outras lideranças dos municípios de Tabatinga e São Paulo de Olivença, foi realizada na comunidade de Campo Alegre, “donde se trató sobre la necessidade de realizar la demarcación de las tierras indígenas Ticuna”. (Garcés, 2006, p.106). Nesse encontro foi eleita uma comitiva que iria até Brasília, levar um abaixo assinado referente às discussões e reivindicações ali debatidas.
Diante do desejo da posse da terra reivindicada pelos Ticuna, Pedro Inácio relata que ele juntamente com Paulo Cruz (antigo capitão da comunidade de Umariaçú) foi até a sede da FUNAI no município de Tabatinga/AM para receber orientações sobre os direitos que eram outorgados pela lei aos Ticuna. Aqui vale destacar a importância da assessoria do antropólogo João Pacheco de Oliveira, que comprometido com a luta dos Ticuna se caracterizava como um importante agente na condução do diálogo entre os lideres Ticuna e o Estado Nacional representado na figura da FUNAI.
No final do ano de 1970 a participação de pesquisadores (aqui representados pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira) vai ser crucial no despertar de uma consciência coletiva dos lideres do nascente movimento indígena desse povo. Nesse momento dada a necessidade e luta por um processo de regularização de suas terras os Ticuna perceberam a necessidade de estabelecer novas formas de organização que pudessem responder pelo grupo na ausência de chefias centralizadas, em uma sociedade marcadamente segmentar. (Erthal, 2006, p.221)
Apesar de um aparente universo de homogeneidade, os Ticuna conviviam no inicio da década de 80, com diversos tipos de visões relativas à posse da terra. Esse período vai ser marcado por dois segmentos que atuavam em domínios diferentes, mas advindos de um mesmo campo, o religioso. Os adeptos da Santa Cruz compartilham o desejo pela demarcação da terra, isso decorria especialmente pelo fato de que esse segmento tinha uma representação muito forte no movimento, que era Pedro Inácio Pinheiro. Por outro lado, os Batistas ou “crentes” tendo se engajado de uma maneira sistemática nos princípios religiosos protestantes batistas, vai relegar o elemento cultural Ticuna em prol dos dogmas religiosos, e isso se tornava mais visível nas visitas que Pedro Inácio realizava nas comunidades de tradição batista (Campo Alegre, Betânia e Umariaçú), ouvindo sempre que “o único ser capaz de dar a terra era Deus”.
Reduzir as negociações que estavam sendo construídas nas assembléias a esses dois segmentos do povo Ticuna, seria simplificar por demais toda uma rede de relações que desde o inicio estava subordinada as múltiplas visões e posições daqueles que lhe conformavam. Isso nos leva a crer como afirma Abreu Bruno (2006, p.239) “que as práticas sociais e políticas presentes nas aldeias são também como fios de uma complexa rede de relações, tecida cotidianamente por sujeitos que agem de acordo (ou não) com os arranjos e/ou conflitos políticos gerados no âmbito do seu grupo familiar ou da sua vizinhança”. Acrescentaria também que as articulações com agentes e agencias exteriores ao seu povo, constituem não só uma ampliação de seu leque de alianças político-ideológicos, mas de sustentação do movimento e de um segmento específico.
A vida no seringal havia deixado marcas profundas na memória coletiva dos Ticuna, e por mais que esta seja seletiva, eles não conseguiam apagar os múltiplos castigos físicos e pressões psicológicas que se faziam vivos e latentes em seus imaginários. As implicações desse período foram reproduzidas na luta pela demarcação de seu território, com destaque para uma parcela do povo Ticuna que acreditava cegamente que as terras por eles habitadas eram do patrão, pois este último apresentava a todo instante papéis que ele exaltava ser relativos à posse legal das terras. Já outra parcela significativa dos Ticuna foi seduzida a estabelecer laços de compadrio com o patrão, uma estratégia que o patrão adotou para modificar a sua imagem perante esses índios, e ser interpretado a partir de então, como um “homem bom, caridoso, gentil etc.”. Mas existiam aqueles Ticuna que viam nas relações de compadrio um meio de absorver “regalias” do patrão e construir assim uma imagem de um “índio leal ao seu patrão”.
Todo o processo de luta dos Ticuna pela posse da terra que foi inaugurado na década de 70 do século XX tem seus primeiros reflexos no ano de 1982, quando a FUNAI envia um grupo de trabalho (GT) com o fim de identificar as áreas Ticuna nos municípios de Fonte Boa, Japurá, Maraá, Jutaí, Santo Antônio do Içá e São Paulo de Olivença (Almeida, 2005, p.77). No ano de 1982 surge de uma forma mais articulada o Conselho Geral da Tribo Ticuna. Essa organização vai atuar inicialmente na coordenação para uma ação comum de defesa do território, implicando na criação de novos papéis que remetiam a representação de interesses do grupo junto às agências do Estado e da Sociedade Civil (Erthal, 2006, p. 222).
Desde a sua criação em 1982, o CGTT tem mantido um diálogo muito próximo com os líderes do povo Ticuna, e isso tem lhes dado uma legitimidade (pelo menos no início do movimento) para falar como a representação de seu povo diante do Estado nacional e sociedade civil. Mais essa aparente comunhão não anulou as discrepâncias existentes no interior desse povo, as diferenças religiosas, políticas e ideológicas só existiam dentro do grupo, já que o discurso que lhes apresentava tinha como principio “falar por uma única voz”, apresentando-se para o outro como uma “verdadeira comunidade”.
Como conseqüência de toda aquela mobilização política dos fins da década de 70 e início da década de 80, o ano de 1984 vai ser marcado pela chegada de um Grupo de Estudo (GE) composto por funcionários da FUNAI, de pesquisadores e membros da Pastoral Indigenista da Prelazia do Alto Solimões (Cruz, 2006) tendo como proposta a identificação das áreas reivindicadas pelos Ticuna através do CGTT.
Foi aprovado um número de sete áreas, como o Ewaré (incluindo um território não continuo na margem direita do Solimões, abrangendo de um lado Feijoal, de outro o conjunto de lagos e igarapés que vão do Assacaio até o Paraná do Ribeiro, e, pelo centro, até Camatiã), São Leopoldo, Betânia, Auati-Paraná, Estrela da Paz, Macarrão e Santo Antônio (englobando ainda terras em torno do Bom Intento). (CRUZ, 2006)
O CGTT tendo sido fundado em princípios da década de 80, só vai adquirir um peso político mais consistente a partir do ano de 1986. Nesse período as principais lideranças do povo Ticuna já articulados com inúmeros agentes e agências inauguram um importante mecanismo na condução de um diálogo mais horizontal com o Estado Nacional, surge então o capitão-geral, uma liderança que tem como princípio, em certa medida, a continuação das tarefas de uma “liderança tradicional”, que é um apaziguador de conflitos sejam eles advindos do interior do próprio grupo ou das relações deles com o “outro”.
O primeiro capitão-geral do CGTT eleito através do voto foi Pedro Inácio Pinheiro, num encontro em que estavam reunidas várias lideranças do Brasil, Peru e Colômbia, realizada entre os anos de 1985 e 1986. Essa liderança havia sido construída e orientada, sobretudo a partir daquelas primeiras lideranças criadas pelo CFSOL, SPI e patrão seringalista, respectivamente o tuxaua e o capitão. Apesar de que agora essa liderança foi eleita e legitimada pelo próprio povo Ticuna, mas por outro lado dominar o português e ser um mediador entre os Ticuna e as sociedades nacionais ainda se sobrepõe.
Ser capitão-geral não significa que as tomada de decisões partem de suas próprias vontades, pelo contrário, como afirma Pierre Clastres (2004, p.146-147) o poder nas “sociedades primitivas” não está separado da sociedade.Na realidade, que o chefe selvagem não detenha o poder de mandar não significa que ele não sirva para nada, ao contrário, ele é investido pela sociedade de um certo número de tarefas e, sob esse aspecto, poder-se-ia ver nele uma espécie de funcionário (não remunerado) da sociedade. (PIERRE CLASTRES, 2004, p.146-147)
As tarefas que deviam ser desempenhadas por essa liderança estavam basicamente orientadas para a demarcação do território por eles reivindicada. Isso significa que o capitão-geral do CGTT estava a todo instante sendo observado pela sua sociedade, e o não cumprimento de suas tarefas acarretava numa deslegitimidade, pois o poder não está no indivíduo mais no conjunto deste, no povo Ticuna.
Mesmo já mobilizados politicamente através do CGTT, os Ticuna enfrentavam os falsos discursos criados principalmente pelos patrões regionais, que alegavam que “os Ticuna não tinham direito a terra, pois eram ‘preguiçosos’ e nada iriam fazer (produtiva e economicamente) com a posse jurídica das terras”. Esse e muitos outros estereótipos criados pelos patrões regionais evidenciam o jogo político desses homens. Esses discursos estavam também sob o domínio simbólico, já que a linguagem utilizada se inseria de uma tal maneira no imaginário social local, reproduzindo assim uma imagem negativa e estereotipada dos Ticuna compartilhada pela população local. Isso em certa medida ajudou a entorpecer a demarcação do território Ticuna.A lentidão no processo de reconhecimento legal de suas terras foi contraposto um processo de pressão das lideranças por toda a década de 80 e ainda na ampliação de seu arco de articulações políticas. A necessidade de captação de recursos que pudessem dar sustentação às linhas de ação definidas nas reuniões dos Capitães promovidas pelo CGTT indicou a criação do Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões- Centro Magüta (ERTHAL, 2006, p.222)
Diante de um campo político nada favorável a demarcação de suas terras, os Ticuna sob a assessoria do antropólogo João Pacheco de Oliveira e da então artista plástica Jussara Gomes Grüber, criam o Centro de Documentação do Alto Solimões- Centro Magüta. De início essa instituição era administrada por esses pesquisadores. Mas mobilizados por uma autodeterminação e autogerenciamento os Ticuna num projeto de implantação gradual de uma Diretoria formada apenas por indígenas em 1990 elegem um nova diretoria para o Centro Magüta com maioria indígena.
A criação do Centro Magüta levada a cabo pelo CGTT se constituía na articulação para adquirir a verba necessária para a concretização da demarcação de seus territórios. Como bem ressalta a liderança Santo Cruz “para garantir a volta da terra, por isso que o Centro foi criado, pra dar apoio ao CGTT poder se locomover e puder se movimentar”. As palavras de Santo Cruz demonstram muito bem a situação de “engessamento” em que o CGTT se via diante do poder público, no caso aqui a FUNAI.
Alegando não disponibilizar da verba necessária à demarcação das terras, a FUNAI desde o início da década de 80 do século XX não tomava uma posição mais contundente em relação a essa demanda. Com a realização da Eco/92 no Rio de Janeiro os Ticuna tinham a sua disposição um evento singular na luta desse povo pela posse da terra. Pedro Inácio na figura de capitão-geral e, com o apoio de outras lideranças participa desse encontro levando as autoridades ali presentes um documento que relatava a situação em que os Ticuna se encontravam. E aproveitando a ocasião ele pediu a demarcação das terras reivindicadas pelo seu povo. De sorte, haviam representantes do governo da Áustria, que sensibilizados com a situação dos Ticuna, resolve assinar um convenio com o Centro Magüta (que dispunha de personalidade jurídica), disponibilizando uma quantia de $ 500 mil dólares para a demarcação das terras.A demarcação foi realizada, então, pela empresa ASSERPLAN Engenharia e Consultoria Ltda, com financiamento do governo da Áustria e sua agência financiadora, o Vienna Institute for Development and Cooperation (VIDC), supervisão técnica da FUNAI e o acompanhamento planejado das lideranças indígenas em suas áreas. (ERTHAL, 2006, p.225)
Todo o processo de organização e articulação dos povos indígenas no Brasil e, aqui no caso dos Ticuna reunidos através do CGTT, terá seu ápice do ponto vista político com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que passará a incorporar os povos indígenas como atores políticos ativos dentro de um Estado que se julga uno. Vale ressaltar que um dos aspectos mais marcantes dessa Constituição seja o fato dela permitir que os índios suas comunidades e organizações, como qualquer pessoa física ou jurídica tenham legitimidade para ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses. (Cruz, 2006, p.32)
A demarcação do território reivindicando pelos Ticuna se constituía desde a década de 80 do século XX como a principal demanda levada a cabo por suas lideranças. Tendo a verba necessária para a viabilização da demarcação de suas terras, o ano de 1993 se constitui como o período em que os Ticuna verão a delimitação e homologação de suas terras. Mas o início desse mesmo ano o CGTT na pessoa de seu coordenador-geral Pedro Inácio Pinheiro percorre do município de Tabatinga até Auati-paraná as principais comunidades Ticuna, tendo como proposta a construção coletiva de um mapa das áreas reivindicadas. Nesse momento se atribuirá uma importância capital ao “conhecimento ancestral” dos anciãos, como o suporte necessário a identificação dos lugares sagrados.
Quando o CGTT com a assessoria de pesquisadores criam o Centro Magüta, o que estava em jogo apontava basicamente para a constituição de uma instituição que pudesse atuar através de uma personalidade jurídica no campo dos convênios com instituições financiadoras. Portanto é dentro de um projeto de autogerenciamento que o CGTT no ano de 1996 realiza uma Assembléia na comunidade de Vendaval para debater sobre o Estatuto da organização e a sua posterior personalidade jurídica. Nesse mesmo ano como afirma Regina Erthal (2006, p.223), fica decidido em Assembléia Geral do CGTT, a liquidação do Centro Magüta, tendo sido indenizada e dispensada parte dos funcionários e todos os assessores não-índios, passando o patrimônio para a responsabilidade do CGTT.
Adquirida uma personalidade jurídica nos fins do ano de 1996 e inicio de 1997 o CGTT vai ampliar seu leque de atuações, passando a atuar em outros setores que antes ocupavam posições com menos destaque em relação à luta pela demarcação de seu território. A educação e a saúde irão adquirir um espaço privilegiado nas assembléias do CGTT, isso demonstrou que com a posse jurídica de seu território os Ticuna se sentiam mais seguros para lutar em prol de outras demandas.
Em 1997, o referido Conselho adquiriu personalidade jurídica própria e passou também a assumir o papel de formulador e gerenciador de projetos nas áreas de desenvolvimento, saúde e educação. Nessas áreas, são desenvolvidos projetos pilotos que se constituem em multiplicadores de experiências a serem implantadas em comunidades distintas, respeitando suas especificidades próprias. O CGTT também tem atuado no sentido de que essas experiências proporcionem a construção de um quadro de dirigentes e gerenciadores Tikuna capacitados para assumir as responsabilidades de formulação e implementação de propostas que refletiam as reais necessidades do seu povo. (CRUZ, 2006, p.18)
O caráter jurídico conquistado pelo CGTT possibilitará a ampliação de suas parcerias com instituições de fomento, isso significa que haverá também situações ambíguas nas quais as lideranças e coordenadores do CGTT terão que lidar. Por um lado essas instituições financiam determinados tipos de projetos e, que na verdade estão orientados a priori para atender uma demanda especifica, conduzindo as reivindicações indígenas à um modelo de atuação extremadamente desligada da realidade do povo. Por outro lado as lideranças e coordenadores passam a atuar em um universo de relações que constantemente manipula as suas ações, reorientando essas mesmas ações dentro de uma órbita que contribui para a fragmentação das reivindicações do povo Ticuna.
A situação jurídica do CGTT desde o inicio tem contribuído para uma centralização das reivindicações, da elaboração de projetos e da atuação do CGTT em outros setores, como a responsabilidade política do Convênio com a FUNASA numa tentativa de dar suporte às atividades de atenção à saúde Ticuna desenvolvida pelo Distrito de Saúde Indígena do Alto Solimões (DSEI/AS). Uma das pretensões do CGTT quando o mesmo assumiu o referido convênio, era construir ações diferenciadas no campo da saúde, “instrumentalizando” em certa medida as “formas tradicionais” de tratamento de algumas doenças para o estabelecimento de um diálogo entre a medicina ocidental e a “medicina tradicional” Ticuna.
Inseridos dentro de um universo de relações altamente desfavoráveis a uma vida tranqüila dentro de seu território, o CGTT também tem se preocupado com o campo de proteção de seus territórios contra a invasão de madeireiros, pescadores, caçadores etc.Após a realização do processo de auto-demarcação de 1993, que abrangeu as suas principais áreas, o CGTT continua atuando no acompanhamento do processo de regularização das terras e como canal de negociação de projeto de acompanhamento de demarcação e vigilância para aquelas terras cujo processo vem sendo executado pelo PPTAL/FUNAI. (ERTHAL, 2006, p. 228)
No campo da educação o CGTT propôs ações que se viabilizaram em certa medida a partir da criação da Associação dos Estudantes Indígenas Ticuna (AEITAS), organização fundada por filhos e parentes das lideranças e coordenadores ligados ao CGTT. Tendo como ponto de partida a implantação de um pré-vestibular para os estudantes indígenas Ticuna que desejavam se inserir no meio acadêmico.
Com a criação da Organização dos Professores Ticuna Bilíngüe (OGPTB) e a Organização dos Monitores de Saúde do Povo Ticuna (OMSPT), e as suas posteriores personalidades jurídicas e ampliação de suas redes de relações, essas duas organizações passaram a desempenhar projetos específicos no campo da educação e da saúde, descentralizando o gerenciamento desses dois campos, antes desempenhados estritamente pelo CGTT.
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