Dois padres: um mulato; outro, índio. Através da trajetória
desses dois
personagens, Adriano Toledo Paiva conduz o leitor aos sertões do Rio da
Pomba e aos meandros da sociedade mineira entre a segunda metade do
século XVIII e os primeiros anos do século seguinte. Esses sertões
constituíram, durante parte dos setecentos, uma barreira natural à
expansão colonial, mas, igualmente, um empecilho aos descaminhos do
ouro. Neles vivia um grande contingente de índios – Coropós, Coroados e
Puris – e existiam muitos quilombos. Na segunda metade do século XVIII,
momento em que a exploração aurífera declina, essa região de fronteira,
até então considerada território indígena, será incorporada aos
domínios coloniais e, para tanto, nela seria erigida uma paróquia, a
Freguesia do Mártir São Miguel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos
índios Cropós e Croatos, unidade administrativa composta por um
aldeamento régio e mais as pequenas aldeias adjacentes. A Freguesia do
Rio da Pomba, de grande extensão territorial, abarcaria a porção sul e
central da atual Zona da Mata mineira.
Manoel de Jesus Maria, o padre mulato, filho de Maria Angola e seu
senhor, João Antunes, comanda a Freguesia do Rio da Pomba de 1767,
época da sua criação, até o seu falecimento, em 1811. Antes, no
entanto, percorre um longo caminho, pois o mulatismo, a ilegitimidade
de nascimento e o ser alforriado constituíram três empecilhos que
dificultaram e retardaram seu ingresso na vida sacerdotal. Assim, foi
preciso esperar por 10 anos, até que, finalmente, conseguiu do papado a
dispensa dos “seus defeitos”. Pouco tempo depois da sua ordenação,
seria criada a referida freguesia, da qual ele se tornou o primeiro
vigário.
Pedro da Motta, índio coroado, inicialmente é um administrado do
Guarda-mor Manoel da Motta Andrade, uma das grandes fortunas das Minas
Gerais no século XVIII. O militar custeia seus estudos, realizados na
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, região vizinha
ao que depois se tornaria a Freguesia do Rio da Pomba. O índio Pedro
aprende a ler e a escrever, em português e em latim e, mais tarde, após
sua ordenação, retorna aos sertões do seu nascimento para catequizar os
índios de sua nação. Entre 1780 e 1784, na condição de sacerdote
coadjutor do Padre Manoel de Jesus Maria, atua na catequese e
colonização dos índios do Rio Xopotó, porção da freguesia do Rio da
Pomba. Em 1785, morre precocemente, provavelmente em virtude de doenças
contraídas nesse mesmo sertão onde havia nascido.
Sobre
o padre coroado, informa Adriano Toledo Paiva,
propagou-se, desde
o final do século XVIII, “o argumento de que o clérigo (...) teria
abandonado a batina e retornado às vivências gentílicas com os que
deveria catequizar e civilizar” (p. 92). Entre os que trataram do
assunto, Paiva cita Spix e Martius, observadores da ingratidão do
indígena que, apesar de ser tratado com desvelo pelos colonizadores,
fugiu para as matas, retomando seu estado anterior: “Um índio da tribo
dos Coroados foi criado pelos brancos, tornando-se, tão instruído, que
recebeu ordens, e, como Padre, disse missa; mas de improviso, abandonou
o estado clerical, despojou-se da batina e fugiu nu para o mato,
volvendo ao seu primeiro modo de vida nômade” (Spix e Martius, apud
p. 93). Paiva dedica algumas páginas do livro a desconstrução desse
argumento, que corrobora a incapacidade dos nativos de viverem no
“mundo civilizado” dos colonizadores, apoiando-se, entre outros
documentos, na análise do testamento do padre índio.
As
trajetórias dos padres Manoel de Jesus Maria e Pedro da Motta estão
contempladas, respectivamente, nos dois primeiros dos quatro capítulos
do livro. No terceiro capítulo, o autor trata das transformações
ocorridas no espaço e nas comunidades indígenas a partir da instalação
de uma paróquia nos sertões do Rio da Pomba. No quarto e último
capítulo, Paiva ocupa-se da militarização dessa fronteira e das guerras
entre índios e não índios, “intensificadas pelas alterações da política
indigenista oitocentista” (p. 33).
O
livro, originalmente uma dissertação de mestrado, é resultado de uma
pesquisa de fôlego, da qual fez parte o cotejamento de uma variada e
esparsa documentação (paroquial, cartorária, correspondências,
legislação, recenseamentos etc.) depositada no Museu Histórico de Rio
Pomba, no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos da
Arquidiocese de Mariana e da Paróquia de São Manoel de Rio Pomba e em
outras instituições.
A dissertação, intitulada “O Domínio dos Índios”: Catequese e
conquista nos sertões de Rio Pomba (1767-1813),
elaborada sob a orientação da Professora Adalgisa Arantes Campos, foi
apresentada, em janeiro de 2009, ao Programa de Pós-Graduação da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais) e aprovada, conforme parecer da
banca examinadora, “com distinção e louvor”, “em razão da qualidade
excepcional do trabalho”.
Adriano Toledo Paiva é autor de diversos artigos publicados em
revistas, jornais e anais de congressos e do livro História
indígena na sala de aula,
publicado, em 2012, pela Fino Traço. Em 2013, concluiu na UFMG, sob a
orientação da Professora Adriano Romeiro, o doutorado em História, após
a defesa e aprovação da tese intitulada “Aranzéis da tradição”:
conquistadores nos sertões do ouro (1760-1800).
No
livro aqui em pauta, Os indígenas e os processos de conquista dos
sertões das Minas Gerais,
Paiva analisa os processos coloniais de conquista e governo dos sertões
do Rio da Pomba entre os anos de 1767 e 1813, um tema pouco estudado
pela historiografia. Distingue o trabalho do autor, além da extensa
pesquisa documental, o trazer à tona uma outra história das Minas
Gerais, focada em uma região secundária, e a tentativa bem sucedida de
dar visibilidade às populações nativas, priorizando o protagonismo
indígena na história do Brasil colonial e ultrapassando o marco da
vitimização dessas populações. Encontramos, então, índios que aderem à
colonização europeia, aceitam viver em aldeamentos e, a partir do
convívio com os não índios, reestruturam aspectos da sua cultura.
A
capa do livro traz o rosto de um mulato. A imagem é curiosa e causa um
certo estranhamento, porque na obra não há maiores esclarecimentos
sobre a mesma, exceto os créditos de praxe que sugerem ter sido a mesma
desenhada especialmente para a composição da capa do livro, pelo designer
Paulo
André Ferreira de Souza. Quem seria o mulato retratado nessa imagem?
Seria uma representação do padre Manoel de Jesus Maria? Não sendo uma
representação do padre mulato, que relação existe entre essa imagem, os
indígenas dos sertões do Rio da Pomba e os processos de colonização dos
sertões das Minas Gerais, objeto de estudo de Adriano Toledo Paiva?
Alguns leitores poderão ficar insatisfeitos com a ausência de
explicações para essa imagem e, ainda, com o fato de muitas das
questões elencadas por Paiva permanecerem em aberto. Outros, talvez,
argumentem que algumas das afirmativas, conclusões, apresentadas pelo
autor não estão justificadas a contento. Essa crítica poderia ser
exemplificada por afirmativas como a que se lê à página 32, na qual o
autor afirma que o Padre Manoel de Jesus Maria “aderiu à carreira
eclesiástica como mecanismo de ascensão social na sociedade
setecentista”. Essa ideia é recorrente no livro, no qual Paiva informa
que o mulato Manoel ascendeu socialmente ao tornar-se padre. Contudo, é
possível que a argumentação apresentada pelo autor não seja capaz de
convencer a todos os leitores sobre ter sido um projeto do mulato
tornar-se pároco e oferecer-se para trabalhar nos sertões do Rio da
Pomba, catequizando índios, visando apenas ou principalmente a ascensão
social.
Ainda que essas imperfeições possam existir, elas não comprometem os
méritos do autor e do seu trabalho, haja vista, é importante repetir, a
riqueza da pesquisa documental e a tentativa bem sucedida de preencher
lacunas da historiografia, explorando assuntos ainda pouco estudados. O
livro, além de contribuir para o conhecimento da história dos índios no
Brasil, leva à reflexão e ao desejo de conhecermos mais sobre os
sertões mineiros, os seus habitantes, índios e não índios, e os
processos históricos que transformaram as terras dos Cataguases nas
Minas Gerais. Os aficionados pela história mineira terminarão a leitura
na expectativa de outras pesquisas capazes de seguir a importante
trilha percorrida pelo historiador Adriano Toledo Paiva no livro Os
indígenas e os processos de conquista dos sertões de Minas Gerais
(1767-1813).