ISSN 1982-9108 Revista  Zona de Impacto. ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro


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GARFIELD, Seth. Aluta indígena no coração do Brasil. Política indigenista, a marcha para o oeste e os índios xavante (1937-1988). Tradução de Claudia Sant’Ana Martins, UNESP, 2001, 392 p.). [Apresentação Prof. John Manoel Monteiro].

 



Francisca Navantino P. de Angelo
Doutoranda em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.

 



           Seth Garfield é professor-associado do Departamento de História da Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos.
            O livro traz à luz a luta do povo xavante frente ao processo de ocupação do seu território no estado de Mato Grosso e às políticas indigenistas adotadas como forma de negar os seus direitos territoriais, “(...) a partir do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), criou um projeto político e um discurso cultural para dominar os grupos indígenas e seus territórios.” (p. 12).
            A história relatada se passa num período em que o estado de Mato Grosso, localizado na região Centro Oeste, se encontrava isolado dos “progressos” centrais do país, ficando meramente à mercê das oligarquias locais.
            A leitura nos chama atenção pelas revelações sobre a contradição do poder estatal e das suas ações, às vezes em defesa dos povos indígenas e muitas vezes contra esses povos e sua cultura.
            O livro foi dividido em oito capítulos demonstrando que o autor procurou registrar também uma pesquisa etnográfica do povo xavante, sua tradição e até alguns rituais, já sob a pressão de missionários e funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) com o resultado de crescentes mudanças sociais e culturais.
            Um dos focos “é o envolvimento xavante nas estruturas socioeconômicas e nos mecanismos culturais que buscavam redefinir sua economia e identidade política. A história dos xavante pós-contato – assombrada por morte, exílio, perda territorial e violência cultural –não é exceção à maioria das experiências pós-conquista dos nativos americanos.” (p. 22). Todo esse processo numa época em que o estado de Mato Grosso era considerado o sertão selvagem, com baixa população urbana, visto pelos intelectuais brasileiros como o “eldorado” a ser explorado e conquistado a qualquer custo. No início da década de 1940, o povo xavante lutava para dar visibilidade a sua identidade e à legitimidade da sua luta por território.
            O livro nos mostra a trajetória dessa luta, com um estado centralizador e com um governo que implantou o chamado “desenvolvimento econômico” planejando ações de pacificações do povo xavante, seu confinamento em reservas, uma vez submetido à ordem e ao comportamento exigido para se tornar um povo de cidadãos brasileiros, cristãos e fiéis à pátria brasileira.
            Os xavante citados neste trabalho são da região denominada Xavantina, de Pimentel Barbosa, da região de Couto Magalhães, do Batovi, que ocuparam a região de Paranatinga, e de Parabubure. 
            Outro processo marcante foi a implantação do projeto Marcha para o Oeste – Expedição Roncador-Xingu, lançado em l943 pelo Governo Getúlio Vargas que resultou na criação do Parque Nacional do Xingu, transferindo povos indígenas dos seus territórios tradicionais. A população de muitas etnias diminuiu em virtude das epidemias que assolaram as comunidades indígenas.
            Toda essa operação foi comandada pelo Coronel Flaviano de Mattos Vanique, e por Antonio Basílio (Capitão da FAB-Força Aérea Brasileira). Trata-se de uma expedição que “planejava percorrer 1.800 quilômetros a partir da fronteira noroeste de Goiás-Mato Grosso até Santarém (PA). Nesse percurso previa-se um acampamento às margens do Rio das Mortes e uma incursão pela Serra do Roncador, região habitada por índios xavante”.
            No tocante a atuação do SPI, o autor revela o espírito que predominava na instituição frente a situação dos povos indígenas, ora centrado na defesa dos direitos territoriais, ora determinado pelo governo central.
            É neste contexto que o texto sobre a pacificação do sertão de Mato Grosso nos revela como o SPI, por meio do lema do órgão que era “morrer, se necessário for; matar, nunca”, atuava conforme os mesmos procedimentos usados para a “atração” do povo xavante como a de qualquer outro povo nativo.
            A forma de “conquista atrativa”, usando a armadilha dos “presentinhos”, não se diferenciava da dos tempos coloniais, com espelhos e “bugigangas” oferecidas aos indígenas. Desta forma, o autor nos mostra que as formas acompanham os tempos, mudando apenas os produtos, mas a metodologia é a mesmo dos tempos de Cabral.
            Uma das evidências retratadas no texto é a violência interétnica e os conflitos entre os indígenas e os invasores. Os primeiros eram reprimidos principalmente no que concerne às disputas nas ocupações territoriais e com o apoio do governo para o estabelecimento de propósitos de retirar os índios de suas terras indígenas.
            Essa luta travada pelos indígenas no coração do Centro Oeste sempre foi negada por historiadores mato-grossenses. A imagem que sempre foi repassada à população de uma maneira geral foi a de que os índios são agressivos, selvagens e praticam atrocidades contra os não índios, sem todavia mostrar outro lado da história, as consequências nefastas do contato.
            O autor procurou mostrar os xavante depois do contato com os não índios, destacando o papel das lideranças nesse processo. As divergências ocasionadas pelas disputas políticas que resultavam em mortes, chacinas e até expulsões dos territórios tradicionais são destacadas, mostrando a tensão vivenciada por ambas as partes.
            Outro ponto fundamental retratado pelo autor é a política de “politicagem” praticada por funcionários “indigenistas” com os indígenas, gerando situações de clientelismo e assistencialismo que levavam a privilégios e direcionavam comportamentos de individualismo e egoísmo. Os valores e princípios indígenas eram discriminados, assim como a própria cultura indígena.  
            A ideologia do desenvolvimento da Amazônia tinha como fundo, a “segurança nacional” com fins de ocupação das terras indígenas e “visava promover a industrialização, a modernização agrícola e a expansão da infraestrutura” com a suposta finalidade de sanar o desequilíbrio regional (p.211).  
            Neste aspecto o autor nos revela as intenções do Estado brasileiro de “desenvolver as regiões” e promover a integração nacional. “A ideologia da segurança nacional baseava a defesa do Brasil na industrialização, na utilização eficaz dos recursos naturais e na “integração nacional”, por meio de extensas redes de transporte e comunicação”. (p. 211).
            “Os limites da Amazônia Legal, concebidos segundo critérios sociopolíticos, expandiram a jurisdição federal sobre o Centro-Oeste: enquanto a definição “clássica” ou geográfica da Amazônia, empregada historicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, compreendia Amapá, Acre, Roraima, Pará, Amazonas e Rondônia, a Amazônia Legal ampliava sua área em mais um terço, incluindo as regiões norte de Mato Grosso e Goiás, além do oeste do Maranhão” (Mahar, 1979 apud Garfield, 2001, p.213).
            O autor mostra que a política indigenista sempre esteve vinculada a projetos de governo com a finalidade de transformar os povos indígenas em “pessoas civilizadas”, cidadãos, expulsando-os dos seus territórios para expandir a ocupação e o povoamento das regiões, e a dominação e controle dos povos que ficaram na rota deste projeto desenvolvimentista. Estes povos têm sido deixados à mercê de acordos e políticas que os colocam na dependência de ações assistencialistas tanto por parte do SPI, quanto por políticos locais.
            Pode-se verificar que o autor procura dar destaque ao protagonismo indígena na luta pelos seus direitos mesmo diante de ameaças e apesar da submissão ao controle do Estado, tanto do SPI, quanto da FUNAI.
            No deslumbre do processo histórico, o autor nos coloca como o surgimento de municípios como Barra do Garças, Nova Xavantina e Canarana foram criadas a partir da ocupação de terras e da exploração dos recursos naturais, do desmatamento do cerrado para dar lugar a pastagens de gado e aos migrantes vindos do sul do Brasil. A consolidação da Marcha para o Oeste possibilitou esses processos de ocupação.
            “Herminio Ometto, industrial paulista e primeiro presidente da AEA [Associação dos Empresários da Amazônia], foi um “pioneiro” na Amazônia: fundou a fazenda Suiá-Missu, de seiscentos mil hectares, nas terras xavante de Marãiwatsede em l961, três anos antes do golpe militar.” (p. 225).
            Atualmente, essa terra indígena é alvo de várias batalhas jurídicas e conflitos com posseiros, invasores e aventureiros que adentraram nesse território com o apoio dos políticos locais e regionais de Mato Grosso. Lembramos que do ponto de vista legal, a justiça deu ganho de causa ao povo xavante, ordenando a retirada imediata dos invasores até o dia 06 de dezembro de 2012.
            Garfield nos revela as tentativas de transferência do povo xavante, inclusive para Minas Gerais por parte dos militares, e a resistência e revoltas que levaram à conquista dos direitos xavante no que concerne à permanência em seu território.
            Apesar das lutas travadas para que os xavante pudessem permanecer nos seus territórios, o relacionamento entre os indígenas e os “brancos” foi se agravando a medida que o governo, através de sua política desenvolvimentista, promovia a ocupação e a expansão para consolidar atividades agropecuárias, e na tentativa de transformar os xavante em “agricultores”, tentando fazer com que passassem a ocupar pequenos lotes de terras.
            Outra contribuição registro do trabalho de Garfield diz respeito à análise do processo educativo escolar entre os xavante. A presença dos missionários evangélicos e católicos (salesianos) veio atender à política de civilização e de “integração à comunhão nacional”. O governo facilitou a entrada nas terras indígenas do SIL (Summer Institute of Linguistics), com a finalidade de traduzir textos cristãos na língua indígena para a conversão religiosa.
            O trabalho de evangelização era acompanhado pelo monopólio dos atendimentos na área social e na saúde, e com isso muitas tradições e rituais foram sendo substituídos pelo modo de vida não indígena.
            Destaco o registro do autor sobre a questão da alimentação que foi substituída pelos produtos industrializados com graves consequências para a saúde do povo xavante.
            O livro permite um aprofundamento na história do Mato Grosso e conhecer como as oligarquias locais promoveram a corrupção, os privilégios e, principalmente, como o desenvolvimento nunca foi igual para todos os cidadãos.
            Garfield esclarece os meandros das relações interétnicas, dos conflitos entre indígenas e não indígenas, e que nos permite entender como estes processos contribuíram para o delineamento do modo de ser do povo xavante, que experimentou fases diferenciadas da história do contato. Trata-se de uma leitura fascinante que nos ajuda a compreender melhor a história de um povo, e, sobretudo, dos verdadeiros habitantes das terras mato-grossenses.