Este trabalho está publicado na Revista Zona de Impacto em três partes. a primeira encontra-se no Ano 15, em 2013 no Volume I, a segunda no Volume II do mesmo ano que a primeira parte.
Diálogos sobre a família na perspectiva da reforma psiquiátrica
3.1 A família na proposição da Reforma Psiquiátrica
A abordagem sobre a família no que toca a questão do sujeito com transtornos mentais tem sua trajetória juntamente com as terapias familiares que surgem nos Estados Unidos por volta da década de cinquenta. Com o amplo debate desencadeado em torno da reforma psiquiátrica em diversos países marcado, por sua vez, pela crítica ao tratamento tradicional, pelo processo de desospitalização, pela discussão da antipsiquiatria que propõe a desinstitucionalização, frisou-se ainda mais a necessidade de reformulação da atenção dirigida à família (PEREIRA, 1999).
Completa o autor acima que, a atenção sobre a família não deixa de adentrar também ao contexto dos serviços extra-hospitalares, pois estes serviços constatavam-se os mais procurados tanto pelos usuários quanto os familiares. Diante de tais preocupações visualizadas pelos profissionais do campo da saúde mental, novas influências principalmente da área psicossocial passam a configurar o novo contexto da atenção à pessoa com transtornos.
Conforme apontamos, é especificamente dentro do debate lançado pela reforma que passava a ser produzida uma reflexão e uma revisão sobre a teoria e a prática acerca da temática da família em relação ao seu familiar com transtorno mental. No Brasil, essas novas percepções adentram o campo da saúde mental por volta de meados da década de setenta, o que sinaliza destacar-se como uma das preocupações elucidadas no início do movimento dos trabalhadores em saúde mental.
Ao certo, a partir do que nos situa Pereira (1999), o projeto das Comunidades Terapêuticas desenvolvido na década de setenta no Brasil trouxe um significado concreto para o sentido do trabalho com as famílias. Dentro da definição traçada pela CT, considerava-se que a ‘doença’ mental atingia, além do indivíduo, o grupo em ele vive. Assim sendo, procurava-se dialogar com o meio familiar do paciente, a fim de também tratá-lo.
Diante das novas abordagens produzidas sobre o campo da saúde mental e das novas intervenções direcionadas ao tratamento da enfermidade mental, o significado atribuído à família desenvolvia-se sobre um princípio fundamental: a família era reconhecida como o elo entre a sociedade e o enfermo. Ao ser adotado esta percepção, a família passava a se configurar como também responsável pelo tratamento do enfermo.
Foi um passo importante aproximar os familiares ao contexto do tratamento empregado dentro dos asilos psiquiátricos. E mais que aproximá-los, Melman (2001) aponta que este passo influenciou diretamente na produção de novas experiências de tratamento, pois a família também passou a ter respectiva atenção.
Nessa trajetória, desenvolveram-se diversos trabalhos de terapia familiar, e por consequência, este momento "representou um grande avanço para a intervenção na área familiar, principalmente no que concerne a gama de conhecimentos que foram elaborados em torno da família" (PEREIRA, 1999, p. 246).
No entanto, de acordo com o que nos afirma Melman (2001), mesmo a família sendo percebida como essencial no tratamento do sofrimento psíquico, sua importância só foi efetivada dentro dos serviços de saúde no Brasil, após um intenso processo de mobilização gerada por parte dos familiares de usuários do Centro de Atenção Psicossocial de São Paulo, no início da década de noventa.
Somente após estas mobilizações, é que podemos considerar que o atendimento terapêutico voltado para a família e os pacientes, seguiu em direção a uma maior interação entre os serviços de saúde com a instituição familiar. Para Pereira (1999) ao citar Melman (2001, p. 256), o significado destas mobilizações corresponderam, sobretudo, aA participação da família no tratamento do sofrimento psíquico bem como a necessidade de garantia da atenção sobre estes sujeitos vê-se, portanto, que foram forjadas na organização e disposição dos próprios familiares em compreenderem suas responsabilidades diante do respeito à singularidade, do respeito à vida.um exemplo de coerência com a perspectiva da desinstitucionalização psiquiátrica na busca da interação da família no tratamento e na criação de uma rede de solidariedade, que viabilize àquela possibilidade de lidar de forma mais saudável com o transtorno mental.
Ao ser elaborada a política de saúde mental no Brasil a perspectiva colocada por essa política assistencial concebe assim, a presença da família como um dos recursos essenciais no que diz respeito às estratégias de intervenção sobre o transtorno mental.
Por conseguinte, ao determinar que sejam construídos serviços substitutivos de atendimento em saúde mental, orienta-se à existência de uma dinâmica que reforce a importância de um espaço que possibilite: troca de experiências, produção de conhecimento, valorização das potencialidades.
A legislação brasileira de saúde mental destaca assim a família como recurso para o tratamento terapêutico e como podemos observar no parágrafo II da referida lei, fica determinado que o tratamento direcionado à pessoa com transtorno mental deve alcançar exclusivamente sua recuperação pela inserção na família (BRASIL, 2001).
Levando em conta que falamos da proposta antimanicomial no que toca internos de hospitais de custódia, cabe mencionar que a resolução nº 05 de 2004 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, enfatiza em uma de suas dezoito diretrizes traçadas, que também devem ser incluídas ações direcionadas aos familiares, como forma de estender o tratamento também a estes sujeitos.
Ainda assim, convém salientar que a família ao ser definida como parte integrante no tratamento que deve ser disponibilizado ao sujeito com transtorno, a mesma não deixa de necessitar atenção específica, pois tal como mencionamos ao falarmos do indivíduo com sofrimento mental, entendemos que estas são experiências que não deixam de provocar abalos no contexto da estrutura familiar (ROSA, 2003).
Para a discussão que aqui colocamos importa também recordarmos o que ficava previsto no relatório final da III Conferência Nacional de Saúde Mental, onde o mesmo ressalta que a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por outras formas de assistência deve exigir a potencialização do papel dos familiares nos cuidados dos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2004).
Dentre as propostas traçadas fica fortalecida a política de substituição à lógica manicomial, procurando investir e fortalecer nos novos dispositivos vigentes, sendo, portanto, a família considerada principal ferramenta na ampliação e difusão da reforma psiquiátrica. Nesta perspectiva,Com base na discussão que apresentamos acima, ao voltarmos nossa atenção sobre o trabalho desenvolvido pela equipe multiprofissional no hospital de custódia de Manaus, constatou-se que todos os profissionais entrevistados realizam atendimento frequente aos familiares. Os atendimentos variam em relação à solicitação do profissional, do familiar e da própria instituição.a família passa a ser mais que um receptor de intervenção por parte dos profissionais, tornando-se um agente ativo no próprio processo de apoio psicossocial, no desenvolvimento de projetos e no planejamento e avaliação dos próprios serviços, vindo a interferir, inclusive na própria política de assistência psiquiátrica (PEREIRA, 1999, p. 259).
Conforme o gráfico 07, nota-se que a atenção à família ocorre em maior parcela mediante a intervenção do profissional. O que estes nos revelam é que essa atenção ao familiar é basicamente direcionada pela necessidade ou de se obter dados sobre a vida pregressa do internado ou para que sejam discutidos problemas relacionados ao desenvolvimento do interno na instituição.
Quanto aos 36% dos atendimentos (gráfico 07), que os profissionais sinalizam como solicitados pelos familiares, de acordo com estes sujeitos são requerimentos que surgem pela preocupação dos familiares em relação à situação do seu parente internado. Os entrevistados salientam que os familiares procuram obter informações a respeito da situação do interno em relação à saúde, tempo de cumprimento da medida de segurança, necessidade de algum material de higiene pessoal. Bem como, às vezes o atendimento é solicitado pelo familiar apenas para que este estabeleça uma aproximação com o parente internado.
Gráfico 07: Solicitação dos atendimentos Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Não obstante, 18% dos entrevistados ao destacarem que o atendimento ocorre quando solicitado pela instituição, revelam a necessidade de se disponibilizar atenção multidisciplinar à família para que sejam discutidas questões referentes a casos particulares.
Em relação a este último questionamento, que implica no atendimento familiar a partir da atenção multidisciplinar, ao indagarmos os profissionais sobre o atendimento multiprofissional, observa-se que 40% dos profissionais ratificam a importância desta abordagem como forma de se trabalhar a desinternação. No entanto, 60% dos demais entrevistados revelam que somente às vezes é realizado atendimento multiprofissional, isto é, quando há necessidade de um possível tratamento a ser realizado, como no caso dos internos que serão desinternados e necessitam do acompanhamento psicossocial, pois este acompanhamento envolve uma atenção maior, já que é a preparação da aproximação entre a família e o interno para que seja trabalhado o retorno deste ao meio familiar.
Com base nestes dados podemos evidenciar que a atenção à família ocorre mediante a necessidade de cada internado, ou seja, são ações desenvolvidas para a família e somente são efetivadas para que seja cumprida a desinternação do custodiado. Essa intervenção diferencia-se da atenção específica voltada às famílias, ou seja, uma atenção que seja desenvolvida dentro de um plano ou projeto que envolva de uma forma geral todos os que estão inseridos neste serviço de assistência psiquiátrica.
Colocamos acima esta reflexão, pois, conforme Pereira (1999) e Vasconcelos (2003), o trabalho com as famílias a partir de um enfoque de grupo representa uma importante superação no que trata a questão dos cuidados na família, já que permite o intercâmbio entre variadas experiências, trocas de informações que passam a ser promovidas e orientadas em um âmbito formal pelos profissionais capacitados para a atuação com a realidade do transtorno mental.
Por conseguinte, ao indagarmos os profissionais sobre as atividades que realizam junto aos familiares, podemos observar (gráfico 08) que as principais delas dividem-se em atividades socioeducativas e terapêuticas.Os profissionais também citam que tais atividades ocorrem fundamentalmente na instituição, pois esta é tida como principal referência para os familiares, já que é lócus do serviço por eles utilizado.
Gráfico 08: Tipos de atividades que os profissionais desenvolvem com os familiares.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Ambas as atividades demonstram que a atenção destinada às famílias está inserida em uma lógica que vai de acordo com o que está previsto na reforma psiquiátrica, sendo, portanto, um recurso potencializador o trabalho com as famílias a partir destas estratégias que constituem um momento de articulação entre os serviços oferecidos e a própria participação social dos usuários. Porém, na medida em que estas atividades não se constituem como parte de um programa ou projeto específico desenvolvido pela instituição, produz-se uma lacuna que impossibilita reforçar e ao mesmo tempo ampliar as formas de organização destes usuários.
Outra atividade destinada aos familiares são os eventos sociais. São atividades que obedecem ao calendário das principais datas festivas, ou seja, ocorre em cumprimento ao calendário anual já estabelecido pela equipe multiprofissional. Para os entrevistados, este momento é considerado de total participação por parte dos familiares, e na ocasião destes eventos além de se perceber a situação do interno em relação ao seu meio familiar, é possível também que seja estimulada a aproximação dos custodiados com os demais participantes presentes, sendo ao mesmo tempo admissível para a equipe visualizar a situação dos laços familiares em relação a cada institucionalizado.
Nossas reflexões nos levam a considerar que mesmo fora de planos e ações específicos, as medidas adotadas pela equipe do hospital de custódia inserem-se em um contexto de perspectivas que procuram dar sentido à participação da família como fator essencial no tratamento dos internados. Todavia, uma das críticas levantadas na abordagem sobre a família, é de que as ações destinadas a este grupo devem ser orientadas por objetivos específicos, como forma de potencializarem a família para que estas possam lidar com a situação do ente com sofrimento psíquico.
De acordo com Rosa (2005), é importante entendermos de que falamos de uma abordagem que está inserida em um claro campo de tensão. Ou seja, na medida em que os profissionais da saúde mental objetivam lançar sobre a família intervenções específicas, os mesmos encontram diversos obstáculos para efetivação destas intervenções. Obstáculos que vão desde as fragilidades da família sejam de ordem emocional, econômica, social, às fragilidades presentes no próprio campo profissional como, por exemplo, questão da precarização profissional, que implica no número reduzido de profissionais que possam atuar junto às famílias. A fala de um dos entrevistados ao sinalizar que “às vezes é difícil conciliar o tempo da família com o interno” (Entrevistado 01, Pesquisa de campo, 2012), nos permite evidenciar o que acima salientamos, pois nela reflete sua preocupação diante da dificuldade em se articular com maior especificidade a atenção a estes sujeitos.
Em relação à concepção dos familiares sobre a reforma, podemos constatar que maior parcela dos entrevistados afirma que já ouviu falar sobre a reforma psiquiátrica. Não obstante, de acordo com o que se visualiza no gráfico 09, pode-se perceber que há uma pequena parcela que demonstra não ter nenhum tipo de contato com a temática abordada.
Gráfico 09: Familiares que ouviram falar sobre a reforma psiquiátrica e os meios pelo qual tiveram acesso.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
De acordo com o gráfico acima, a mídia televisiva destaca-se como principal meio pelo qual os familiares ouviram falar sobre a reforma. A informação por eles obtida surge com base na informação apresentada pelo noticiário local e que anunciava sobre o fechamento do único hospital psiquiátrico da cidade, o Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. A notícia, conforme nos colocam os familiares, elucidava também que o tratamento que antes se realizava no hospital seria trocado para as novas formas de atenção, que é o caso do CAP’s. Para estes sujeitos, relacionava-se a ideia do encerramento do asilo com o que provavelmente seria a reforma psiquiátrica.
Verificou-se também que 17% (gráfico 09) dos entrevistados destacam que ouviram falar sobre a reforma psiquiátrica dentro do próprio hospital de custódia, bem como no contato com a rede de saúde mental. A menor parcela frisa ainda outros meios informativos tais como a internet, o jornal impresso, assim como o diálogo com amigos e conhecidos. Alguns destes sujeitos mencionam que ouviram falar que a reforma significa novas formas de tratamento direcionado ao ‘doente’ mental.
No diálogo com estes sujeitos percebemos também que, apesar de alguns afirmarem que já ouviram falar sobre a reforma psiquiátrica, os mesmos nos deixavam claro que não lembravam o que exatamente ouviram. Notamos ainda, que alguns manifestavam a preocupação em compreender a situação do interno com transtornos mentais e por esse estímulo os mesmos acabavam entrando em contato com o tema, tal como podemos ver na fala de um destes sujeitos que nos destacavam que a reforma pode ser entendida pela “importância da convivência com os problemas do deficiente” (Entrevistada G, pesquisa de campo, 2012).
Consideramos, além disso, que estes procuram fazer ligações entre o significado da palavra ‘reforma’ ao sentido de mudanças, tal como percebemos na fala de um dos entrevistados que salienta: “é o tratamento para que a pessoa volte ao normal” (Entrevistado f, Pesquisa de Campo, 2012). O retorno à normalidade não deixa de fazer parte do repertório de definições destes sujeitos que lidam com o ‘anormal’.
As ideias que estes sujeitos nos apresentam variam assim entre o conhecimento adquirido pelos meios midiáticos, pela convivência no grupo social, bem como no contato com o próprio serviço de saúde mental. Por conseguinte, somos levados a inferir que, mesmo lentamente, as famílias vão construindo uma percepção em relação ao que possivelmente relaciona-se à reforma psiquiátrica.
Dentro dessa discussão, ao interrogarmos os familiares se estes conhecem alguma associação, grupo de apoio, projeto ou programa que ofereçam apoio ou orientação aos familiares de usuários dos serviços de saúde mental, todos os entrevistados afirmaram que desconhecem qualquer tipo de modalidade do gênero. A partir do que evidenciam estes sujeitos, podemos entender que não há predominância na atenção sobre a família e se existe é um serviço desconhecido por estes. Torna-se mais agravante este fato quando relacionado aos internos de hospitais de custódia, já que além do transtorno o familiar tem que lidar com a questão do ilícito penal.
Ao questionarmos também se conhecem outros serviços de saúde que ofereçam atendimento psiquiátrico, constatamos que maior parcela afirma reconhecer outros recursos. Estes tomam como referência o único hospital psiquiátrico da cidade (gráfico 10), o Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Percebemos que são recursos tidos de experiências com internação, sendo, portanto pouca a aproximação com os Centros de Atenção Psicossocial.Apesar dos CAPs serem adotados recentemente dentro dos serviços de atenção em saúde mental no Estado do Amazonas, pode-se perceber que estes dispositivos não fazem parte essencial do que os familiares conhecem na atenção à pessoa com transtorno. Predomina assim a figura do hospital e do próprio processo de reclusão como modalidade expressiva no que toca à condição da pessoa com transtorno que cometeu ilícito penal.
Gráfico 10: Serviços de saúde conhecido pelos familiares.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
A legislação de saúde mental no Brasil é clara quando exige que todos os serviços assistenciais em psiquiatria tenham uma abordagem voltada para a unidade ou o grupo familiar/cuidador (ROSA, 2005). Com base nas reflexões desta autora, a tendência predominante dos hospitais psiquiátricos é abordar a família como mera informante da enfermidade, da trajetória do portador de transtorno mental, e como visita. Com a modernização dos sistemas de assistência psiquiátrica, com a inclusão de uma nova tecnologia de tratamento e novos dispositivos, a família passa a ser incluída nos projetos terapêuticos, como forma de reforçar o elo entre o interno e a sociedade, já que a família é considerada ferramenta essencial no processo de ressocialização destes sujeitos.
Diante dessa discussão, que elencou dados entre a atuação da equipe multiprofissional sobre a família, bem como apresentou a própria visão dos familiares a respeito do entendimento destes sobre a reforma psiquiátrica, verificou-se que há a necessidade urgente de se lançar um olhar mais profundo nas abordagens sobre a família, visto que na prática não encontramos uma aplicação efetiva sobre esse grupo. Aplicação efetiva, no sentido do que prevê a discussão dos ideais antimanicomiais, isto é, que procura potencializar a família na perspectiva de que esta seja fortalecida e tomada como parte integrante da rede de atenção sobre sujeito com transtornos, o que implica na defesa da cidadania e alcance da execução dos direitos destes sujeitos.
Vasconcelos (1992) salienta que na perspectiva da desinstitucionalização, dar voz aos familiares para que reafirmem a complexidade de suas realidades, suas demandas e suas avaliações sobre a assistência, possibilita que estes em conjunto com os trabalhadores em saúde mental construam dispositivos de reinvenção de vida. Nesse processo, o tratamento não se limita à concepção da assistência convencional. Para isso, devem assim ser intensificados projetos de escuta e participação ativa que intercalem a voz dos usuários e seus familiares dentro e fora dos serviços de saúde mental.
Com a expectativa antimanicomial não se espera que a família permaneça simplesmente em uma posição passiva, na qual seu significado vai exercer pouco impacto dentro do processo de desinstitucionalização. Além disso, a ideia não é que ocorra uma mera transferência da pessoa com transtornos para fora dos muros do hospital, “confinando-o” à vida em casa, aos cuidados de quem puder assisti-lo ou entregue à própria sorte.
Mas sim, que a família tida como principal agente potencializador e detentora de um lugar privilegiado na condição de parceira e corresponsável pelos cuidados (ROSA, 2003), seja fortalecida, a fim de que com ela possa ser compartilhada a atenção integral sobre a pessoa que necessita dos cuidados, isto é, compartilhar ações entre os serviços abertos, comunitários, que preservam os vínculos sociais e os direitos de cidadania.
Não obstante, a família entendida como suporte fundamental no cuidado sobre seu familiar com transtornos, posiciona-se assim como protagonista. Como vimos, a percepção destes familiares sobre a reforma e o próprio trabalho com eles demonstra-se ainda permeado de obstáculos. Estes últimos variam tanto no contexto da família quanto no contexto dos profissionais que lidam com estes usuários.
Na lógica dos cuidados, principalmente quando relacionado à realidade dos hospitais de custódia, pois são instituições que carregam um duplo estigma, coloca-se urgente a necessidade do trabalho intensivo com as famílias. A partir da reforma psiquiátrica, entendemos que no investimento sobre estes familiares é que surge a possibilidade de falarmos na valorização do cuidado doméstico, e, por conseguinte lançarmos perspectivas quanto ao resgate da cidadania dos sujeitos com transtornos mentais.
3.2 O cuidado na família: a organização e providência dos cuidados dentro da família
No cotidiano das relações humanas, muitas das atividades domésticas desenvolvidas no seio da família encontram-se no provimento de cuidados. Estes últimos relacionam-se a uma série de fatores, rotineiros e repetitivos e que conservam determinadas peculiaridades (ROSA, 2003).
De acordo com Vasconcelos (1992), a família como provedora de cuidados marca o momento em que o mercado de trabalho passa a ser reconfigurado, ocasião em que houve um aprofundamento da divisão sexual do trabalho. Ou seja, no momento em que a mulher é colocada a fazer parte do mercado de trabalho, já que antes sua função limitava-se à esfera da vida doméstica, ocorre que novos membros da família são impulsionados a adaptarem-se ao novo papel.
O cuidado em relação ao sujeito com transtornos tornava-se compartilhado entre a família, haja vista que a necessidade induzia aos demais membros do meio familiar a tomarem também a responsabilidade sobre o familiar dependente dos cuidados. Todavia, para o autor acima, o hospital psiquiátrico não deixava de cumprir um papel positivo quando verificado que o mesmo exercia função sobre o ‘doente’ mental, visto que permitia a reclusão destes sujeitos e possibilitava à família o direito da co-responsabilidade no cuidado e tratamento de seu membro.
A necessidade de prover cuidados mostra-se historicamente associada tanto entre a função do hospital psiquiátrico que com sua presença oferece resposta à questão social, quanto às funções naturalizadas pela família que, no seu cotidiano, doa-se ao encargo atribuído. Para Rosa (2003, p. 277), “prestar cuidados às pessoas enfermas traduz obrigação do código de direitos e deveres entre os integrantes da família consanguínea”.
Com base na reflexão da autora acima, nota-se que dada característica constitui-se como uma atividade inerente à tarefa familiar ou doméstica. Por essa condição, o ato de cuidar insere-se na perspectiva do grupo familiar correspondendo fundamentalmente a um de seus atributos. Para Gonçalves e Sena (2001), o cuidado na família implica em uma prática não institucionalizada e que revela o comprometimento do meio familiar sobre a pessoa que recebe os cuidados. Por consequência, no ato de cuidar desenvolvem-se habilidades e preocupações que por muitas vezes vão moldando uma relação baseada na paciência, no amor, no respeito, na confiança.
Todavia, ao mesmo tempo em que o ente com transtorno psiquiátrico pode ter seu espaço de acolhimento garantido no seio da família, essa mesma família, às vezes, é levada a intensificar sua procura pela internação desse membro, a fim de liberar-se da ‘sobrecarga do cuidado’. Rosa (2005) e Vasconcelos (1992) nos sinalizam que na lógica do cuidado, a família cuidadora utiliza-se de todos os seus recursos, emocional, temporal, econômico e por esse aspecto, sua atuação é desafiadora.
Ao indagarmos os familiares do hospital de custódia a respeito dos cuidados na família, pôde-se perceber que a maioria dos entrevistados afirmava que dividia os cuidados sobre seu parente antes de ocorrer a internação no HCTP (gráfico 11).Rosa (2003, p. 253) enfatiza que:
Gráfico 11: Divisão do provimento de cuidados na família.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
A colocação acima nos faz entender que a questão do transtorno mental tende a provocar abalos no seio do grupo familiar, e diante do percentual de familiares que afirmaram que antes da internação dividiam o cuidado com outros membros da família, podemos constatar que a divisão do trabalho entre os demais membros, apresenta-se como uma estratégia de enfrentamento da situação dentro do âmbito familiar.a presença do familiar portador de transtorno mental em casa aumenta a responsabilidade dos familiares sobre seu tratamento, bem como a quantidade de cuidados a serem tomados com aquele, isto é, produz um forte impacto na família.
Na medida em que os cuidadores passam a dividir parcela da atenção sobre o familiar com transtornos ocorre, por sua vez, a contribuição de cada membro da família no provimento do cuidado. São condições que estimulam a partilha de experiência em relação às formas de cuidado. Tal estratégia é percebida ainda como uma minimização da sobrecarga do cuidado, pois se o familiar com transtornos causa impacto na família, quando o provimento do cuidado recai apenas sobre um membro, o mesmo não deixa de ser afetado com os sintomas daquele com sofrimento psíquico.
Esclarece-nos Rosa (2003, p. 297), que “prover cuidado requer um mínimo de conhecimento, além de um trabalho intenso na dimensão da aceitação do transtorno mental”. Não obstante, o cuidado resulta de uma relação interpessoal e difusa. Dentro dessa percepção, o fato é que disponibilizar cuidados, além de exigir o esforço da função psicológica e relacional do indivíduo constitui, em sua maioria, na doação da função física e material, o que por sua vez exige condições econômicas e sociais que tornem o cuidador disponível.
Ao serem questionados sobre as demais pessoas com as quais os familiares dividiam os cuidados antes do parente ser internado, verificou-se que na maioria dos casos (gráfico 12), é com pais e irmãos, ou seja, no seio da própria unidade familiar que a divisão da atenção ao custodiado ocorria antes da internação.
A dinâmica da unidade familiar é a principal estrutura a ser reorganizada, a fim de dispor de todos os custos sobre o parente com transtorno psíquico. Ainda assim, no diálogo com os familiares, dos 37% que destacam que dividem os cuidados com os demais parentes, estes evidenciavam que nos casos em que não conseguiam mais lidar diretamente com o familiar com transtornos, os mesmos recorriam aos demais membros de fora da unidade familiar, com o intuito de que estes fornecessem uma contribuição mais periférica.
Gráfico 12: Membros da rede familiar envolvidos na divisão de cuidados antes da internação.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
A divisão dos cuidados distribui-se também entre a família de origem e a família conjugal. Para os 25% que dividiam os cuidados com esposa (o) e filhos, estes nos salientava que, antes da internação, havia casos em que o pai ou a mãe já não podiam mais dispor de atenção integral sobre o familiar com transtornos, seja em virtude da fragilidade na saúde, na situação econômica, na idade, pois, tal como nos destaca Rosa (2003), a idade avançada do cuidador implica que este também se encontra numa faixa etária que vai demandar cuidado de terceiros. Por essas condições, os cuidados dividiam-se entre os demais irmãos e filhos destes. De todas as formas, o cuidado familiar caracterizado por ações e interações presentes no meio familiar e pelos seus demais membros nos demonstra que estes sujeitos reorganizavam-se em prol do provimento de cuidados.
De acordo com as reflexões de Rosa (2003), no código de obrigações de direitos e deveres, àqueles mais presentes e colaborativos no provimento de cuidados variam conforme uma distância consanguínea. Ao focalizarmos nossa atenção sobre a divisão dos cuidados dentro da família, após o processo de internamento, percebemos que nesta rede os mais presentes são a mãe e o pai, destacando-se estes, portanto, como os principais encarregados de cuidar. Os demais cuidadores (gráfico 13) correspondem aos irmãos/irmãs, tias/tios e primos.
Mesmo com essa distribuição de cuidados nos chamou a atenção o fato de que a maioria dos entrevistados são figuras do gênero feminino. Eduardo Mourão Vasconcelos foi um dos primeiros autores a elucidar a questão da mulher e sua relação com a providência dos cuidados quando se trata da questão da enfermidade mental na família. Todavia, é com Rosa (2003), que esta temática foi amplamente aprofundada. Os estudos desta autora apontam que, na vida cotidiana da esfera doméstica, há uma questão de gênero muito forte. Assim sendo, a mulher é percebida como a figura mais presente no contexto dos cuidados, seja ela a mãe, a irmã, a esposa, a filha.
Gráfico 13: Parentes encarregados de prover cuidados no processo de tratamento.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Não nos aprofundaremos na questão abordada por esta autora em virtude dos objetivos traçados nesta pesquisa. Todavia, é considerável abrirmos espaço para essa breve discussão acerca da presença da mulher na questão dos cuidados, pois diante dos dados que coletamos essa característica mostrou-se instigante a uma reflexão. Rosa (2003) destaca que há uma questão biológica da mulher imbricada com a tarefa de maternar, que coloca a mulher em uma condição determinada cultural e ideologicamente.
Ainda conforme a autora acima é como uma qualidade essencialmente feminina a função e a capacidade de prover o cuidado sendo, portanto, essa função naturalizada. A figura da mãe foi majoritária nas entrevistas e em menor percentual destacam-se as irmãs dos internos. A fala de uma das mães entrevistadas nos revela que, em certas ocasiões, mesmo com a presença dos filhos ou do esposo, muitas vezes antes da internação, somente ela conseguia lidar com algumas situações referentes ao filho, como por exemplo, procura de atendimento psiquiátrico ou mesmo internação. Ressalta a entrevistada: “apenas eu cuidava, mesmo tendo meus filhos, eles não olhavam” (Entrevista l, pesquisa de campo, 2012).
No diálogo com os entrevistados, havia casos também em que irmãs de internos lembravam que antes do falecimento da mãe, quem essencialmente promovia o cuidado sobre o familiar com transtornos era esta última. Assim sendo reordenavam-se os papéis mediante a situação do falecimento. Ressaltamos ainda, que os 17% dos entrevistados (gráfico 11), que destacavam que não compartilhavam de apoio sobre o familiar dependente do cuidado, se caracterizavam exclusivamente em mães dos internos.
Com base nas reflexões apontadas por Rosa (2003), podemos inferir que há uma determinação muito aguda em relação ao papel feminino dentro da dinâmica familiar. Bem como, essa característica, demonstra uma experiência que deve ser assumida exclusivamente pelo mundo feminino, que por sua vez está relacionado à responsabilidade e ao comprometimento do gênero feminino sobre a providência do cuidado.
Ao fazermos esse breve paralelo com os estudos da autora acima apresentada, podemos supor ainda que, ao falarmos de sujeitos que estão sob uma condição que envolve dois estigmas, ao passo em que as mães são as principais representantes destes sujeitos, é cabível considerar que as mesmas podem ser introduzidas automaticamente dentro desse contexto de exclusão ou preconceitos, o que implica na estigmatização juntamente com os filhos internos do hospital de custódia.
Alguns outros estudos que abordam a questão de gênero nos apontam que, a tendência à presença feminina no provimento dos cuidados manifesta-se clara. Ao certo, e retornando à discussão acerca do cuidado na família como havíamos iniciado, diante do que preconiza a luta antimanicomial é importante não deixarmos de enfatizar a importância do trabalho com a família e atenção sobre esta, uma vez que projetando medidas dirigidas e sistematizadas sobre estas, é possível redirecionarmos a demanda de cuidados tanto para os familiares e sua rede de sociabilidade quanto para os próprios cuidadores (ROSA, 2003).
Com a internação no hospital de custódia, os familiares demonstraram reações diferenciadas em relação a esse momento. Ao tabularmos os dados apresentados por estes sujeitos, podemos verificar que as categorias tristeza, felicidade no tratamento, compreensão e tolerância são as principais manifestações de sentimento em relação à custódia do membro destes familiares. As demais categorias reúnem-se em surpresa, susto e preocupação, calma.
A tristeza seguida da compreensão e da tolerância em relação à internação no HCTP é apontada pelos familiares como uma tentativa de primeiramente lidar com a questão da internação. Tais reações surgiram especificamente pelo fato de que a internação não ocorria apenas mediante ao sofrimento mental, mas principalmente pela questão do crime cometido por esse parente. Dentro da tristeza ocasionada por ambos os motivos, os familiares justificavam que tentavam entender que a internação ocorria para que fosse realizado o tratamento, visto que o crime fora cometido justamente pelo momento de surto ou crise. Logo, ocasionado em virtude da ‘doença’ mental.
Para outros familiares reagir com compreensão à internação significava reagir com felicidade em saber da internação em uma clínica psiquiátrica, ou seja, saber que aquele membro da família que antes tinha total dependência da família, iniciaria um novo processo em que estaria à disposição de um tratamento psiquiátrico. Para a própria família, essa condição gerava um maior conforto em saber que aquele familiar com transtornos teria apoio médico/psiquiátrico. Algumas falas nos permitem lançar esta reflexão. Destaca uma delas: “quando eu soube, fiquei feliz por saber onde meu filho estava e por saber que era em um hospital” (Entrevistada B, pesquisa de campo, 2012).
As demais categorias que envolvem a reação de surpresa, susto, preocupação e calma também vinham precedidas da própria reação de felicidade ao tratamento, como podemos ver em algumas falas.
Fiquei mais calma porque não sabia mais o que fazer quando ele entrava em crise ou sumia de casa. Mesmo ele tendo acompanhamento no Eduardo Ribeiro era difícil manter a situação (Entrevistada H, Pesquisa de Campo, 2012).
As reações dos familiares quanto ao internamento demonstram que há certo alívio em relação àquele cuidado que antes se era tido, se assim podemos dizer, como sufocante. Vemos isso a partir do que coloca um dos sujeitos:
Estas colocações representam a maneira de como o familiar cuidador identificava seu sentimento acerca do distanciamento produzido pela internação. Refletem também a reação destes no que toca a questão da própria segurança, já que, a partir de então, esse familiar adoecido estaria inserido em um ambiente de vigilância e não colocaria mais em risco a vida do cuidador ou de seus demais membros da família, como vemos na fala da entrevistada J.senti alívio porque ele [o interno] perturbava. Quando tinha crise era totalmente agressivo. Tentou me matar, tentou matar minha mãe, mas só matou aquela mulher (Entrevistado J, pesquisa de campo, 2012).
A situação colocada acima é refletida por Rosa (2003) não apenas como um posicionamento indiferente da família sobre o familiar que se encontra com sofrimento psíquico. Essa autora enfatiza que a incapacidade e a impossibilidade de lidar com este sujeito propulsionam a recusa no seio da família, e produzem no familiar uma espécie de satisfação mediante ao processo de internação. Tal satisfação que não deixa de vir precedida da preocupação gerada nos membros da família, e que por vezes implica até na desestrutura familiar, como vemos na fala de outro entrevistado que ressalta:
Dando sequência à discussão, frisamos anteriormente que a pessoa com transtornos psíquicos tende a produzir efeitos impactantes dentro do ambiente familiar. Mas ao que podemos averiguar, seja no espaço doméstico ou com a internação, o provimento de cuidados representa tensão subjetiva, trabalho e, por vezes, o impacto na própria vida do familiar cuidador. A fala de uma das entrevistadas enfatiza a situação que acima mencionamos: “Depois da internação dele [do filho] eu adoeci. Tenho que fazer tratamento, minha pressão cai” (Entrevistada I, pesquisa de campo, 2012). Com base nesta colocação, podemos cogitar que para o familiar cuidador, lidar com os transtornos mentais é uma atividade de manutenção cotidiana e que reflete na própria condição de vida do sujeito que cuida.fiquei assustado; espantado. Porque, quando aconteceu o caso, a família se desuniu, houve desestrutura familiar, só com o tempo que começaram a ser tolerantes e foram se adaptando à situação (Entrevistado A, pesquisa de campo 2012).
O sujeito com sofrimento psíquico ao mesmo tempo em que é um integrante familiar, este se torna um estranho na medida em que passa a fazer parte da vida institucional (ROSA, 2003). Ao ser hospitalizado, o cuidado antes basicamente da família e em alguns casos parcialmente dividido com outros serviços de saúde passa a ser compartilhado com a equipe institucional. Nesse relacionamento, as relações entre a família e o familiar internado produzem variadas modificações.
Dentre os entrevistados, ao questionarmos sobre a realização de visitas, constatou-se que 92% (gráfico 14) afirmam que fazem visitas regulares ao interno na instituição, sendo que estas ocorrem preferencialmente nos fins de semana. Os 8% que não comparecem frequentemente à instituição assinalam que fazem visitas apenas mensalmente ou quando a própria instituição solicita a presença deles, em virtude de fatores de ordens distintas, tais como dificuldade financeira, temporal ou de deslocamento.
Embora alguns familiares tenham a oportunidade de realizar visitas no dias de semana, há a preferência destes em realizá-las nos fins de semana por considerarem este o momento mais propício à interação com o familiar internado. Ao dialogarmos com eles percebíamos que as visitas nos dias de semana ocorriam geralmente na procura de atendimento com a equipe psicossocial. Deste modo, no caso da interação mais demorada com o familiar internado, os entrevistados consideravam o melhor momento para esta situação os dias de visita nos fins de semana. Percebemos pela observação no campo que, de fato, esse é o momento que aparenta produzir uma melhor flexibilidade no relacionamento tanto entre ambos quanto entre os demais familiares que ali se encontram presentes.
Gráfico 14: Realização de visita dos familiares ao interno. Fonte: Pesquisa de campo, 2012.
Além disso, verificamos que nas visitas do fim semana há uma maior disponibilidade de tempo para que ocorra a interação com o interno, permanecendo os familiares na instituição por volta de todo o horário estabelecido para a visita aos demais internos do sistema prisional. Ao mesmo tempo, estes familiares aparentam dispor de maior disponibilidade de horário no fim de semana, o que possibilita que invistam na realização de visita e no diálogo com o interno que, por sua vez, permanece distante do ambiente familiar. Rosa (2003) ratifica que para os cuidadores, a realização da visita periódica e contínua significa a qualidade da relação futura com este sujeito. O convívio no hospital por meio das visitas passa então a demonstrar a preocupação e a manutenção dos cuidados tanto no período da internação quanto no que pode ocorrer após a desinternação.
Todos os familiares afirmam que têm uma boa relação com seu parente internado. Por conseguinte, com base no que nos destacam os familiares, averiguamos (gráfico 15) que maior parte destes afirma que acompanha a situação de saúde do seu familiar internado.
Gráfico 15: Atenção dos familiares acerca da situação de saúde do parente internado Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Os 16% dos familiares que destacaram que não fazem o acompanhamento de saúde do internado, alegam que este acompanhamento não ocorre em virtude da impossibilidade de deslocarem-se até a instituição seja em virtude de doença na família ou condições de mobilidade, por consequência da distância, isto é, por morarem em outros municípios. Como, por exemplo, nos revela um dos familiares:
Assim, mesmo dentro das dificuldades expostas acima pelos familiares, estas que são muitas vezes precedidas por outros fatores como, por exemplo, de ordem econômica, por causa dos custos de deslocamento, apreendemos que ainda há preocupação em relação aos cuidados deste sobre o familiar custodiado.não venho acompanhando ele [o interno] diretamente porque moro em outro município e fica difícil ter que vir para cá constantemente. Também não tem barco todo dia pra cá e não tenho nenhum familiar aqui. Só venho quando dá (Entrevistado B, pesquisa de campo, 2012).
Ao indagarmos também os entrevistados sobre os meios pelos quais estes realizam o acompanhamento sobre a situação de saúde do seu familiar internado, a maioria demonstrou (gráfico 16) que procura tanto o profissional da equipe de saúde quanto o próprio interno, a fim de observar o andamento no processo do tratamento do custodiado.
Os demais sujeitos que optam por manter contato diretamente com o interno para saber sobre sua condição de saúde, justificam que essa posição é tomada pela própria condição da presença na instituição. Ou seja, como muitas vezes alguns destes sujeitos são impossibilitados de manter uma aproximação mais assídua com os profissionais, pois por variados motivos encontram-se impossibilitados de deslocarem-se nos dias de semana para verificar a situação do internado e para conversar com os profissionais acerca deste. Quando na ocasião da visita dos fins de semana, elegem esse o momento para conversarem com o parente internado, a fim de tentar perceber as condições de saúde deste e o próprio desempenho do interno em relação ao tratamento recebido na instituição.
Gráfico 16: Meios pelos quais os familiares acompanham a situação de saúde do parente internado.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Os demais 23% que optam por escolher a equipe de saúde para verificarem a saúde do interno, justificam que esta é a garantia para que possam saber sobre o andamento do tratamento do interno, da mesma maneira em que nesse momento estes contam com uma informação mais segura sobre a situação do internado, a fim de que possam compreender as condições em que o parente internado pode, possivelmente, retornar ao ambiente familiar.
Na perspectiva dos cuidados, os familiares ressaltam que a participação assídua deles nas festas organizadas pela instituição ocorre justamente pelo fato de que consideram esse momento fundamental para a demonstração dos cuidados ao parente internado. No diálogo com estes sujeitos verificamos que maior parcela destes entrevistados confirma que comparece com frequência nas festividades elaboradas pela instituição, por compreender que sua presença é essencial para a melhoria do familiar em tratamento.
Ao mesmo tempo em que cuidar implica em uma grande e exaustiva atividade de doação por parte da família àquele sujeito que necessita dos cuidados, percebemos que os familiares do hospital de custódia mesmo diante dos obstáculos que permeiam o referido espaço, não deixam de disponibilizar diversificados meios de atenção ao interno, com o intuito de demonstrar o cuidado direcionado a este sujeito.
O cuidado na família não deve ser compreendido como uma atividade naturalizada, pois se tomado como inteira obrigação e responsabilidade desta, tal condição implica na intensificação do sofrimento tanto de quem tem o transtorno mental quanto de quem lida com ele. Ainda que a família tenha a função e ao mesmo tempo obrigação de prover cuidados, já que “o provimento de cuidados e as relações que lhes são consideradas próprias foram historicamente construídas” (ROSA, 2003, p. 275), o Estado, por sua vez, tem o compromisso legal de oferecer subsídios para ambos os sujeitos.
A lei 10.216 em seu art. 3º deixa claro quePara tanto, é necessário que esse cuidado se transforme em um método de abordagem a ser investido pelos trabalhadores que lidam no âmbito da saúde mental.é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2001).
Apesar da referida lei não fazer referência aos internados em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, é conveniente lembrarmos que dada lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, assim sendo os internos de hospitais de custódia devem ter a garantia dos direitos que estão previstos nesta.
Considerando que a desinstitucionalização faz parte do cuidado a ser dirigido à pessoa com sofrimento psíquico, a abordagem sobre o cuidado deste sujeito deve ser discutida intimamente a partir da principal ferramenta que é a família. Esperando-se que o provimento de cuidados conduza o respeito à singularidade e subjetividade do sujeito com transtornos, a família diante deste processo desenvolve o papel de vocalizadora e tutora do seu familiar com transtornos. Neste sentido, a intervenção na família cuidadora deve ser fundamental para que a construção da rede de cuidados seja fortalecida.
3.3 O papel da família: a posição da família no cerne da discussão da reforma psiquiátrica
Por décadas o debate produzido sobre a família ocupa lugar no campo da saúde. No Brasil, essa questão se afunilou aproximadamente por volta do final dos anos setenta juntamente com as discussões das políticas públicas e da reforma nos sistemas de saúde.
Entretanto, foi por volta dos anos noventa, dentro de um contexto marcado pela intensificação no processo de descentralização do sistema de saúde brasileiro, que ficou acentuado o debate em torno da ampliação das ações e dos serviços voltados especificamente para o âmbito da família.
Barros (2011) comenta que a atenção à família tem início quando o Ministério da Saúde formula o Programa de Agentes Comunitários da Saúde (PACS) em 1991, pois nele a família começou a ser enfocada como unidade de ação programática, modificando por sua vez a lógica de funcionamento de atenção à saúde, antes centrada principalmente na doença individual.
Considerando esta nova lógica, a família passou a ocupar o lugar central nas ações de saúde tornando-se este o momento em que passa a ser introduzida a importância da territorialidade nas ações em saúde. De acordo com Pereira e Barcellos (2006), a importância deste princípio é porque com ele tornava-se possível determinar equipes responsáveis pelo acompanhamento de uma população adscrita em uma área delimitada.
Assim sendo, em 1994 o Ministério da Saúde estruturou o Programa de Saúde da Família (PSF), representando este um marco na implantação da atenção básica em saúde no Sistema Único de Saúde. Somente em 1995, o PSF tornava-se expressão nacional e conforme salienta o autor acima, o referido programa mostrava-se como uma das propostas mais abrangentes de atenção primária à saúde do mundo.
Com base no que se estabelecia na Norma Operacional Básica (NOB) do SUS publicado em 1996 no Diário Oficial da União, ficavam definidos incentivos destinados ao PSF, assim como as estratégias utilizadas organizavam-se na perspectiva de traçar um diagnóstico da situação local, planejamento e programação das ações integradas à comunidade, no desenvolvimento de ações de promoção e prevenção, bem como educação em saúde.
Ademais, a referida norma tinha por finalidade primordial promover o pleno exercício por parte do poder público municipal e do Distrito Federal, da função de gestor da atenção à saúde dos seus munícipes. Dado exercício direcionava-se na busca da plena responsabilidade do poder público estatal, uma vez que os poderes públicos estadual e federal seriam sempre tidos como corresponsáveis na respectiva competência ou na ausência da função municipal. Este aspecto, de acordo com a NOB (1996), não excluía o papel da família, da comunidade e dos próprios indivíduos, na promoção, proteção e recuperação da saúde.
Na Constituição Brasileira, a família é concebida como base da sociedade, logo, instituição de produção da vida humana. Neste sentido, a iniciativa de um programa voltado para o trabalho com a família tinha seu respaldo a partir da Constituição de 1988, representando este, condições para viabilização plena do direito à saúde, o que implicava na concretização dos princípios constitucionais.
Apresentavam-se assim,
Com o novo modelo de assistência, já no ano de 2003 a estratégia de saúde da família passava a ser apoiada pelo Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF) do Ministério da Saúde, objetivando com essa medida, expandir a saúde da família para os grandes centros urbanos.as bases para um novo modelo de intervenção, centrado na qualidade de vida das pessoas e do seu meio ambiente, bem como na relação da equipe de saúde com a comunidade, especialmente, com os seus núcleos sociais primários – as famílias (BRASIL, 1996, p. 9).
A importância desta discussão é porque com base nesses dados podemos perceber que a atenção à família arquitetou-se em um plano estratégico, que envolveu toda uma discussão acerca da proteção e promoção da saúde, como forma de contribuir na organização no modelo atual de assistência à saúde. Por conseguinte, compreendendo que a família é tida como núcleo básico para a abordagem no atendimento à população, ao olharmos para o campo da saúde mental, pode-se notar que essa proposta não deixa de ser evidenciada. Diante da necessidade de se incluir as ações de saúde mental na atenção básica, sobretudo, com o objetivo de estimular as políticas de expansão, formulação e avaliação da atenção básica, assumindo o compromisso de promoção da saúde que incluam a dimensão subjetiva dos usuários, no ano de 2003 o Ministério da Saúde lançava diretrizes voltadas à inclusão das ações de saúde mental na atenção básica.
As diretrizes surgiram após três Oficinas realizadas pela Coordenação Geral de Saúde Mental em articulação com a Coordenação de Gestão da Atenção Básica, destas estabelecia-se: o apoio matricial da saúde mental às equipes da atenção básica; formação como estratégia prioritária para inclusão da saúde mental na atenção básica, inclusão da saúde mental no sistema de informações da atenção básica (BRASIL, 2003).
Dentre o que ficava acordado, podemos destacar alguns aspectos principais destas diretrizes. O apoio matricial, que sinaliza o documento, visa compartilhar casos com a equipe de saúde local, responsáveis pela saúde de um dado território, sendo que este compartilhamento se produz em forma de corresponsabilização pelos casos, o que pode ocorrer por meio das discussões conjuntas de casos, bem como intervenção conjunta junto às famílias, comunidades ou atendimentos conjuntos.
No que diz respeito à segunda diretriz, o documento salienta que com os polos de saúde da família, assim como os polos de saúde mental, estes já vinham desenvolvendo capacitações específicas em relação às suas áreas. Todavia, com essa nova diretriz evidencia-se a implantação de núcleos de capacitação e sua articulação com unidades acadêmicas, no sentido de qualificar a rede e o cuidado, e de repensar as estratégias de formação, tomando como base a perspectiva da reforma psiquiátrica.
O que nos chama a atenção acerca do ponto que acima mencionamos não é somente o fato da atenção que é dada à capacitação dos profissionais do campo da saúde mental, mas principalmente, tal como frisa o documento, a atenção primordial voltada para o desenvolvimento da promoção da autonomia dos usuários, e a participação da família como parceira no tratamento. Pelo que observamos, dentro dessa perspectiva, uma das preocupações fundamentais é trabalhar em cima da formação e capacitação da família, como forma de fortalecer o seu papel enquanto ferramenta necessária no processo de desconstrução do sistema centrado na internação.
No que toca o terceiro ponto que fala sobre a inclusão da saúde mental no sistema de informações da atenção básica, fica proposto nesta diretriz: a construção de indicadores de monitoramento baseados no conceito de território, problema e responsabilidade sanitária, para evitar a exclusão do cuidado de casos graves na atenção básica e seu encaminhamento para a institucionalização (BRASIL, 2003). Ao certo, o sistema de informações destaca-se estratégico para a avaliação e planejamento em saúde mental.
Para tanto, as estratégias acima mencionadas direcionam a atenção a ser oferecida à família e se anteriormente a família exercia um papel subalterno dentro dos serviços de assistência psiquiátrica, dentro de tais novas percepções são elaboradas modalidades de cuidados para que a família possa manter-se apta a prover os cuidados sobre seu familiar com transtornos e deste modo, venha a exercer seu papel de essencial no processo de tratamento deste.
O acolhimento da família dentro dos serviços de assistência psiquiátrica é importante, pois implica no entendimento da família sobre o seu papel com a instituição. Ao focalizarmos nossa atenção sobre os familiares dos internos do hospital de custódia, quando questionados sobre como classificam o atendimento da equipe profissional dentro da instituição se constatou que o nível de satisfação é relativamente satisfatório, como podemos visualizar no gráfico 17.
A satisfação dos familiares quanto ao serviço prestado pela instituição dá-se pela possibilidade na qual conseguem resolver qualquer situação referente ao seu familiar internado. Para estes familiares, a atenção oferecida pelos profissionais de serviço social e psicologia lhes possibilita ter controle sobre a situação do seu familiar. Ao mesmo tempo, essa satisfação é contemplada em certa medida, pois conforme afirmam os 9%, a falha principal em relação ao atendimento é o fato de não poderem dialogar diretamente com os demais profissionais da equipe de saúde, tais como a médica psiquiatra.
Gráfico 17: Classificação dos familiares em relação ao atendimento oferecido pela equipe profissional.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Na intenção de verificarmos se os familiares se consideram importantes, no processo de construção da rede de atenção ao sujeito em sofrimento mental, verificamos que todos os familiares percebem que sua presença é fundamental para a melhoria do interno, no que diz respeito, por exemplo, à contribuição deles na elevação da autoestima do custodiado. Pereira (1999) assevera que os familiares tendem a reconhecer sua importância no tratamento dirigido à pessoa com transtornos mentais.
E, mesmo que a preocupação do familiar cuidador não seja correspondida diretamente, ainda assim esse familiar não desconsidera sua importância. É o que se constata na fala de uma das entrevistadas:Os familiares na medida em que participam da dinâmica da instituição, também passam a retirar suas próprias conclusões em relação à questão do distanciamento da família, como podemos perceber na fala de um destes sujeitos:
A preocupação da família em relação à sua importância no tratamento também se firma pelo modo de como ela percebe que é essencial seu comparecimento na instituição para visitação do interno, como frisa uma das entrevistadas:acho que é com a presença da família que ele [interno] percebe a existência dos laços familiares porque já vi outros casos em que a família visita tão raramente o parente, a tal ponto que ele [interno] esquecia até quem era aquela pessoa, se era da sua família mesmo [...] (Entrevistado A, pesquisa de campo, 2012).
Além de a família reconhecer seu potencial, mesmo não tendo acompanhamento por meio de serviços ou associações de apoio, não se pode deixar de novamente fazer um paralelo acerca da presença do gênero feminino na relação com os cuidados, pois como podemos verificar, é sobre a própria figura da mulher que restou a preocupação sobre seu parente institucionalizado. No que diz respeito ao fortalecimento dos vínculos, percebemos que os familiares optam, preferencialmente, pela realização de visitas à instituição. Ao passo em que, a outra menor parcela destaca ter preferência pela ligação para a instituição, como forma de sempre se manterem informados sobre a situação do parente internado.ele [interno] se sente melhor quando eu venho. Só eu acompanho ele [interno]. Ele [interno] tem medo de ser abandonado, o pai dele apareceu só no início, depois se afastou dele e da gente [família]. Os irmãos dele também não gostam de vir aqui, então só resta eu [entrevistada] pra ele [interno] saber que alguém se preocupa com ele [interno] (Entrevistada B, pesquisa de campo, 2012).
Ao indagarmos os familiares a respeito da preparação para receber o interno após a desinternação notou-se que os meios pelos quais estes procuram se preparar varia entre as reuniões na instituição e as visitas domiciliares, sendo que essa opção foi assinalada geralmente no caso daqueles que acompanham o parente que está em processo de desinternação.
Gráfico 18: Meio pelo qual os familiares utilizam para o fortalecimento dos vínculos com os internos.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
Não obstante, pôde-se constatar (gráfico 19) que a maior parcela destes sujeitos reconhece o apoio religioso e as conversas entre família como principais recursos para poder lidar com o interno e seu retorno para o lar. Estes sujeitos afirmam que utilizam apenas estes recursos, pois não dispõem de outros meio para recorrer.
Gráfico 19: Meios que os familiares utilizam para se preparam para o recebimento dos internos após a desinternação.
Fonte: Pesquisa de campo, 2012
A partir do que expusemos acima, averigua-se que é fundamentalmente a família que se habilita informalmente e independentemente na procura pela compreensão em torno do sofrimento mental e suas formas para lidar com essa questão. Isso porque, salvo nos casos em que a equipe tem que preparar essa família para o retorno ao ambiente familiar, não vemos nenhuma outra estratégia de intervenção voltada à família, independente se é nesse próprio serviço de saúde ou em qualquer outro da saúde mental.
Diante desse cenário, quando interrogamos estes familiares acerca das expectativas sobre a desinternação do seu familiar, verificamos que muitos apostam no tratamento que a instituição disponibiliza e, com base nesta confiança, acreditam que a saída do interno venha acompanhada de melhorias. O retorno à vida normal e a convivência no âmbito da família é uma das perspectivas sinalizadas pelos familiares.
Frisa-nos um dos entrevistados: “espero que ele [interno] possa trabalhar e viver a vida [...] melhore de saúde e que possa viver com a família que é o melhor” (Entrevistada D, pesquisa de campo, 2012). Outros familiares reconhecem a necessidade de acompanhamento após a desinternação, como podemos verificar no que acentua outro familiar:A perspectiva de que o interno volte à normalidade e seja, sobretudo, aceito na sociedade, é uma das expectativas que acompanham a percepção dos familiares no que concerne à saída do custodiado, tal como destaca um dos entrevistados: “para que ele volte a ser normal e seja aceito na sociedade (Entrevistado A, pesquisa de campo, 2012). A noção de cura é uma das possibilidades que os familiares não deixam de evidenciar. Dado posicionamento revela o pouco retorno que os familiares obtêm acerca da questão do sofrimento psíquico, pois ao que nos afirma Rosa (2003) a desinformação e o despreparo moldam condutas e cristalizam posições.quero que ele saia apto a viver em sociedade e com a família sem causar transtornos ou danos e continue o tratamento com o apoio médico e psicossocial (Entrevistada G, pesquisa de campo, 2012).
Apostando-se na melhoria do familiar após sua desinternação, vemos também nas falas que a própria família não deixa de se colocar como participante no processo de reconstrução da vida social do familiar que passou por tempos de institucionalização, como podemos ver na preocupação expressa na fala de um dos familiares quanto ao que lhe foi questionado: “quando ele sair pretendo contratar uma pessoa para acompanhar o trajeto dele” (Entrevistado A, pesquisa de campo, 2012).
No entanto, em contraposição a estas expectativas, outra parcela dos familiares salienta que, de certo modo, não desenvolve perspectivas sólidas em relação à saída do interno, como notamos na seguinte fala:espero que ele [interno] saia melhor, porque qualquer coisa, ele [interno] volta. Só quero que ele [interno] saia se realmente estiver bem, mesmo porque ele [interno] só age em silêncio, este é o meu maior medo e da minha família principalmente (Entrevistada D, pesquisa de campo, 2012).Chama-nos a atenção quando notamos que qualquer possibilidade de saída do familiar internado é representada para a família como um risco, manifestando o entrevistado sua preocupação no que diz respeito à desinternação. Isso é o que constatamos com a fala de uma das entrevistadas quando esta nos ressalta:
Na medida em que esta família se posiciona contrária à saída do seu parente, em um primeiro momento esta característica nos parece representar que a perda da autonomia deste familiar é um dos primeiros fatores que o leva a colocar-se desta forma. É o que podemos ver na passagem “pago o quanto puder, mas não quero nenhuma perturbação”. A sobrecarga de cuidados que lhe foi lançada dentro do ambiente doméstico, já que tem que se disponibilizar a vigilância do parente com transtornos tanto para que possa garantir sua segurança quanto a dos demais membros de sua família (ROSA, 2005), tende a ocasionar sua reação.não espero mais nada se ele sair daqui [hospital]. Eu tenho medo que ele saia e se sair que fique em outro local. Eu [entrevistada] pago o quanto puder, mas não quero nenhuma perturbação. Eu temo pela minha própria segurança (Entrevistada I, pesquisa de campo, 2012).
Em um segundo momento também se pode inferir que se a família se coloca contrária à situação da desinternação, essa característica não demonstra apenas a abstenção ou negação do sujeito diante do seu familiar institucionalizado. Sobretudo, nos indica que se a família produz uma espécie de rejeição a este sujeito é porque a mesma também foi rejeitada ou se melhor empregado, foi abandonada pelos serviços de saúde, já que este mesmo familiar em algum momento ou em vários, talvez, tenha procurado outros recursos, outros suportes e não o tenha encontrado.
A partir do que observamos na lei federal, a família vai ocupar o posto fundamental de responsável pela qualidade de vida dos seus membros. Associando o que determina esta lei à discussão sobre o lugar da família dentro dos serviços de assistência psiquiátrica, a família é vista como a parceira, a mediadora entre seus membros e a sociedade (ROSA, 2005) De acordo com Baptista (2011), o papel desempenhado pela família vem sendo reconhecido como valioso, tendo em vista que colabora no tratamento e reabilitação do sujeito. Não obstante, se levarmos em conta que não há uma abordagem propriamente dita sobre estes familiares, é provável que esta tenda a pouco interagir no desenvolvimento da produção de cuidados com o membro com transtornos mentais.
Na medida em que a família é incluída na abordagem do serviço que é oferecido ao familiar com transtornos, esta passa "gradualmente a entender melhor a natureza do transtorno e aprende a lidar com a “sintomatologia” – o comportamento desviante – e torna-se mais sensível para aceitar o “paciente” em casa" (ROSA, 2005, p. 282). Diante desta percepção, nos reforça Crispim (1992) que quanto maior for a capacidade da família em poder controlar dado comportamento, maior ainda será sua intenção de permanecer com seu familiar com transtornos em casa.
Com os relatos que trouxemos e expusemos, pode-se examinar que o papel desempenhado pela família desdobra-se entre a falta de apoio por parte dos serviços de saúde mental, as impossibilidades e limitações geradas no seio da própria família, justamente pelo seu papel de cuidadora e que ao mesmo tempo necessita de cuidados e atenção por parte do Estado.
Não tivemos a oportunidade de examinar com mais afinco a situação atual da estratégia de atenção à saúde básica da família em Manaus, nem mesmo acerca da atenção básica à família no que diz respeito ao campo da saúde mental. Mas, com base no que nos destacam os familiares que participaram da pesquisa, nota-se que pouco ou quase nada tem sido direcionado a estes sujeitos.
O censo levantado pela pesquisadora Debora Diniz no ano de 2011 indicava que, dos indivíduos que se encontravam em medida de segurança no hospital de custódia de Manaus, todos estes haviam cometido infrações penais em sua rede familiar ou doméstica (DINIZ, 2013). Considerando este fator, entendemos que os familiares dos custodiados necessitam de meios para ter que lidar tanto com a questão do transtorno quanto do crime que, por sua vez, foi produzido dentro da própria rede familiar.
As equipes de atenção básica são um recurso estratégico no enfrentamento de agravos vinculados ao uso abusivo de álcool, drogas e diversas formas de sofrimento psíquico. Porém, ao olharmos para a cidade de Manaus e verificarmos que esta espécie de atenção se distancia desses familiares ao invés de acompanhá-los, percebe-se que há certo descuido por parte dos órgãos locais no que diz respeito à promoção da saúde desta população que lida diariamente com seu membro em situação do sofrimento mental.
Além disto, ao considerarmos que com a família é possível que os ideais da reforma sejam difundidos, também por esse motivo, urge a necessidade da atenção à família dos sujeitos com transtornos mentais. Sendo assim, os novos serviços construídos no cerne do movimento da reforma psiquiátrica, buscam construir novas formas de relação entre a sociedade e a loucura (ROSA, 2005). À família incluída nessa abordagem, é oferecido o trabalho educativo, de esclarecimento e capacitação.
Levando em conta que o trabalho no campo da saúde mental é desenvolvido mediante a um processo de desconstrução e construção permanente, o desafio apresentado, entendemos, que é justamente trabalhar no meio deste processo, isto é, tentar trabalhar na construção de estratégias de enfrentamento, dentro de instituições com características totais, o que supõe, portanto, em um trabalho de permanente avaliação.
Na perspectiva antimanicomial, fica previsto que a atenção em saúde mental deve ser feita dentro de uma rede de cuidados. A rede de cuidados envolve todos os tipos de recursos, ou seja, recursos afetivos, econômicos, culturais, religiosos, para potencializar as equipes de saúde nos esforços de cuidado e reabilitação psicossocial (BRASIL, 2004). Dentro desta perspectiva é que se fundamenta o processo de desinstitucionalização. Mas, se no diálogo com os familiares vimos que a ausência de suportes institucionais impossibilita que as famílias sejam amparadas, o que acaba por ser incentivado, por consequência, é a desospitalização.
Para tanto, apesar de outros agentes serem importantes no tratamento destinado a pessoa com transtornos, o papel da família é considerado mais que essencial, tornando-se por sua vez insubstituível. Com base nesta percepção, o desafio que se coloca aos profissionais de saúde é o empenho em produzir uma abordagem mais sistemática e contínua sobre a família, procurando conhecer suas limitações e impossibilidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao traçarmos a trajetória da reforma psiquiátrica compreendemos que este processo possibilitou a elaboração e construção de um novo olhar sobre o tratamento das pessoas com transtornos mentais. No Brasil, o debate sobre a reforma psiquiátrica trouxe conquistas e avanços significativos na área da saúde mental, tanto no plano teórico quanto prático, sendo que a promulgação da lei 10.216 em 2001 representou um grande passo em direção à consolidação da garantia de direitos da pessoa com transtornos.
Voltando nossa atenção para o cenário local, verificou-se que a aplicação da reforma psiquiátrica em Manaus é desenvolvida sob o signo da precariedade. Mesmo com a promulgação da lei estadual de saúde mental em 2007, que foi fundamental para firmar o compromisso na criação dos dispositivos antimanicomiais, bem como garantir a participação dos órgãos gestores nesse processo, as mudanças ocorridas no campo da saúde mental na cidade são mínimas se comparada à demanda existente.
Direcionando-nos ao debate que tratou sobre os hospitais de custódia, vimos que há dificuldades para lançarmos uma definição precisa sobre estes espaços, pois são instituições que carregam em sua natureza um caráter ambíguo. Ainda assim, com base na literatura analisada, constatamos que a natureza ambígua destes espaços solidificou-se somente com a construção do primeiro manicômio judiciário no Brasil, pois esse foi o momento em que se reconfigurou o espaço destinado ao delinquente criminal, isto é, à estrutura manicomial passou a ser adicionado o reforço prisional.
Ao apreendermos estes aspectos, depois de verificada a trajetória da reforma psiquiátrica e o processo de surgimento dos hospitais de custódia, ao realizarmos a pesquisa de campo no hospital de custódia de Manaus e ao analisarmos a fala dos sujeitos que estão envolvidos no trabalho de assistência prestada aos custodiados, isto é, tanto os profissionais quanto os familiares, percebeu-se que a instituição preserva seu caráter asilar/carcerário. Neste sentido, a possibilidade de aplicação da reforma psiquiátrica vê-se, de certo modo, comprometida.
Através dos dados apresentados na pesquisa podemos perceber que os profissionais reconhecem que estão diante de uma instituição de dupla função. Por conseguinte, notamos que os profissionais atuam em meio à escassez de suportes, seja de ordem física, estrutural ou organizacional. Deste modo, tanto pelo fato dos profissionais estarem em um espaço ambíguo e por não disporem de condições adequadas para a realização dos serviços, isso faz com que a atuação dos mesmos ocorra de maneira fragmentada.
A partir dos aspectos acima, averiguamos ainda que mesmo que haja atenção destinada a todos os usuários do hospital de custódia, com base no que verificamos no diálogo com os familiares, estes não dispõem de uma atenção específica e continuada. Talvez, a falta de atenção específica à família, por meio de projetos e programas contínuos, ocorra pela própria condição da equipe, uma vez que esta também se encontra desapoiada.
Diante dessa realidade, mesmo que os familiares estejam empenhados em prover cuidados aos internos, pois de acordo com nossas análises a família se reconhece importante no tratamento do custodiado, na falta de uma intervenção específica sobre a família, estes sujeitos tendem a fragilizarem-se. Com base no que aconselha a reforma psiquiátrica, os serviços de saúde mental devem promover ações sobre a família para que estas possam se fortalecer e se potencializar, a fim de que sejam correponsáveis no provimento de cuidados ao familiar com transtornos.
A pesquisa também nos revelou que predomina na concepção dos familiares a figura do hospital psiquiátrico como recurso na atenção à pessoa com sofrimento psíquico. Ao fazermos essa constatação, isso nos leva a crer que os novos dispositivos de atenção são desconhecidos por estes sujeitos. Não obstante, visualizou-se que no hospital de custódia a desinstitucionalização está sendo revertida ao processo da desospitalização. Este dado, nos veio a confirmar que predomina a manutenção do modelo hegemônico de assistência psiquiátrica. Não deixamos de notar que a insuficiência dos serviços de saúde na cidade de Manaus, completam ainda o sentido de precariedade na qual está inserida a população que necessita dos serviços de saúde mental.
Se levarmos em conta que a perspectiva antimanicomial recomenda a construção de uma rede de atenção, ao que podemos analisar a construção desta rede de apoio em Manaus encontra-se fragilizada e, se podemos supor, praticamente inexistente. Portanto, para que a reforma psiquiátrica na cidade de Manaus não entre em retrocesso, é necessário assim que haja competência do governo, bem como empenho dos trabalhadores em saúde mental e de todos os envolvidos nesse processo.
