O antropólogo Sidney W. Mintz vem realizando trabalhos na região do Caribe desde meados do século XX, quando essa passa a ser considerada uma “área etnográfica” importante e, ao mesmo tempo, desafiadora para as análises antropológicas. Seu trabalho etnográfico em Porto Rico, em 1948, inicia o longo percurso de pesquisas do antropólogo no Caribe. Esse trabalho deu origem à obra “Sweetness and Power” (1985), na qual o autor descreve o papel econômico, histórico e nutricional do açúcar (produzido, sobretudo, no Caribe) na transformação das sociedades camponesas europeias em sociedades proletárias, servindo como combustível para a Revolução Industrial e o desenvolvimento do mundo contemporâneo. Mais tarde, em 1952, ele se dedica a um estudo etnográfico na Jamaica entre os camponeses moradores do vilarejo de Sturge Town, fundado pela igreja Batista após a emancipação da antiga colônia britânica e, em 1958, realiza, no Haiti, um estudo sobre os mercados populares. A importante obra “Caribbean transformations” (1974) de Mintz surge dessa longa experiência, é considerada uma obra inovadora e absolutamente central para a compreensão da realidade caribenha.
A reflexão feita pelo autor em “Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and Variations” é fruto dessa longa história de pesquisa e produção etnográficas. Pode-se interpretar o título escolhido para a obra enquanto uma referência, irônica talvez, à própria “antiguidade” do autor que se propõe a uma reflexão com um distanciamento de várias décadas do período de campo. O livro surge da compilação de uma série de conferências ministradas pelo autor em homenagem a William Edward Burghardt Du Bois no Du Bois Institute of Harvard University, em 2003, e traz uma reflexão profunda a cerca das diversas histórias da escravidão no Caribe e dos impactos culturais provocados pela dinâmica do sistema escravocrata na conformação das sociedades que conhecemos hoje. Ao retomar as descobertas que fez em cada ‘viagem’ etnográfica, o antropólogo enfrenta o desafio comparativo de realidades complexas e heterogêneas. As três ex-colônias Porto Rico, Jamaica e Haiti têm suas histórias e culturas revisitadas nessa obra que foge do modelo etnográfico ‘clássico’ e que, segundo Mintz, “é mais uma reflexão, um olhar para trás pessoal – diferente da forma pesada acadêmica” (p. 24).
O trabalho de Mintz no Caribe e o seu interesse na investigação do real significado do sistema imposto pelo trabalho forçado dos escravos vindos da África para o Novo Mundo nos revela transformações na própria história da Antropologia que, salvo raras exceções, vinha deixando no esquecimento essa região, enquanto campo de estudos, até o fim da Segunda Guerra Mundial. As sociedades que ofereciam condições adequadas para o trabalho antropológico seriam essencialmente aquelas consideradas ‘primitivas’ – para usar um termo corrente à época. O Negro no Novo Mundo representa um elemento desconcertante aos modelos antropológicos e, por tanto, um desafio. O reconhecimento, no trabalho do autor, da significância histórica e cultural das sociedades Caribenhas não é, portanto, trivial. No entanto, de acordo com os apontamentos de Mintz, as duas últimas décadas foram marcadas por um entusiasmo em relação às retóricas da mudança o que fez com que a região do Caribe, antes desimportante, ganhasse novo status e relevância à medida que termos como mestiçagem, hibridismo, globalização e crioulização passaram a fazer parte do vocabulário conceitual antropológico.
O método proposto por Mintz para se pensar as sociedades Caribenhas passa pela importância que o autor atribui à história na pesquisa antropológica. Ele considera superado o debate posto pela antropologia cultural que questionava a relevância da história. Apesar de metodologicamente diferentes, a antropologia e a história se debruçam sobre perguntas de uma mesma ordem e mantém uma relação íntima. Dessa forma, ele incorpora o colonialismo no universo empírico como parte da experiência das pessoas. Os indivíduos em interação são centrais na apreensão dos processos sociais que estão envolvidos nas transformações históricas da mesma forma que os processos históricos são extremamente importantes para a compreensão do presente.
No caso do Caribe, Mintz propõe que as transformações ocorridas nessas três ex-colônias se deram em relação à dois aspectos fundamentais da história dessa região: a exploração do trabalho escravo e o plantation como sistema de produção. As divergências histórias entre o colonialismo escravista Britânico, Francês e Espanhol são as chaves para se entender as distintas características dessas três sociedades. No decorrer de todo o livro, Mintz oferece observações históricas sobre cada uma das três ex-colônias, somando a elas as trajetórias e experiências pessoais dos atores encontrados nos campos etnográficos, chamados por ele de “little people”, com os quais estabeleceu relações muito próximas.
Porto Rico, Jamaica e Haiti compartilham várias semelhanças que vão dos aspectos geográficos, do papel que desempenharam em favor do desenvolvimento do poderio europeu ultramarino, ás semelhanças históricas: todos foram ocupados e povoados por colonos europeus e escravos africanos; todos tiveram seus povos nativos exterminados pelas doenças e pela escravidão; em todos houve uma marcante mistura cultural e de raças. Porém, cada um deles abriga sociedades extremamente distintas, inclusive no que diz respeito ao lugar que a escravidão ocupa nas suas histórias e na formação demográfica de suas populações. Apesar de reconhecer a importância do sistema escravista e das relações raciais para a conformação da história e identidade locais nas três ex-colônias, para Mintz, essas relações não são as mesmas. A escravidão foi menos importante na história de Porto Rico, por exemplo, o que evidencia o modelo colonial distinto das colônias Hispânicas no Caribe.
A obra apresenta uma reflexão cuidadosa, aproximando e distanciando as três sociedades estudadas. Ao passo que na Jamaica e no Haiti a população local se tornou preponderantemente africana em sua origem ao longo dos séculos, em Porto Rico isso não aconteceu. Enquanto a Jamaica recebeu imigrantes vindos de lugares como Índia e China, o Haiti e Porto Rico não fizeram o mesmo. Assim, não apenas a instituição escravista variou em relação à duração e importância nessas ilhas, mas outros fatores como a composição física, demográfica, da população local e a influência dos grupos libertos não brancos também variaram ao longo do tempo, marcando cada sociedade com características distintivas.
Ao pensar o caso de Porto Rico, onde desde o início a população era majoritariamente composta por descendentes de europeus livres e a aparência física da maioria foi se tornando cada vez mais mestiça ao longo do tempo, devido à queda da importância econômica dos escravos, Mintz aponta para as consequências do fenômeno da mestiçagem. Segundo ele, essa experiência histórica única engendrou relações de raça e atitudes raciais menos conflituosas em Porto Rico. Aqui, podemos notar uma interpretação da mestiçagem enquanto elemento decisivo para a suavização dos conflitos raciais nos moldes de Gilberto Freyre.
Dois aspectos chamam a atenção de Mintz ao contrastar as diferenças culturais das três sociedades: gênero e raça. A maneira como homens e mulheres são percebidos diferem bastante nas três ex-colônias. Porém, são nas relações de raça que o autor vê as diferenças mais dramáticas entre Porto Rico, Haiti e Jamaica. Ele vai se debruçar sobre essa questão e desenvolver uma interpretação a cerca do conceito de crioulização para explicar a heterogeneidade Caribenha. A composição demográfica das raças aparece aqui como um fator fundamental para explicar as diferenças entre Porto Rico e as outras duas sociedades. Para Mintz, a chave para compreensão de Porto Rico está no fracasso Espanhol na construção de um sistema escravista de plantation do mesmo tipo que vingou nas colônias Britânicas e Francesas no Caribe no período que vai de 1650 a 1800. Em contraste com a Jamaica e o Haiti, a economia colonial de Porto Rico, sob o controle Espanhol, não estava baseada no sistema de plantation. Além disso, a conformação de uma população majoritariamente descendente de europeus resultou, segundo Mintz, em relações raciais mais cordiais, “less toxic”, em comparação às outras duas sociedades. Apesar dessa constatação, o antropólogo afirma que isso não fez com que Porto Rico fosse mais econômica e politicamente igual.
A redefinição do conceito de crioulização permite que Mintz dê sentido as diferenças descritas entre as colônias Hispânicas e o resto do Caribe. A palavra “crioulo” teve vários significados ao longo da história. Em oposição aos significados mais comuns da palavra, Mintz define o conceito crioulização como sendo uma síntese cultural criativa que se deu no Novo Mundo, “pela qual novas instituições sociais, adornadas com conteúdo cultural reordenado, foram forjadas para fornecer as bases de um contínuo crescimento cultural” (p. 190). O autor acredita que foram os escravos das plantações coloniais do Novo Mundo que forjaram essa síntese através de um processo de mudança social que se deu na interação entre eles e os libertos, incluindo a classe dos Senhores.
Com exceção dos índios nativos, todos os recém-chegados ao Novo Mundo, vindos das mais diversas regiões, eram culturalmente heterogêneos. Esse ‘repovoamento’ envolveu basicamente dois grupos diferentes: um minoritário, politicamente dominante, cultural e linguisticamente homogêneo; e outro numericamente maior, subordinado, culturalmente heterogêneo entre si e formado por falantes de línguas diversas. Na Jamaica e em Santo Domingo (Haiti), a grande maioria da população era composta por escravos. Em razão das terríveis condições em que eles eram mantidos sob o julgo de uma violência atroz, no Caribe, a mudança social era inescapável. Os habitantes dessa nova terra – tanto escravos como Senhores – foram obrigados a comer novos alimentos, a se adaptar ao clima tropical, a lidar com novas plantas e animais e, sobretudo, conviver com pessoas distintas em aparência, língua e comportamento. Cada sociedade se transformou em uma espécie de “incubadora de inovação social”.
Segundo Mintz, o processo de Crioulização, enquanto criação de uma nova cultura a partir das ruínas da escravidão teve lugar em colônias como a Jamaica e o Haiti, mas não em Porto Rico, pois as bases desse processo – a escravidão e o sistema plantation de produção – foram fenômenos enfraquecidos na colônia Espanhola. Para reforçar o argumento, o autor chama atenção para a relação entre a língua e as relações sociais. Ele acredita que a não existência de línguas crioulas nas sociedades formadas sob o poderio Espanhol é uma pista importante para a reflexão sobre a homogeneidade social nesses contextos coloniais Hispânicos. Da mesma forma que determinadas condições contribuíram para a emergência das línguas crioulas no Haiti ou na Jamaica, elas também levaram à criação de “culturas crioulas” nesses territórios.
A crioulização foi, antes de tudo, um ato efetivo de criação por parte dos escravos e teve consequências similares na Jamaica e no Haiti. Mintz sugere, por exemplo, que um efeito importante dessas mudanças foi um tipo de modernização. Longe de ser uma mistura passiva entre culturas distintas, esse processo concretizou um esforço de criação de novas instituições híbridas e novos significados culturais para substituir aqueles que foram destruídos pela escravização. Foi uma reação aos terríveis constrangimentos impostos por essa situação e à concomitante desorganização étnica. Os escravos tiveram que construir coletivamente instituições sociais no interior do sistema escravista para fazer com que a vida cotidiana ganhasse algum sentido. A memória do passado era crucial, mas não bastava. As memórias precisavam ser arranjadas coletivamente através da construção de práticas sociais compartilhadas que permitissem uma perpetuação cultural. Esse processo de reconstrução, de atribuição de novos sentidos às atividades cotidianas, foram experiências modernizadoras, segundo Mintz.
A discussão retomada pelo antropólogo em “Three Ancient Colonies” recupera pontos fundamentais para a reflexão a cerca das ideias de globalização e hibridismo, por exemplo. Cinquenta anos depois, ao voltar às sociedades onde havia estudado ao longo de sua carreira, Mintz mostra como a antropologia pode ser uma ferramenta potente ao permitir a exploração de questões históricas de difícil compreensão. O seu interesse no impacto das dinâmicas econômicas da sociedade escravocrata e na continuidade das hierarquias sociais baseadas na raça e nas relações sociais de gênero levaram o antropólogo a formular a ideia de processo de crioulização como uma importante matriz de compreensão das culturas humanas.