ISSN 1982-9108 Revista  Zona de Impacto. ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro



Como as instituições de microcrédito promovem a autonomia das mulheres em Moçambique.
Estudo de caso da Tchuma, cooperativa de crédito e poupança

 


.
Catarina Casimiro Trindade
Mestranda em Antropologia Social - IFCH – UNICAMP

 



Resumo: Como se organizam mulheres que possuem pequenos negócios nos mercados da cidade de Maputo e que recorrem a instituições de microcrédito? Os seus negócios e família beneficiam do empréstimo que as mulheres recebem das institumicroições financeiras? Poderão estas promover a autonomia financeira das mulheres? Partindo da constatação de que são as mulheres as que mais procuram instituições micro financeiras e as que têm maior taxa de sucesso, a pesquisa partiu do estudo de caso de uma instituição de microcrédito existente na cidade de Maputo, Tchuma, Cooperativa de Crédito e Poupança, e das suas clientes comerciantes, para procurar dar resposta às questões levantadas. Orientadora: Profa. Dra. Virgínia Ferreira. Instituição de ensino: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Curso: licenciatura em Sociologia.

Palavras-Chave: microcrédito; autonomia; mulheres; economia informal; 

 



Introdução


“…o dinheiro que entra para as famílias, por intermédio das mulheres traz muito mais benefício para as famílias, ao contrário de quando é por meio do homem. Isto era tão óbvio que não precisávamos de pesquisa para mostrar. A mulher tem uma visão maior para o trabalho, enquanto o homem é mais impaciente. A mulher é muito mais consciente de seus projectos de negócio. O homem também é sério, mas menos do que a mulher.”
– Muhammad Yunnus, criador do Grameen Bank

Durante a escolha do tema para a minha tese, tinha somente duas exigências: que fosse sobre mulheres e sobre Moçambique. Depois de muitas sugestões compartilhadas com a minha orientadora, pôs-se a do microcrédito. Confesso que nunca tinha ouvido falar no conceito, mas fui para casa e comecei a pesquisar. Logo me dei conta de que se tratava de um tema bastante importante, que havia imensos estudos à volta do mesmo em toda a parte do mundo e, o que mais me chamou a atenção, que a maior parte das pessoas que têm acesso ao microcrédito são mulheres. Aí surgiu a minha primeira dúvida: porque é que tal acontece? O meu primeiro pensamento foi este: tendo em conta que o mercado informal1 em Moçambique é, na sua maioria (59%), controlado por mulheres, nada mais natural que sejam elas as principais clientes das instituições de microcrédito. Mas, à medida que fui avançando nas leituras, que fui vendo na televisão as diversas entrevistas sobre o microcrédito e, mais tarde, que fui realizando o trabalho de campo, cheguei à conclusão que a razão não era só aquela. As instituições de microcrédito têm mais clientes mulheres e preferem tê-las a elas como clientes, não só porque as taxas de sucesso são maiores, mas também porque, quando uma mulher recebe um empréstimo, não é só ela e o seu negócio que beneficiam, mas toda a sua família. A preocupação da mulher está virada para o sucesso do seu negócio, sim, mas também, e principalmente, para a educação dos filhos, fazendo de tudo para que estes não saiam da escola, para a saúde e bem-estar destes, bem como para a melhoria da habitação e a compra de bens. Ou seja, não é só um negócio que se salva, mas também uma família inteira que é tirada da pobreza.

A delimitação do tema desta dissertação teve a ver com tudo isto e também com a minha preocupação em perceber como trabalham as mulheres com o empréstimo que lhes é dado e se as suas vidas melhoram ou não.

Para isso, procurei uma instituição de micro-crédito em Maputo com a qual pudesse trabalhar, conhecer a sua história, como surgiu, o seu funcionamento, os financiamentos, os seus objectivos, as características dos seus clientes, os serviços que presta, as áreas de intervenção, o seu desempenho, entre muitos outros aspectos. Mais importante ainda era conhecer as suas clientes, as histórias de vida, os seus negócios, como investiram o empréstimo que receberam, ou seja, a sua vida antes e após o empréstimo, saber se melhoraram de vida ou não e o que para elas mudou.

Assim, o trabalho está dividido em seis partes. No capítulo I será apresentada a formulação da problemática, com a sua identificação (a origem do micro-crédito e as suas características), contextualização (o micro-crédito em Moçambique e o sector informal) e a sua problematização (o papel das mulheres e o conceito de autonomia).

A metodologia de trabalho utilizada durante a pesquisa de campo, juntamente com as hipóteses de trabalho e a experiência de campo será desenvolvida no capítulo II.

O capítulo III trará a caracterização da Tchuma, com a sua origem, características e funcionamento.

O trabalho baseado nas entrevistas começa no capítulo IV, onde falarei sobre o acesso ao crédito por parte das mulheres.

O capítulo V aborda a questão da gestão do micro-crédito, assim como o acompanhamento que é dado às clientes e a relação destas com a instituição.

O impacto que o micro-crédito tem na vida das mulheres, tanto ao nível económico, como sócio-familiar será desenvolvido no capítulo VI.

Nos próximos volumes a Revista Zona de Impacto publicará os demais capítulos desse trabalho.



1. A origem do micro-crédito 2 : Muhammad Yunus e a criação do Grameen Bank

Existiram e existem ainda diversas experiências de micro-crédito no mundo, mas a mais conhecida e replicada por muitos é a de Muhammad Yunus.

O Grameen Bank, primeiro banco do mundo especializado em micro-crédito, foi criado por Muhammad Yunus na década de 70 no Bangladesh, onde havia um grande contingente de pessoas que sobreviviam com actividades informais. A ideia surgiu de maneira singela, quando Yunus emprestou cerca de 27 dólares, tirados do seu próprio bolso, a cerca de 40 mulheres, para assim poderem adquirir matéria-prima que utilizaram no seu negócio, livrando-as de agiotas que as mantinham num regime quase de trabalho escravo. Yunus surpreendeu-se ao verificar que todos os empréstimos lhe foram restituídos pontualmente e pensou que esse processo talvez pudesse ser multiplicado indefinidamente.

Diz Yunus que toda a figura humana é um empreendedor em potencial. Se assim é, o cenário actual pode ser bastante alterado. Para isso é preciso então criar instituições para assistir as pessoas. Foi nesse sentido que começou a expandir a sua ideia a outras aldeias do país.

Grameen Bank – principais características e objectivos

Ao criar o sistema de micro-crédito e o Grameen Bank, Yunnus pretendia que o acesso ao crédito fizesse parte da lista dos direitos humanos. Surgiu assim a ideia de que os serviços financeiros podiam ser levados aos pobres, possibilitando o desenvolvimento pessoal, a sustentabilidade individual e a protecção contra agiotas informais e exploradores, tendo-se tornado, no decurso de 30 anos, numa indústria multimilionária.

O Grameen Bank inverteu a prática convencional dos bancos, ao remover a necessidade de garantias e ao criar um sistema bancário baseado na confiança mútua, responsabilidade, participação e criatividade. Assegura o crédito aos mais pobres dos pobres, sem qualquer garantia.

Aqui, o crédito funciona como uma arma contra a pobreza e um meio para o desenvolvimento das condições socio-económicas dos pobres que têm sido mantidos fora do sistema bancário, com a desculpa de que são pobres e, desta maneira, incapazes.

Os principais objectivos do Grameen Bank são prover serviços bancários aos pobres, homens e mulheres, que sejam realmente empreendedores, eliminar a exploração dos pobres, tradicionalmente feita pelos agiotas, criar novas oportunidades de auto-emprego para a vasta população desempregada no Bangladesh rural, trazer a população carente, em especial as mulheres mais pobres, para o seio de um sistema orgânico que elas possam compreender e organizar sozinhas e reverter o antigo círculo vicioso de “baixa renda, baixa poupança e baixo investimento”, introduzindo crédito para torná-lo um círculo virtuoso de “investimento, maior renda, maior poupança”.

Yunus argumenta que, ao falar de micro-crédito, está a referir-se única e exclusivamente ao crédito Grameen e que, por isso, é importante deixar claro a que se refere. As características principais do sistema são:

Promover o crédito como um direito humano.
Ajudar as famílias pobres a vencer elas próprias a pobreza
Dirige-se aos mais desfavorecidos, principalmente as mulheres
Baseia-se na confiança e não em sistemas e procedimentos legais e garantias, entre outros.

2. Micro-crédito 3 Características, formas e objectivos

O termo micro-crédito não existia até à década de 70. Hoje em dia, existem diversas definições do termo, este é designado para caracterizar uma imensidão de formas de crédito, o que tem vindo a criar alguma confusão. Irei explicitar algumas, as que considero mais relevantes para este trabalho.

No geral, designa uma variedade de empréstimos cujas características comuns são o facto de serem de pequeno valor, serem direccionados a um público restrito (desempregados, pequenos empresários e outras pessoas que vivem na pobreza), definido pela sua baixa renda ou pelo seu ramo de negócios, que geralmente não têm acesso às formas convencionais de crédito. Este conceito proporcionou, com enorme sucesso, o desenvolvimento de projectos de pequenas empresas e o auto-emprego, facultando às pessoas que tiveram acesso ao crédito a possibilidade de gerar renda e, em muitos casos, melhorar a sua condição de vida e sair da pobreza. Assim, caracteriza-se como uma política de combate à pobreza e não tanto como uma política de financiamento.

Formas de Micro-crédito

Yunus sugere uma classificação do micro-crédito mais alargada, para que, quando falemos em micro-crédito, saibamos a qual destas formas nos estamos a referir. São elas:

Micro-crédito informal tradicional – empréstimos feitos a amigos e familiares, entre outros;

Micro-crédito baseado em grupos tradicionais informais – o chamado xitique 4 , utilizado em Moçambique, é um deles;

Actividades-base de micro-crédito através de bancos convencionais ou especializados – crédito agrícola, de animais ou pesca, entre outros;

Crédito rural através de bancos especializados;

Micro-crédito cooperativo – Crédito cooperativo, uniões de crédito, associações de poupança e empréstimo, bancos de poupança;

Micro-crédito de consumo;

Micro-crédito baseado na parceria entre bancos e ONG’s;

O crédito Grameen;

Outros tipos de micro-crédito de ONG’s;

Outros tipos de micro-crédito que não de ONG’s.

É importante clarificar que esta classificação é meramente exemplificativa.

Com o micro-crédito, ensina-se algo de fundamental às pessoas, ou seja, a confiar mais no seu esforço, criatividade e trabalho do que nos auxílios e doações. Uma pessoa que consiga dar os primeiros passos com um empréstimo deste tipo terá criado uma actividade económica sustentável, uma micro-empresa que será um activo a mais na sociedade em que vive, pois gerou desta maneira o seu próprio emprego. E se assim se possibilitar a sua integração no sistema financeiro tradicional, poderemos também dizer que se estimulou a poupança (Jacques, Mick, 1999).

Mas não esqueçamos que o crédito é um meio e não um fim em si mesmo. Uma eficiente provisão de serviços financeiros dirigidos aos pobres não resolverá constrangimentos originados por uma falta de ou acesso aos mercados. O crédito e poupança irão somente ajudar os clientes servidos, dando-lhes uma maior variedade de escolhas para sobreviver no sector informal, escolhas essas baseadas nas suas capacidades e trabalho árduo (Jackelen, Henry e Rhyne, Elisabeth, 1991).

Segundo Kofi Annan, ex-Secretário Geral da ONU, o acesso sustentável ao micro-financiamento ajuda a amenizar a pobreza mediante a geração de renda e a criação de empregos, permitindo que as crianças frequentem a escola, que as famílias obtenham assistência sanitária e fortalecendo as pessoas para que tomem decisões que se adaptem melhor às suas necessidades.

Uma das características principais dos programas de micro-crédito é a de tratarem os pobres como clientes comerciais e não como beneficiários. Estes são capazes de poupar e pagar empréstimos, sendo assim possível desenvolver instituições especializadas, capazes de alcançar milhares de clientes nos países em vias de desenvolvimento (Jackelen, Henry e Rhyne, Elisabeth, 1991).

Segundo o Grupo Consultivo de Ajuda à População mais Pobre do Banco Mundial (CGAP), as instituições micro-financeiras deveriam reunir quatro condições:

Permanência – Prestar serviços financeiros a longo prazo

Dimensão – Abranger um número suficiente de clientes

Focalização – Chegar à população pobre

Sustentabilidade financeira.

Promover serviços de micro-crédito e poupança tem algumas vantagens, as quais estão na origem de um grande optimismo por parte de quem com eles trabalha. Os meios para gerir estes programas e instituições estão disponíveis em todos os países em vias de desenvolvimento; em termos de pessoal, são abundantes, na maior parte destes países, indivíduos com capacidades básicas que podem ser formados a fim de executar as complexas tarefas exigidas; a revolução nas tecnologias de informação permitiu que os computadores se tornassem disponíveis na maior parte destes países, minimizando a quantidade de formação e especialização exigidos para a utilização desta tecnologia. (Jackelen, Henry e Rhyne, Elisabeth, 1991)

Objectivos das instituições de micro-crédito

As instituições de micro-crédito têm como prioridade o combate à extrema pobreza. Assim, a aplicação de empréstimos de baixo valor, sem burocracias e com juros baixos, permite a manutenção do auto-emprego ou a geração de novos postos de trabalho, preferencialmente para mulheres chefes de família.

Se uma pessoa ou grupo se encontra excluído do sistema financeiro tradicional por falta de garantias, é provável que sofra também uma grande exclusão social. Se com o micro-crédito se puder evitar a exclusão financeira e apoiar o impulso empreendedor, estar-se-á a contribuir para o progresso social.

Dentro da instituiçãoé importante que haja um acompanhamento dos micro-empresários e se estabeleça uma relação de confiança entre ela e alguém que esteja disposto a assumir o risco inerente a um negócio, por mais pequeno que ele seja. É preciso conhecer as pessoas, autonomizar os custos no apoio à melhoria de cada plano de negócios, reduzir os riscos do crédito concedido e acompanhar a evolução do negócio e os pagamentos do empréstimo. Assim, aumentam-se as hipóteses de sucesso deste tipo de iniciativas económicas sem se tornar incomportável o custo do crédito.

3. O micro-crédito em Moçambique

A sua origem

A ligação mais antiga às micro-finanças em Moçambique remonta à criação, em 1989, do Urban Enterprise Credit Fund, estabelecido como um dos componentes do Programa de Reabilitação Urbana (PRU) do Banco Mundial e executado pelo Gabinete de Promoção de Emprego (GPE) no Ministério do Trabalho. Este programa fornecia pequenos empréstimos a uma grande variedade de actividades urbanas, incluindo restaurantes, bares, salões de beleza, carpintarias, peixarias, etc. Esta foi a primeira tentativa de estabelecer um fundo não-bancário, apesar de os empréstimos serem desembolsados pelo Banco Popular de Desenvolvimento (BPD) e serem cobradas taxas de juro comerciais (de Vletter, 2006:3).

Desenvolvimento

Em 1992, com a unificação da Alemanha, cerca de 18000 moçambicanos que trabalhavam na antiga RDA (República Democrática Alemã), ao abrigo de um acordo intergovernamental foram repatriados. O governo alemão, através da sua agência de assistência técnica Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ), estabeleceu um programa de formação e crédito com o GPE para assistir os “madgermanes” 5. Este projecto cedo dividiu as actividades de crédito e formação. O programa de crédito abriu, subsequentemente, as suas portas a todas as micro-empresas existentes em Maputo e na Beira, estabelecendo as sementes do que mais tarde se veio a tornar o banco comercial SOCREMO. Este viria a ser, em 1998, o primeiro programa de micro-finanças a tornar-se uma instituição financeira registada, com o Governo de Moçambique a deter 94% do capital (de Vletter, 2006:3).

Em 1993, o World Relief anunciou alguns planos de estabelecer “village banks”, dirigidos às mulheres pobres que trabalhavam nos mercados na área do Chokwé e na província de Gaza. Esta iniciativa foi considerada, por várias razões, a primeira iniciativa de micro-finanças no país. Foram alcançados impressionantes resultados, incluindo taxas de retorno de quase 100%. Estes resultados foram imprescindíveis para que o governo começasse a apoiar de forma positiva o sector financeiro (de Vletter, 2006:3).

Durante esses primeiros anos, as micro-finanças foram dominadas pela presença de pequenas (na sua maioria rurais) iniciativas de ONG’s internacionais, que as introduziram como um dos vários componentes dos seus programas integrados (de Vletter, 2006:4).

Em 1995/96, o Banco Internacional de Moçambique (BIM) e o Fundo de Desenvolvimento Comunitário (FDC) iniciaram um projecto-piloto com fundos da Suiça, que viria a ser o percursor da primeira cooperativa exclusivamente dedicada às micro-finanças, chamada Tchuma.

O primeiro estudo sobre o sistema micro-financeiro em Moçambique, feito em 1997, demonstrou a existência de 25 operações/iniciativas de micro-finanças. Estas serviam um total de 6000 clientes. Grande parte foi implementada por projectos e ONG’s nacionais e internacionais, servindo clientes urbanos e peri-urbanos na cidade de Maputo.

O segundo estudo, em 2002, indicou importantes desenvolvimentos neste sector, nomeadamente o aparecimento de entidades legais locais e a criação de instituições independentes, uma maior dispersão geográfica, maior consciência em relação às “boas práticas” das micro-finanças por parte dos doadores e operadores, altos níveis de alcance, o aparecimento de algumas intervenções nas áreas rurais e a publicação de um decreto para regular as actividades de micro-crédito.

Em 1998 o Banco de Moçambique (BM) adoptou uma resolução regulando as actividades de micro-crédito. Segundo os termos desta, todas as instituições e indivíduos que ofereçam crédito, registados sob qualquer forma legal, devem requerer uma licença para o exercício da actividade ao BM.

Em 2000, o crédito era praticamente o único produto financeiro oferecido pelos operadores. Juntamente com este, que era dirigido essencialmente para financiar micro-empresários, as poupanças e os seguros eram oferecidos numa escala muito limitada.

O sector de micro-finanças foi acompanhado por três programas complementares exclusivamente dedicados ao sector. Foram eles:

Microstart Mozambique (2000-2003) – deveria permitir um acompanhamento da indústria emergente
Mozambique Microfinance Facility (MMF) (2001-2006) – os objectivos do programa integram as componentes de assistência técnica às IMF, de monitoria da criação dum quadro legislativo favorável, de criação duma associação das instituições de micro-finanças ou ainda duma Central de Risco.
Opstream Project (2002-2005) – permitiu sensibilizar e formar os decisores políticos e económicos em questões ligadas às especificidades das micro-finanças.

Actualidade

Apesar do serviços de micro-finanças serem oferecidos por uma variedade de instituições – bancos comerciais, ONG’s, cooperativas de crédito e poupança e associações locais – o sector é ainda pouco desenvolvido quando comparado com outros países africanos. Não obstante o número de clientes activos ter crescido, continua ainda a ser pouco para um país com a população que Moçambique tem.

Hoje em dia há uma maior presença de entidades legais locais, algumas das quais estando a tornar-se instituições independentes.

O mais notável tem sido o aumento no número de clientes activos de micro-finanças, tendo ultrapassado os objectivos do governo para 2005, alcançando um total de aproximadamente 103.471 clientes em meados desse ano.

A maior procura de crédito destina-se a actividades não-agrícolas, geradoras de rendimentos complementares, em particular o comércio e também algumas actividades de produção artesanal e de transformação.

A maior parte dos programas encontra-se ainda muito dependente de gestões exteriores ou de assistência técnica estrangeira mas, em alguns casos, estão já a criar condições para gerar capacidades locais.

Características do sector micro-financeiro em Moçambique

Apesar do grande sucesso, as disparidades de género continuam a existir em programas que servem o norte e o sul do país. No sul, as clientes mulheres ultrapassam os homens, num factor de dois em um, tendo uma participação de cerca de 73,5%. No norte, a participação feminina não chega aos 15%, apesar dos enormes esforços feitos. A razão desta desigualdade tem sido atribuída a diferenças socio-económicas, culturais e religiosas (de Vleter, 2006:24).

No geral, as mulheres representam 57% dos clientes de micro-crédito, estando basicamente ligadas ao comércio informal (40%), agricultura (25%), pequenas indústrias (25%) ou serviços (10%).

A maior procura de crédito destina-se a actividades não-agrícolas, geradoras de rendimentos complementares, em particular o comércio e também algumas actividades de produção artesanal e de transformação.

Uma das mais surpreendentes descobertas diz respeito à idade dos clientes. Apesar da juventude do mercado informal, a idade média de um cliente há mais de dois anos é superior a 40 anos. Não há uma explicação óbvia para a escassez de clientes jovens, no entanto, a falta de garantias (agravada pelo facto de a maior parte dos jovens viver ainda com os pais, devido ao custo de uma habitação) e a instabilidade residencial foram indicadas como possíveis factores (de Vletter, 2006).

Verifica-se também que são sem dúvida as mulheres as principais clientes do micro-crédito, não só pelo papel que desempenham nas actividades económicas, como pela responsabilidade que emprestam ao cumprimento das obrigações contratuais. Sobretudo as pequenas vendedoras dos mercados urbanos que comercializam alguns produtos agrícolas, bebidas tradicionais, doces caseiros, capulanas 5, peixe, e outras mercadorias são as maiores beneficiárias dos fundos de crédito. Os homens conseguem trabalho mais facilmente no sector formal e as mulheres tendem a virar-se para o sector informal de vendas como a sua principal fonte de rendimentos.

Principais instituições de micro-crédito em Moçambique

Existem, ao longo de todo o país, diversas instituições, bancos e cooperativas de micro-crédito.

Falarei apenas das três mais importantes da cidade de Maputo, pois creio serem suficientemente elucidativas do tipo e características de todas elas.

A Tchuma (Cooperativa de Crédito e Poupança), a SOCREMO (Banco de Micro-Finanças) e o NovoBanco (Instituição Micro-Fonanceira) concentram 76% da carteira activa de clientes. O NovoBanco possui uma larga e equilibrada cobertura de mercado, tanto em termos de número de clientes como de carteira; a SOCREMO possui uma larga cobertura, mas parcialmente desequilibrada, tendo as suas actividades uma orientação comercial; a Tchuma possui uma cobertura média e equilibrada, com um segmento económico médio de clientes, tanto rurais como urbanos.

A crescente competição entre estas três instituições, todas tendo como alvo o mesmo tipo de beneficiários, resultou em três consequências: o notável desenvolvimento na qualidade dos produtos de empréstimo oferecidos, em especial a rápida aprovação e renovação de empréstimos; serviços mais eficientes e agências modernas e, finalmente, a introdução de novos produtos financeiros, como os empréstimos para a habitação, para salários-base e pequenos e médios empréstimos para negócios.

A Economia Informal

Considerando que grande parte das mulheres com acesso ao micro-crédito se encontra ligadas ao sector informal, tendo como actividade principal a venda de produtos nos mercados, torna-se urgente uma caracterização deste tipo de economia, que tem vindo a crescer fortemente, nos últimos anos, não só nos países em vias de desenvolvimento, como em todo o mundo.

Muitas vezes definida em termos do que não é (actividades económicas e empresas sem registo, sem regulação e que não pagam impostos), a economia informal tem como base as actividades caracterizadas por um baixo nível organizacional, com limitada ou inexistente divisão entre o trabalho e o capital e onde as relações de trabalho são sempre baseadas em colaborações ocasionais, as ligações familiares, entre outras. Inclui pequenas empresas sem qualquer tipo de registo e trabalho remunerado sem contratos, seguros, benefícios ou protecção legal. Engloba, ainda, as situações seguintes:

Auto-emprego em empresas informais

Empregadores

Trabalhadores por conta própria

Familiares que trabalham sem qualquer remuneração

Empregados de empresas informais, entre outros.

O sector informal em Moçambique

A situação conjuntural do país demonstra que o sector informal continua a ser a única alternativa para a sobrevivência de muitas famílias.

Sempre que a questão do informal é debatida publicamente, a reacção mais comum é a negativa, pois a prática informal é vista como ilegal ou criminosa. Associa-se o informal ao ilegal de forma prejurativa e até ofensiva (Paulo e Francisco, 2006:11).

A informalidade resulta do grande êxodo rural 7 e da rápida urbanização que vem acontecendo nas últimas quatro décadas. Esta foi reforçada pelas transformações políticas e económicas que influenciaram o ritmo do crescimento económico, em geral, e da economia informal, em particular (Paulo e Francisco, 2006:27).

No período pós-independência, com a situação urbanística e económica precária a agravar-se e o mercado formal e privado a tornar-se cada vez mais inviável, tanto do ponto de vista económico, como social e financeiro, a informalidade converteu-se na única solução disponível para a maioria da população (Paulo e Francisco, 2006:27-28).

Com uma população de cerca de 19 milhões, 80% dos moçambicanos pertence ao meio rural e 77% não possui outros rendimentos a não ser os agrícolas. Num país em que 11% da população tem um emprego formal, que se traduz numa percentagem pouco importante no conjunto da população activa, é um indicador significativo da degradação das condições de vida da população o facto dos salários reais terem diminuído para cerca de metade desde o início do PRE (Programa de Recuperação Económica) em 1987. A taxa de desemprego é de cerca de 40%. A liberalização económica permitiu o crescimento progressivo da chamada “economia informal” ou “economia popular”, que representava já em 2000 cerca de 44% da produção total comercializada. O sector informal representa cerca de 85% da população activa, sendo que a maioria dos trabalhadores deste sector são mulheres (59%) 8.

A informalidade é um fenómeno tanto rural como urbano. No meio urbano, o sector informal abrange 68%, contra cerca de 32% no sector formal. No meio rural, o sector informal tem um peso muito maior, cerca de 95% do total dos trabalhadores, contra 5% no sector formal (Paulo e Francisco, 2006:45).

Um aspecto importante a observar no sector informal é o próprio facto de a maior parte dos agentes informais serem mulheres. Estas fazem parte dos primeiros grupos que dinamizaram a criação e o desenvolvimento do sector informal e continuam a representar a maior população de indivíduos que operam neste sector. Isto significa também que se trata de uma actividade que até muito recentemente era considerada pouco convencional para indivíduos do sexo feminino (Cruz e Silva, 2005:2-3, 16).

Tendo iniciado as suas actividades de comércio informal para suprir a grande crise alimentar que afectou o país e particularmente a cidade de Maputo na década de 80, os efeitos das reformas económicas (em 1987 iniciou o Programa de Reabilitação Económica, PRE, quando Moçambique ainda se encontrava em guerra) de meados da mesma década levaram um número cada vez maior de mulheres a engrossar este sector (Cruz e Silva, 2005:16).

Hoje a mulher não está apenas ligada a actividades do pequeno comércio retalhista de bens alimentares e vestuário, mas abarca outras áreas mais diversificadas, nomeadamente o comércio interprovincial e transfronteiriço. As mulheres são as que mais exercem actividades informais, em todas as classes de idade (de Vletter, 2006:33).

Em especial na cidade de Maputo, o sector informal é a maior fonte de emprego, principalmente de auto-emprego, para as mulheres (de Vletter, 2006:31-32).

Um aspecto importante deste sector é o facto de a maioria dos vendedores procurarem o que pode ser considerado como actividades de sobrevivência, devido à falta de alternativas económicas. Tais actividades requerem pouco mais do que o fundamental para vender e, por não haver muitas ambições empresariais, estas não mudam ou aumentam muito pouco (de Vletter, 2006:33).

Sistemas informais de micro-finanças

Mais pessoas são servidas pelos sistemas informais de microfinanças do que pelas instituições microfinanceiras. A maior parte das pessoas que recorre ao micro-crédito e que recebe empréstimos pequenos e médios está envolvida com práticas financeiras informais.

“A incapacidade do Estado para a produção de serviços sociais básicos levou ao crescimento de formas alternativas de gestão social, transferidas para a sociedade civil, que passou a exercer muitas das funções ligadas à produção do bem-estar económico e social, através de ONG’s, Associações e diferentes redes de solidariedade (parentesco, vizinhança, grupos profissionais, étnicos, de amizade, etc).” (Cruz e Silva, 2005:1)

Existem iniciativas locais e saberes populares que são parte das estratégias de sobrevivência económica e se constituem como alternativas para fazer face à exclusão social.

Elas assumem por vezes características extra-económicas que envolvem a preservação da dignidade humana, mesmo em condições de extrema pobreza. As redes de solidariedade e os grupos de poupança, grupos de entre-ajuda ou outras formas de solidariedade, são meios de auto-organização e constituem iniciativas de base comunitária na origem da resolução de problemas.

Especificamente em Maputo, dois sistemas destacam-se, ambos forçando os membros a poupar. A associação de crédito e poupança rotativo (ROSCAS), popular em várias partes do mundo, é comum em Moçambique (particularmente nas zonas urbanas) e chama-se xitique. O segundo é um sistema de poupança diário, depositado nas mãos de operadores que trabalham nos mercados e chama-se xitique geral. Este centra-se somente na área de Maputo-Matola.

Enquanto que estes sistemas informais usam o “saving-up”, que requer depósitos graduais até alcançar um certo montante, os depósitos nas instituições de microfinanças usam o “saving-down”, que permite que os clientes recebam fundos que foram sendo depositados durante algum tempo.

“As práticas tradicionais de ajuda mútua tendem a ser mais frequentes (depois de 1986) comparativamente ao período anterior, devido ao aumento das dificuldades de vida e sobrevivência para as pessoas mais pobres (os que mais participam), levando naturalmente à recuperação das práticas existentes no passado. As mulheres são as mais conservadoras nestas práticas tradicionais, e em algumas actividades como Matsoni/Xivunga e Xitique, são por elas dominadas. Perante isto, conclui-se que as mulheres detêm um papel importante na provisão de meios de subsistência para os seus agregados familiares” (Paulo e Francisco, 2006:86).

4. Sobre a situação da mulher

Hoje em dia, falar de micro-crédito é também falar de igualdade de oportunidades de género. Não é por acaso que mais de 90% das pessoas que beneficiam deste tipo de empréstimos em todo o mundo são mulheres. Isto porque, em determinados sectores sociais, a mulher continua a ser a principal e mais directa responsável pela unidade familiar. Além disso, existe um outro factor relacionado: as mulheres ainda encontram muitos obstáculos para entrar no mercado de trabalho (Mick, 1999).

Desde a primeira Conferência Mundial de Mulheres, em 1975, tem havido alterações significativas, algumas delas positivas, no estatuto social e económico da mulher. As mulheres constituem uma porção desigual dos pobres no mundo inteiro devido ao seu fraco acesso ao capital e às terras, ao seu baixo estatuto no mercado de trabalho e à desproporcionada responsabilidade que lhes é atribuída pelo trabalho doméstico não remunerado. De uma maneira mais geral, a natureza ambivalente das conquistas das mulheres é, talvez, ilustrada através da “feminização” da força de trabalho. Nas últimas duas décadas o acesso, por parte das mulheres, ao trabalho remunerado cresceu na maior parte dos países, mas ao mesmo tempo verificou-se uma deterioração nos termos e condições das ofertas de trabalho. O crescimento do trabalho informal pelo mundo, juntamente com a informalização do sector formal de emprego, tem permitido aos trabalhadores baixar os custos de trabalho. No entanto, para a generalidade das mulheres e homens o resultado foi o aumento da precariedade dos empregos e maior insegurança nas estratégias de sobrevivência (UNRISD, 2005:1-7). Existem mais mulheres hoje na economia formal do que havia antes mas, ao mesmo tempo, com a reestruturação da economia, estas foram as primeiras a serem despedidas por serem menos especializadas. São as que mais dificuldades encontram quando procuram um emprego por serem menos alfabelitazas e daí aceitarem qualquer oferta de trabalho sem as mínimas condições. Tudo isto parece muito contraditório, mas não é, pois ainda hoje existe muita discriminação e desigualdade.

Assim, o trabalho informal tem vindo a aumentar e a tornar-se uma grande fonte de rendimento para mulheres em quase todas as regiões em desenvolvimento. A insegurança instaurou-se, mesmo para os trabalhadores dos sectores mais protegidos e as mulheres com baixo rendimento tornaram-se incrivelmente visíveis 9, tanto na parte da agricultura como na economia formal urbana e também na migração do campo para a cidade e além fronteiras.

Programas de combate à pobreza, seja na forma de micro-crédito ou transferências de dinheiro para famílias pobres têm como alvo principal as mulheres, tendo como base o facto de que estas usarão os recursos de que dispõem de maneira a aumentar o bem-estar da família e das crianças. As ONG’s são responsáveis, em quase 70% dos casos, de fazer a ligação entre as mulheres e as fontes de crédito.

Ganhar dinheiro, qualquer que seja a quantia, pela primeira vez, pode não alterar certas características de subordinação, tal como a da mulher no que toca à protecção do homem. Mas pode reduzir a sua dependência em relação a este e aumentar a sua segurança económica e tomada de decisões no espaço doméstico.

O papel da mulher em África

No geral, as mulheres gozam, como grupo, de menos direitos e trabalham mais que os homens. Realizam dois terços de todo o trabalho no mundo, recebem 10% do rendimento anual, são dois terços dos analfabetos (funcionais) do planeta, possuem menos de 1% da propriedade mundial, são mais de metade da população, vivem mais e em piores condições que os homens e têm um poder desigual no que diz respeito ao acesso e controle dos recursos e poder. Durante muitos anos as mulheres foram votadas ao silêncio e à invisibilidade por parte da ciência e da sociedade. No entanto, desde os tempos mais recuados da história que a sua contribuição foi fundamental na domesticação das plantas e no surgimento da agricultura, bem como na domesticação dos animais (Projecto SEGUI, 1999:30).

Na África ao Sul do Sahara, as mulheres dedicam mais de metade do seu tempo e energia à sociedade sem retribuição e sendo subestimadas. São as agricultoras invisíveis e, no geral, não têm direitos legais sobre a terra, uma vez fora dos sistemas de parentesco existentes (Projecto SEGUI, 1999:30).

Homens e mulheres têm múltiplos papéis e responsabilidades. No entanto, enquanto que os homens são geralmente capazes de se focar num só papel produtivo e representam os seus múltiplos papéis numa sequência, as mulheres, ao contrário, representam os seus papéis simultaneamente, tendo em conta o tempo limitado que têm para cada um deles (World Bank Working Paper nº73, 2006:1-2).

Os diferentes papéis de homens e mulheres apresentam diferenças importantes, que constituem um grande obstáculo para a redução da pobreza e para o desenvolvimento da África ao Sul do Sahara. Os papéis significantes, mas subestimados, das mulheres na produção económica (agricultura e sector informal, predominantemente) e a sua posição na gestão do agregado familiar e no bem-estar (preparação da comida, saúde e higiene, apoio às crianças e educação) são centrais para o desenvolvimento económico e para a sobrevivência social (World Bank Working Paper nº73, 2006:27)

Uma significativa porção da actividade produtiva que não é bem captada pelas estatísticas oficiais encontra-se no interior do agregado familiar. Esta revela a co-existência de uma economia de mercado e familiar e como estas são interdependentes. Revela não só o verdadeiro tamanho e significado da economia familiar (medida em termos do tempo que se dispende nas tarefas domésticas), mas também o peso desproporcional que recai sobre as mulheres para a realização destas tarefas (World Bank Working Paper nº73, 2006: 26)

Em Moçambique, embora as mulheres sejam as principais produtoras agrícolas em meio rural e obrigadas a inventar as mais diversas estratégias de sobrevivência em meio urbano, não têm um estatuto conforme o trabalho que realizam (Projecto SEGUI, 1999:28).

Até aos anos 80, a posição da mulher em Moçambique não foi objecto de estudo na investigação social, tendo permanecido invisível. Os estudos sobre a mulher não aparecem individualizados, sendo esta integrada no contexto da família, do sistema de parentesco, através da descrição de rituais, dos usos e costumes dos diferentes grupos populacionais do país e no âmbito da divisão sexual do trabalho. A esfera privada aparece sempre reservada à mulher e considerada natural e desvalorizada, sendo a pública da responsabilidade dos homens, mais visível e valorizada (Projecto SEGUI, 1999:31).

No entanto, apesar da perda de representação política e das diversas transformações de ordem política, a participação das mulheres em diversos assuntos não cessou. A sua participação e poder de decisão são diversos de acordo com o seu estatuto e com a sua posição social. Mulheres que não pertencem às elites, tanto em meio rural como urbano, organizam comunidades de ajuda mútua, para poupança de dinheiro, para apoiar nas tarefas da machamba, nas associações comerciais, sociedades de crédito, no sentido de promover os seus interesses mais imediatos. Ou seja, em actividades geradoras de rendimentos, jardins infantis, educação dos filhos, nutrição e saúde, terra, procurando, dos mais diversos modos, adaptar-se e modificar a situação existente (Projecto SEGUI, 1999:34).

O emprego de mulheres nas empresas de pequena escala é geralmente mais alto do que nas grandes empresas. As mulheres têm que usualmente cobrir as tarefas domésticas (tomar conta das crianças, cozinhar, tomar conta dos idosos, etc.), para além das suas actividades externas tais como a produção para o mercado e as ligadas à gestão comunitária.

O envolvimento das mulheres em micro-negócios pode ser explicado, em certa medida, pelas vantagens do sector empresarial de pequena escala, em termos da sua proximidade com o local de trabalho e com o de residência, com uma melhor flexibilidade em termos de horas de trabalho e pelo seu envolvimento a tempo parcial. No entanto, o baixo nível de entrada nas empresas de pequena escala pode ser explicado pelo facto de as mulheres terem um menor nível educacional, enfrentarem barreiras culturais, terem que lutar contra leis e regulamentos discriminatórios e por terem raramente acesso a linhas normais de crédito.

Mesmo quando as mulheres têm a mesma educação que os homens e igual experiência, o fardo das tarefas domésticas reduz a sua disponibilidade para participar na vida económica. Assim, a contribuição do seu trabalho “visível” (pago) e a contribuição do seu trabalho “invisível” (não pago) resulta na sobrecarga do trabalho da mulher.

Mulheres e Autonomia

Considerada uma categoria básica de análise e acção política do movimento das mulheres, a autonomia define, por isso, um caminho próprio e não imposto, que reconheça e respeite os direitos das mulheres no seu processo de procura de melhores condições de vida para si, para as suas famílias, para a comunidade e a sociedade (Casimiro, 2000:6).

Equaciona a possibilidade ou não que as mulheres têm de tomada de decisões, enquanto mulheres, com direitos e deveres na família, na comunidade ou sociedade.

A questão da autonomia é fundamental, em África, porque entra, a maior parte das vezes, em choque com o que é considerado o aspecto central da “cultura africana”, ou seja, a mulher como uma grande mãe, sempre pronta a dar e a nunca receber, a trabalhar e sem tempo para descansar (Casimiro, 2000:6).

Falar de autonomia é também abordar a questão do poder, poder de decisão, de aceder e controlar recursos. Reconhece-se que há diversos factores que intervêm na capacidade das mulheres poderem tomar vários tipos de decisão, que digam respeito à sua vida, à vida dos seus filhos, à vida das famílias. Estes factores estão relacionados com a vida em meio rural ou urbano, grupo étnico, crença religiosa professada pelo grupo familiar, estatuto, posição social, sexo, ciclo de vida, tipo de casamento, relações com a família e possibilidades de obter apoio de membros diversos da família, entre outros (Projecto SEGUI, 1999:27).

Tem múltiplas dimensões, cada uma fundamental pra se alcançar o controle sobre as vidas e corpos dos seres humanos, neste caso concreto, das mulheres:

Autonomia física – diz respeito à autodefinição da reprodução e da sexualidade

Autonomia política – está relacionada com o direito de opinião, organização e participação

Autonomia económica – em relação ao acesso e controle dos meios de produção

Autonomia sociocultural – relativamente a aspectos de identidade e auto-estima. (Cruzeiro do Sul, 1999:28)

Os processos de individualização, identidade e “emponderamento” podem conduzir, numa primeira fase de descoberta de si, a uma prática de isolamento. No entanto, esta autonomia, relacionada com os limites que a sociedade, a família e os homens impõem às mulheres, dará lugar a uma autonomia mais dialogante que, reconhecendo as relações de força e de poder em que se geram as relações de género, pretende modificá-las através da acção e da decisão, pessoal e colectiva, dos sujeitos sociais específicos (Projecto SEGUI, 1999:29).

Tendo em conta tudo o que foi dito até agora, apresento, de seguida, a pergunta com a qual parti para o trabalho de campo:

“Em que medida as organizações de micro-crédito contribuem (ou não) para a autonomia das mulheres?”

Bibliografia

Site consultado a 3 de Fevereiro de 2006:

Casimiro, Isabel (2000), Relações de Género na Família e na Comunidade em Nampula: Cruzeiro do Sul Trust Fund, Maputo
Cruzeiro do Sul Trust Found (1999), Projecto Seguimento do Programa Estratégico de Nampula (Projecto SEGUI), Relatório Ano 1 (referente a 1998), Nampula e Maputo, Janeiro.
Grameen Bank
http://www.grameen-info.org/
Jackelen, Henry R. e Rhyne, Elisabeth (1991), Toward a More Market-Oriented Approach to Credit and Savings for the Poor (UNCDF), Tokyo Fórum on LDCs. pp10
Mick, Jacques (1999), Micro-crédito e Combate à Pobreza: A Experiência Brasileira no Contexto da Globalização. Brasília: ESAF
UNRISD (2005), Gender Equality: Striving for Justice in an Unequal World. Geneva

Sites consultados a 5 de Março de 2007:

A organização dos trabalhadores do sector informal dos mercados de Maputo e sua acção na promoção de melhores condições de vida e de trabalho – O papel da ASSOTSI de Vletter, Fion (prepared by) (2006), Microfinance in Mozambique – Achievements, Prospects and Challenges. A report of the Mozambique Microfinance Facility
Francisco, António e Paulo, Margarida (2006), Impacto da Economia Informal na Protecção Social, Pobreza e Exclusão: A Dimensão Oculta da Informalidade em Moçambique. Cruzeiro do Sul, Instituto de Investigação para o Desenvolvimento José Negrão, Maputo www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/assotsi.pdf
Yunus, Muhammad (1997) O Banqueiro do Povo. Difel



NOTAS

1 A maior parte das mulheres que recorrem às instituições de micro-crédito na cidade de Maputo são vendedoras de produtos no mercado informal.
2 Informação retirada do site http://www.grameen-info.org/bank/index.html, consultado a 3 de Fevereiro de 2006.
3 Informação retirada do site http://www.grameen-info.org/bank/WhatisMicrocredit.htm, consultado a 3 de Fevereiro de 2006.
4 Palavra Tsonga que significa poupança. De acordo com Teresa Cruz e Silva, uma das formas mais comuns para a realização de poupanças nos mercados informais. Baseado em formas muito simples, o processo inicia-se normalmente a partir de um grupo de amigos que se juntam, fixam o montante da contribuição de cada membro e a periodicidade dos encontros para prestação de contas e distribuição rotativa da poupança, por cada um deles. A forma de pagamento não tem que ser necessariamente monetária, havendo casos em que essa contribuição se traduz em bens materiais. Os fundos circulam entre os seus membros e a sua colecta e distribuição funcionam, regra geral, na base da confiança e empatia, ao mesmo tempo que obriga cada membro do grupo a fazer a poupança de um montante predeterminado e dentro da periodicidade previamente definida para o pagamento da sua quota. A distribuição da poupança entre os membros do grupo é feita periódica e rotativamente.
5 Assim chamados os trabalhadores moçambicanos que voltaram da Alemanha.
6 Pano colorido com que as mulheres, tradicionalmente, cobrem o corpo.
7 O êxodo rural e a fixação das pessoas nas áreas urbanas não foi acompanhado por um ordenamento adequado.
8 Informação recolhida no site do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique, http://www.ine.gov.mz/.
9 A principal actividade das mulheres em África sempre foi a agricultura. Antes de se tornarem visíveis, estas estavam na agricultura familiar. Familiar e não de sobrevivência pois os camponeses sempre participaram no mercado, trocando ou vendendo os seus produtos.