Seth Garfield é professor-associado do Departamento de História da
Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos.
O
livro traz à luz a luta do povo xavante frente ao processo de ocupação
do seu território no estado de Mato Grosso e às políticas indigenistas
adotadas como forma de negar os seus direitos territoriais, “(...) a
partir do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), criou um projeto
político e um discurso cultural para dominar os grupos indígenas e seus
territórios.” (p. 12).
A
história relatada se passa num período em que o estado de Mato Grosso,
localizado na região Centro Oeste, se encontrava isolado dos
“progressos” centrais do país, ficando meramente à mercê das
oligarquias locais.
A
leitura nos chama atenção pelas revelações sobre a contradição do poder
estatal e das suas ações, às vezes em defesa dos povos indígenas e
muitas vezes contra esses povos e sua cultura.
O
livro foi dividido em oito capítulos demonstrando que o autor procurou
registrar também uma pesquisa etnográfica do povo xavante, sua tradição
e até alguns rituais, já sob a pressão de missionários e funcionários
do SPI (Serviço de Proteção ao Índio) com o resultado de crescentes
mudanças sociais e culturais.
Um
dos focos “é o envolvimento xavante nas estruturas socioeconômicas e
nos mecanismos culturais que buscavam redefinir sua economia e
identidade política. A história dos xavante pós-contato – assombrada
por morte, exílio, perda territorial e violência cultural –não é
exceção à maioria das experiências pós-conquista dos nativos
americanos.” (p. 22). Todo esse processo numa época em que o estado de
Mato Grosso era considerado o sertão selvagem, com baixa população
urbana, visto pelos intelectuais brasileiros como o “eldorado” a ser
explorado e conquistado a qualquer custo. No início da década de 1940,
o povo xavante lutava para dar visibilidade a sua identidade e à
legitimidade da sua luta por território.
O
livro nos mostra a trajetória dessa luta, com um estado centralizador e
com um governo que implantou o chamado “desenvolvimento econômico”
planejando ações de pacificações do povo xavante, seu confinamento em
reservas, uma vez submetido à ordem e ao comportamento exigido para se
tornar um povo de cidadãos brasileiros, cristãos e fiéis à pátria
brasileira.
Os
xavante citados neste trabalho são da região denominada Xavantina, de
Pimentel Barbosa, da região de Couto Magalhães, do Batovi, que ocuparam
a região de Paranatinga, e de Parabubure.
Outro processo marcante foi a implantação do projeto Marcha para o
Oeste – Expedição Roncador-Xingu, lançado em l943 pelo Governo Getúlio
Vargas que resultou na criação do Parque Nacional do Xingu,
transferindo povos indígenas dos seus territórios tradicionais. A
população de muitas etnias diminuiu em virtude das epidemias que
assolaram as comunidades indígenas.
Toda
essa operação foi comandada pelo Coronel Flaviano de Mattos Vanique, e
por Antonio Basílio (Capitão da FAB-Força Aérea Brasileira). Trata-se
de uma expedição que “planejava percorrer 1.800 quilômetros a partir da
fronteira noroeste de Goiás-Mato Grosso até Santarém (PA). Nesse
percurso previa-se um acampamento às margens do Rio das Mortes e uma
incursão pela Serra do Roncador, região habitada por índios xavante”.
No
tocante a atuação do SPI, o autor revela o espírito que predominava na
instituição frente a situação dos povos indígenas, ora centrado na
defesa dos direitos territoriais, ora determinado pelo governo central.
É
neste contexto que o texto sobre a pacificação do sertão de Mato Grosso
nos revela como o SPI, por meio do lema do órgão que era “morrer, se
necessário for; matar, nunca”, atuava conforme os mesmos procedimentos
usados para a “atração” do povo xavante como a de qualquer outro povo
nativo.
A
forma de “conquista atrativa”, usando a armadilha dos “presentinhos”,
não se diferenciava da dos tempos coloniais, com espelhos e
“bugigangas” oferecidas aos indígenas. Desta forma, o autor nos mostra
que as formas acompanham os tempos, mudando apenas os produtos, mas a
metodologia é a mesmo dos tempos de Cabral.
Uma
das evidências retratadas no texto é a violência interétnica e os
conflitos entre os indígenas e os invasores. Os primeiros eram
reprimidos principalmente no que concerne às disputas nas ocupações
territoriais e com o apoio do governo para o estabelecimento de
propósitos de retirar os índios de suas terras indígenas.
Essa
luta travada pelos indígenas no coração do Centro Oeste sempre foi
negada por historiadores mato-grossenses. A imagem que sempre foi
repassada à população de uma maneira geral foi a de que os índios são
agressivos, selvagens e praticam atrocidades contra os não índios, sem
todavia mostrar outro lado da história, as consequências nefastas do
contato.
O
autor procurou mostrar os xavante depois do contato com os não índios,
destacando o papel das lideranças nesse processo. As divergências
ocasionadas pelas disputas políticas que resultavam em mortes, chacinas
e até expulsões dos territórios tradicionais são destacadas, mostrando
a tensão vivenciada por ambas as partes.
Outro ponto fundamental retratado pelo autor é a política de
“politicagem” praticada por funcionários “indigenistas” com os
indígenas, gerando situações de clientelismo e assistencialismo que
levavam a privilégios e direcionavam comportamentos de individualismo e
egoísmo. Os valores e princípios indígenas eram discriminados, assim
como a própria cultura indígena.
A
ideologia do desenvolvimento da Amazônia tinha como fundo, a “segurança
nacional” com fins de ocupação das terras indígenas e “visava promover
a industrialização, a modernização agrícola e a expansão da
infraestrutura” com a suposta finalidade de sanar o desequilíbrio
regional (p.211).
Neste aspecto o autor nos revela as intenções do Estado brasileiro de
“desenvolver as regiões” e promover a integração nacional. “A ideologia
da segurança nacional baseava a defesa do Brasil na industrialização,
na utilização eficaz dos recursos naturais e na “integração nacional”,
por meio de extensas redes de transporte e comunicação”. (p. 211).
“Os
limites da Amazônia Legal, concebidos segundo critérios sociopolíticos,
expandiram a jurisdição federal sobre o Centro-Oeste: enquanto a
definição “clássica” ou geográfica da Amazônia, empregada
historicamente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
compreendia Amapá, Acre, Roraima, Pará, Amazonas e Rondônia, a Amazônia
Legal ampliava sua área em mais um terço, incluindo as regiões norte de
Mato Grosso e Goiás, além do oeste do Maranhão” (Mahar, 1979 apud Garfield, 2001, p.213).
O
autor mostra que a política indigenista sempre esteve vinculada a
projetos de governo com a finalidade de transformar os povos indígenas
em “pessoas civilizadas”, cidadãos, expulsando-os dos seus territórios
para expandir a ocupação e o povoamento das regiões, e a dominação e
controle dos povos que ficaram na rota deste projeto
desenvolvimentista. Estes povos têm sido deixados à mercê de acordos e
políticas que os colocam na dependência de ações assistencialistas
tanto por parte do SPI, quanto por políticos locais.
Pode-se verificar que o autor procura dar destaque ao protagonismo
indígena na luta pelos seus direitos mesmo diante de ameaças e apesar
da submissão ao controle do Estado, tanto do SPI, quanto da FUNAI.
No
deslumbre do processo histórico, o autor nos coloca como o surgimento
de municípios como Barra do Garças, Nova Xavantina e Canarana foram
criadas a partir da ocupação de terras e da exploração dos recursos
naturais, do desmatamento do cerrado para dar lugar a pastagens de gado
e aos migrantes vindos do sul do Brasil. A consolidação da Marcha para
o Oeste possibilitou esses processos de ocupação.
“Herminio Ometto, industrial paulista e primeiro presidente da AEA
[Associação dos Empresários da Amazônia], foi um “pioneiro” na
Amazônia: fundou a fazenda Suiá-Missu, de seiscentos mil hectares, nas
terras xavante de Marãiwatsede em l961, três anos antes do golpe
militar.” (p. 225).
Atualmente, essa terra indígena é alvo de várias batalhas jurídicas e
conflitos com posseiros, invasores e aventureiros que adentraram nesse
território com o apoio dos políticos locais e regionais de Mato Grosso.
Lembramos que do ponto de vista legal, a justiça deu ganho de causa ao
povo xavante, ordenando a retirada imediata dos invasores até o dia 06
de dezembro de 2012.
Garfield nos revela as tentativas de transferência do povo xavante,
inclusive para Minas Gerais por parte dos militares, e a resistência e
revoltas que levaram à conquista dos direitos xavante no que concerne à
permanência em seu território.
Apesar das lutas travadas para que os xavante pudessem permanecer nos
seus territórios, o relacionamento entre os indígenas e os “brancos”
foi se agravando a medida que o governo, através de sua política
desenvolvimentista, promovia a ocupação e a expansão para consolidar
atividades agropecuárias, e na tentativa de transformar os xavante em
“agricultores”, tentando fazer com que passassem a ocupar pequenos
lotes de terras.
Outra contribuição registro do trabalho de Garfield diz respeito à
análise do processo educativo escolar entre os xavante. A presença dos
missionários evangélicos e católicos (salesianos) veio atender à
política de civilização e de “integração à comunhão nacional”. O
governo facilitou a entrada nas terras indígenas do SIL (Summer
Institute of Linguistics), com a finalidade de traduzir textos cristãos
na língua indígena para a conversão religiosa.
O
trabalho de evangelização era acompanhado pelo monopólio dos
atendimentos na área social e na saúde, e com isso muitas tradições e
rituais foram sendo substituídos pelo modo de vida não indígena.
Destaco o registro do autor sobre a questão da alimentação que foi
substituída pelos produtos industrializados com graves consequências
para a saúde do povo xavante.
O
livro permite um aprofundamento na história do Mato Grosso e conhecer
como as oligarquias locais promoveram a corrupção, os privilégios e,
principalmente, como o desenvolvimento nunca foi igual para todos os cidadãos.
Garfield esclarece os meandros das relações interétnicas, dos conflitos
entre indígenas e não indígenas, e que nos permite entender como estes
processos contribuíram para o delineamento do modo de ser do povo
xavante, que experimentou fases diferenciadas da história do contato.
Trata-se de uma leitura fascinante que nos ajuda a compreender melhor a
história de um povo, e, sobretudo, dos verdadeiros habitantes das
terras mato-grossenses.