ISSN 1982-9108 -  Zona de Impacto. ANO 16 Vol. 2 - 2014 - Julho/Dezembro



PAIVA, Adriano Toledo. Os indígenas e os processos de conquista dos sertões de Minas Gerais (1767-1813). Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. 1 mapa. 208 p. (História; 13) [Apresentação de Adalgisa Arantes Campos; Prefácio de Adriana Romeiro.]

 

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Marina M. de Freitas
Professora Assistente IV da PUC de Minas Gerais.

 



                Dois padres: um mulato; outro, índio. Através da trajetória desses dois personagens, Adriano Toledo Paiva conduz o leitor aos sertões do Rio da Pomba e aos meandros da sociedade mineira entre a segunda metade do século XVIII e os primeiros anos do século seguinte. Esses sertões constituíram, durante parte dos setecentos, uma barreira natural à expansão colonial, mas, igualmente, um empecilho aos descaminhos do ouro. Neles vivia um grande contingente de índios – Coropós, Coroados e Puris – e existiam muitos quilombos. Na segunda metade do século XVIII, momento em que a exploração aurífera declina, essa região de fronteira, até então considerada território indígena, será incorporada aos domínios coloniais e, para tanto, nela seria erigida uma paróquia, a Freguesia do Mártir São Miguel dos Sertões do Rio da Pomba e Peixe dos índios Cropós e Croatos, unidade administrativa composta por um aldeamento régio e mais as pequenas aldeias adjacentes. A Freguesia do Rio da Pomba, de grande extensão territorial, abarcaria a porção sul e central da atual Zona da Mata mineira.
            Manoel de Jesus Maria, o padre mulato, filho de Maria Angola e seu senhor, João Antunes, comanda a Freguesia do Rio da Pomba de 1767, época da sua criação, até o seu falecimento, em 1811. Antes, no entanto, percorre um longo caminho, pois o mulatismo, a ilegitimidade de nascimento e o ser alforriado constituíram três empecilhos que dificultaram e retardaram seu ingresso na vida sacerdotal. Assim, foi preciso esperar por 10 anos, até que, finalmente, conseguiu do papado a dispensa dos “seus defeitos”. Pouco tempo depois da sua ordenação, seria criada a referida freguesia, da qual ele se tornou o primeiro vigário.
            Pedro da Motta, índio coroado, inicialmente é um administrado do Guarda-mor Manoel da Motta Andrade, uma das grandes fortunas das Minas Gerais no século XVIII. O militar custeia seus estudos, realizados na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, região vizinha ao que depois se tornaria a Freguesia do Rio da Pomba. O índio Pedro aprende a ler e a escrever, em português e em latim e, mais tarde, após sua ordenação, retorna aos sertões do seu nascimento para catequizar os índios de sua nação. Entre 1780 e 1784, na condição de sacerdote coadjutor do Padre Manoel de Jesus Maria, atua na catequese e colonização dos índios do Rio Xopotó, porção da freguesia do Rio da Pomba. Em 1785, morre precocemente, provavelmente em virtude de doenças contraídas nesse mesmo sertão onde havia nascido.
           
Sobre o padre coroado, informa Adriano Toledo Paiva, propagou-se, desde o final do século XVIII, “o argumento de que o clérigo (...) teria abandonado a batina e retornado às vivências gentílicas com os que deveria catequizar e civilizar” (p. 92). Entre os que trataram do assunto, Paiva cita Spix e Martius, observadores da ingratidão do indígena que, apesar de ser tratado com desvelo pelos colonizadores, fugiu para as matas, retomando seu estado anterior: “Um índio da tribo dos Coroados foi criado pelos brancos, tornando-se, tão instruído, que recebeu ordens, e, como Padre, disse missa; mas de improviso, abandonou o estado clerical, despojou-se da batina e fugiu nu para o mato, volvendo ao seu primeiro modo de vida nômade” (Spix e Martius, apud p. 93). Paiva dedica algumas páginas do livro a desconstrução desse argumento, que corrobora a incapacidade dos nativos de viverem no “mundo civilizado” dos colonizadores, apoiando-se, entre outros documentos, na análise do testamento do padre índio.
            As trajetórias dos padres Manoel de Jesus Maria e Pedro da Motta estão contempladas, respectivamente, nos dois primeiros dos quatro capítulos do livro. No terceiro capítulo, o autor trata das transformações ocorridas no espaço e nas comunidades indígenas a partir da instalação de uma paróquia nos sertões do Rio da Pomba. No quarto e último capítulo, Paiva ocupa-se da militarização dessa fronteira e das guerras entre índios e não índios, “intensificadas pelas alterações da política indigenista oitocentista” (p. 33).
           
O livro, originalmente uma dissertação de mestrado, é resultado de uma pesquisa de fôlego, da qual fez parte o cotejamento de uma variada e esparsa documentação (paroquial, cartorária, correspondências, legislação, recenseamentos etc.) depositada no Museu Histórico de Rio Pomba, no Arquivo Público Mineiro, nos arquivos eclesiásticos da Arquidiocese de Mariana e da Paróquia de São Manoel de Rio Pomba e em outras instituições.
A dissertação, intitulada “O Domínio dos Índios”: Catequese e conquista nos sertões de Rio Pomba (1767-1813), elaborada sob a orientação da Professora Adalgisa Arantes Campos, foi apresentada, em janeiro de 2009, ao Programa de Pós-Graduação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e aprovada, conforme parecer da banca examinadora, “com distinção e louvor”, “em razão da qualidade excepcional do trabalho”.
            Adriano Toledo Paiva é autor de diversos artigos publicados em revistas, jornais e anais de congressos e do livro História indígena na sala de aula, publicado, em 2012, pela Fino Traço. Em 2013, concluiu na UFMG, sob a orientação da Professora Adriano Romeiro, o doutorado em História, após a defesa e aprovação da tese intitulada “Aranzéis da tradição”: conquistadores nos sertões do ouro (1760-1800).
            No livro aqui em pauta, Os indígenas e os processos de conquista dos sertões das Minas Gerais, Paiva analisa os processos coloniais de conquista e governo dos sertões do Rio da Pomba entre os anos de 1767 e 1813, um tema pouco estudado pela historiografia. Distingue o trabalho do autor, além da extensa pesquisa documental, o trazer à tona uma outra história das Minas Gerais, focada em uma região secundária, e a tentativa bem sucedida de dar visibilidade às populações nativas, priorizando o protagonismo indígena na história do Brasil colonial e ultrapassando o marco da vitimização dessas populações. Encontramos, então, índios que aderem à colonização europeia, aceitam viver em aldeamentos e, a partir do convívio com os não índios, reestruturam aspectos da sua cultura.
            A capa do livro traz o rosto de um mulato. A imagem é curiosa e causa um certo estranhamento, porque na obra não há maiores esclarecimentos sobre a mesma, exceto os créditos de praxe que sugerem ter sido a mesma desenhada especialmente para a composição da capa do livro, pelo designer Paulo André Ferreira de Souza. Quem seria o mulato retratado nessa imagem? Seria uma representação do padre Manoel de Jesus Maria? Não sendo uma representação do padre mulato, que relação existe entre essa imagem, os indígenas dos sertões do Rio da Pomba e os processos de colonização dos sertões das Minas Gerais, objeto de estudo de Adriano Toledo Paiva?
            Alguns leitores poderão ficar insatisfeitos com a ausência de explicações para essa imagem e, ainda, com o fato de muitas das questões elencadas por Paiva permanecerem em aberto. Outros, talvez, argumentem que algumas das afirmativas, conclusões, apresentadas pelo autor não estão justificadas a contento. Essa crítica poderia ser exemplificada por afirmativas como a que se lê à página 32, na qual o autor afirma que o Padre Manoel de Jesus Maria “aderiu à carreira eclesiástica como mecanismo de ascensão social na sociedade setecentista”. Essa ideia é recorrente no livro, no qual Paiva informa que o mulato Manoel ascendeu socialmente ao tornar-se padre. Contudo, é possível que a argumentação apresentada pelo autor não seja capaz de convencer a todos os leitores sobre ter sido um projeto do mulato tornar-se pároco e oferecer-se para trabalhar nos sertões do Rio da Pomba, catequizando índios, visando apenas ou principalmente a ascensão social.
            Ainda que essas imperfeições possam existir, elas não comprometem os méritos do autor e do seu trabalho, haja vista, é importante repetir, a riqueza da pesquisa documental e a tentativa bem sucedida de preencher lacunas da historiografia, explorando assuntos ainda pouco estudados. O livro, além de contribuir para o conhecimento da história dos índios no Brasil, leva à reflexão e ao desejo de conhecermos mais sobre os sertões mineiros, os seus habitantes, índios e não índios, e os processos históricos que transformaram as terras dos Cataguases nas Minas Gerais. Os aficionados pela história mineira terminarão a leitura na expectativa de outras pesquisas capazes de seguir a importante trilha percorrida pelo historiador Adriano Toledo Paiva no livro Os indígenas e os processos de conquista dos sertões de Minas Gerais (1767-1813).