ISSN 1982-9108 Revista  Zona de Impacto. ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro



CASTELO, Claúdia; THOMAZ, Omar Ribeiro; NASCIMENTO, Sebastião (Orgs). 2012. Os outros da colonização: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. 361 pp.

 


Luciano Cardenes Santos
Doutorando em Antropologia Social - IFCH – UNICAMP

 



                       Presente em todo o pensamento ocidental, o colonialismo atua enquanto um discurso manejado no campo político, sociológico, militar, ideológico, científico e imaginativo (SAID, 1978). Aplica-se sempre que ameaçada a sua sobrevivência, forjando representações culturais através de forças desiguais e irregulares, expressas na competição pela autoridade política e social do mundo moderno daqueles que estão no propósito das classificações ocidente/oriente, civilizado/primitivo – colonizador: português da metrópole, branco do mato – colonizados: africanos, indígenas, árabo-mulçumanos, sino-moçambicanos, sino-asiáticos, sino-africanos, coolies, chineses, indianos.
            Ao tomar essas classificações como matéria-prima, o pós-colonialismo tem como elemento fundamental o discurso das minorias, transformando-as em sujeitos operadores da cultura e da mudança para desnaturalizar o racismo, a pobreza e os processos de dominação entre nações.
            A crítica pós-colonial formula revisões em torno das diferenças culturais, da autoridade social e da discriminação política, muitas vezes reveladas no interior do pensamento moderno a partir da desconstrução de estruturas binárias e essencializantes: gênero, raça, etnia, nacionalismo. (BAHBHA, 1994)
            Em sintonia com as reflexões de manifestos pós-colonialistas, o livro Os Outros da colonização: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moçambique merece nossa atenção por administrar perfis intelectuais, políticos e um material etnográfico histórico-ocular, instigando-nos ao desafio de ver nos espaços intersticiais a produção, ocultamento e extermínio de alteridades.
            O livro reúne perfis e trajetórias de (África Moçambicana) e além mar (Portugal, Brasil, Estados Unidos). Pensamentos que se incomodam com a memória do coloniasmo do ultramar e do ultramundo, seduzindo-nos à experimentação da viagem pelo mundo moçambicano, sobretudo como forma de conhecermos a nós mesmos – cobaias de projetos similares como o lusotropicalismo de Gilberto Freyre (1940, 1958).
            Partindo da leitura desse mundo, o livro reúne uma sensível e criteriosa antropologia para a leitura de processos recentes de um tardo colonialismo, colocando-nos diante de testemunhos orais, documentos oficiais e memórias organizadas por olhares sociológicos atentos aos conflitos e a história de movimentos sociais daquele pedaço da África austral.
            Na constelação de pesquisadores, o brilho precioso é realçado pelos artigos de intelectuais, alguns militantes políticos de destaque e que testemunharam o interior e os desdobramentos da história mundial em Moçambique. É o que podemos conferir nos textos de Amélia Neves Souto, Eduardo Medeiros, Isabel Casimiro, João Paulo Borges Coelho, José Luís Cabaço, Teresa Cruz e Silva, pesquisadores da Universidade Eduardo Mondlane, atores de círculos de fruição intelectual e agentes políticos nos movimentos sociais de libertação em contextos pretéritos e posteriores a independência em 1975.
            Os artigos estão organizados a partir da ideia de colonialismo tardio - tardo colonialismo – caracterizado por um conjunto de estratégias mais lentas, fora do tempo e que tem por objetivo a manutenção da geopolítica e do status do império lusitano, cuja resposta aos seus críticos e opositores culminou na transformação das antigas colônias em províncias ultramarinas no ano de 1951.
            Ao enfrentar movimentos sociais e grupos nacionalistas, o Estado novo de Salazar e Marcelo Caetano adotou a estratégia de intervenções tipificadas como sociais, anunciando projetos desenvolvimentistas para as áreas científicas e tecnológicas, aliando-se a uma postura anti-racista para construção de uma África portuguesa, pluricontinental e multirracial – uma perspectiva aplicada de 1950 até a revolução dos cravos (1974) e a independência de Moçambique (1975), uma prática colonial tardia na primeira metade do século XX.
            Partindo desse contexto histórico, o livro está estruturado em quatro partes: Estado, sociedade e produção de alteridades (Parte I), Paradoxos e limites do assimilacionismo em Moçambique (Parte II), Representações (Parte IV) e; A guerra (Parte IV).
            Ao abordar as representações, em termos metodológicos, Penvenne (Capítulo 8) nos faz lembrar que as imagens também se comunicam e que nelas, podemos ler a história e perceber as transformações sociais das representações ridicularizadas, sexualizantes e exóticas, operadas em Lourenço Marques (atual Maputo) e que tentavam se expressar através de fotografias assimilacionistas e de expressão do sucesso da empresa física colonial do sólido domínio português.
            Se para o Estado novo a fotografia teve o seu papel, a imprensa moçambicana também teve suas atribuições para a empresa colonial. Há aqui a revelação de um caráter duplo e que reflete os interesses do Estado ou a ele associados. Por um lado, disseminam-se um agrupamento de ideias que se tornam hegemônicas e passam a constituir-se enquanto ideologia, por outro lado, refletem-se interesses divergentes, podendo coincidir em alguns aspectos com os do Estado, mas dando origem à produção de ideias de ruptura que podem integrar utopias, aspecto explorado por Mendonça (Capítulo 9).
            No escopo desse tardo colonialismo são notáveis as ações que se estendem à produção literária dos processos de escolarização, desde o nível de letramento até a educação superior. Como resposta à crise interna em que o país vivia após a I Guerra Mundial, a adoção de estratégias que correspondessem culturalmente ao esforço de justificação que a empresa colonial se via na contingencia de apresentar para assegurar sua permanência nas terras obtidas revelavam-se uteis. Assim, o espólio da invasão colonial é romanceado e transformado em direito inalienável por meio da literatura, ou seja, a prática literária passa a ser vista como um excelente meio para disseminar um conjunto de ideias funcionais a dominação.
            É neste espírito que se criou o Concurso de Literatura Ultramarina, uma reocupação do território, não apenas físico, mas artístico, filosófico e desportivo, conforme nos mostra Chaves (Capítulo 10) e Domingos (Capítulo 11) ao analisar o futebol e a cidadania informal, a mobilidade e a vida pública. Pina-Cabral (Capítulo 12), por sua vez observará na arquitetura um elemento marcante para perceber essa disputa colonial através da arte e religião.
            As reações a essas representações criadas pelo Estado Novo serão o combustível para os conflitos da década de 1960-1970. No período de guerra (Parte IV), a estratégia colonial instituiu a africanização dos conflitos, criando a aparência de que as hostilidades sociais eram oriundas de moçambicanos contra moçambicanos e retirando as responsabilidades do Estado português, justificando as redes de articulação com a população local e que favoreceram o sucesso do colonialismo (Ribeiro, Capítulo 13 e Coelho, Capítulo 14).
            Sem dúvida uma relevante contribuição do livro está nas referências às alteridades de diversos grupos e coletivos sociais (Parte I) objeto das políticas assimilacionistas do Estado novo português (Parte II), com argumentação conceitual no lusotropicalismo - um processo de miscigenação conduzido pelo português como significante dos significados de outras alteridades.  Assim, a vocação multirracial e poligâmica nos trópicos será pensada como uma apropriação da poligamia muçulmana – onde o português, por sua ascendência islâmica, será o agente intercultural da poligamia (Macagno, Capítulo 2).  
            É nessa inspiração assimilacionista que serão feitos os projetos de povoamento agrícola com a população excedente e pobre da metrópole portuguesa (Castelo, Capítulo 1). A mesma orientação se estenderá a prática pedagógica do letramento da população Tsonga (Cruz e Silva, Capítulo 4), à formação universitária (Souto, Capítulo 6) e ao trabalho como tutela do Estado para a assimilação humanista do negro (Cabaço, Capítulo 7). É também diante dessas ações coloniais que o movimento estudantil utilizará o associativismo para forjar o seu nacionalismo e, mais tarde, a Frente de Libertação de Moçambique (Casimiro, Capítulo 5).
            Por fim, na medida em que o livro expõe a produção, o ocultamento e extermínio das alteridades, coloca-nos a pensar acerca das reverberações dessas classificações coloniais no âmbito do discurso anti-colonial e pós-colonial. Afinal, que alteridades permaneceram ocultas na virada do século XXI, quando as aporias colonizador/colonizado perderam seu valor heurístico, se é que um dia o possuíram. 

 

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2005. FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou, Rio de Janeiro, José Olympio, 1940.

______. Integração portuguesa nos trópicos. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1958.

SAID, Edward.  Orientalismo - o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. Coleção Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007