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O
texto que se segue é uma tentativa de esboçar os “bastidores” da minha
pesquisa etnográfica que pretendia compreender os sentidos da doença
para os Baniwa, povo arawak falante, habitantes do rio Içana - Noroeste
Amazônico 2 .
Este é, assim, um trabalho sobre o trabalho, mais especificamente,
sobre os problemas que envolvem a pesquisa de campo e que, de um modo
geral, são apagadas das etnografias. Para tanto, descreverei duas
situações diferentes, a primeira, sobre o medo e os desdobramentos que
surgem em uma pesquisa que precisou lidar com fenômenos delicados para
aqueles que o vivenciavam, as doenças causadas pelos espíritos yóopinai
e; a segunda, trata da tradução linguística e antropológica, encarada
como cortada pelos movimentos das posições ocupadas pelo antropólogo e
nativos. Sobre este último ponto, há um convite para se repensar essas
relações, reconhecendo que a sequência aparentemente estática de certos
binarismos, como causa/efeito, ativo/passivo e sujeito/objeto, podem
ser invertidas, ou melhor, deslocadas variavelmente e, assim,
dinamizadas. O que une os dois aspectos neste artigo é o fato de que
eles serão abordados como eu os experimentei durante o trabalho de
campo. Ainda no preâmbulo da pesquisa que estava porvir deparei-me com
problemas que tiveram de ser enfrentados por mim, enquanto pesquisador
neófito. Os primeiros dias de minha incursão etnográfica entre os
Baniwa afetaram o período inteiro de minha permanência em campo, e é
principalmente deste ínterim que surgem as reflexões para este
trabalho.
A
propósito do rótulo de neófito que tomei emprestado, é necessário
assinalar o quão iniciante eu era à altura da pesquisa de campo entre
os Baniwa. O trabalho com este povo se não era a minha primeira
experiência etnográfica, era definitivamente a mais importante. Ele
ocorreu tendo em vista o mestrado em antropologia social, em um período
total de três meses em campo, em que um dos seus resultados foi a
defesa da minha dissertação (Vianna, 2012a). Esta pesquisa foi
realizada a partir da minha recente formação em antropologia social
que, mesmo não prevendo uma preparação prática para o trabalho em
campo, previa tal momento em um plano teórico. Porém, antes mesmo da
pesquisa de mestrado, quando eu ainda era aluno do curso de graduação
em psicologia, já havia tido outras experiências em incursões curtas a
diferentes aldeias indígenas de Rondônia e Amazonas. Entre os
Karitiana, passei um pouco mais que uma semana em sua maior aldeia e,
em Porto Velho (RO), em um período mais longo, mas também mais
disperso, fiz entrevistas com aqueles que constantemente visitavam a
cidade e ficavam quase sempre concentrados na sede da FUNAI. Esta
pesquisa pretendia compreender a utilização de bebidas alcoólicas
(Vianna et all, 2012), cujo alcance etnográfico foi bastante limitado.
Entre os Wari’ do Vale Guaporé (RO), os Tenharim e Pirahã no Sul do
Amazonas, ainda durante a graduação e antes mesmo da experiência com os
Karitiana, passei rapidamente em algumas de suas aldeias em cumprimento
a uma pesquisa de iniciação científica. Estes dias não me renderam mais
que algumas impressões rasas e um relatório cujas limitações são
bastante evidentes (Vianna & Ott, 2007). Apesar da brevidade destas
experiências e me sentir na época, por isso, um neófito, devemos neste
artigo considerá-las ao ler as situações que descreverei a seguir.
Minha expectativa é que a partilha de minhas primeiras experiências em
pesquisa etnográfica possa ser útil para um pesquisador que planeja
suas primeiras incursões no trabalho de campo.
A pesquisa
para a minha dissertação de mestrado em um plano geral, pretendia
compreender uma categoria de fenômenos, as doenças baniwa; e, em um
plano específico, certos adoecimentos em particular, que ocorrem há
anos na escola indígena Baniwa e Curripaco (EIBC) Pamáali. Estas
doenças, em um primeiro momento, eram parcas e isoladas, não
configurando entre si uma ligação, mas passaram a ser frequentes e, não
raramente, coletivas, pensadas pelos Baniwa como constituídas em uma
única lógica causal, decorrentes de um mesmo fenômeno. A multiplicação
repentina dos casos, sempre circunscritos a esta escola, logo
repercutiu nas muitas comunidades3 baniwa
localizadas em diversos pontos dos rios Içana, Aiari e Quiari, onde
habita esse povo, mobilizando a preocupação de todos aqueles envolvidos
com a EIBC e motivando uma busca por explicações que organizasse, para
eles, as experiências que estavam vivenciando.
Após um
ano inteiro de sucessivas doenças entre os alunos da escola, a situação
passou a ser tão preocupante que se cogitou, pelas comunidades, o
fechamento da escola, vislumbrando nessa alternativa uma solução
possível. Neste contexto, ápice da comoção que envolvia os
adoecimentos, as lideranças da Organização Indígena da Bacia do Içana
(OIBI)4 convocaram
uma assembleia extraordinária da escola, tendo como motivo uma única
pauta: as doenças. De acordo com um relatório desta assembleia, feito
pela ACEP (Associação do Conselho da Escola Pamáali), nesta reunião com
lideranças das associações indígenas5 que abrangem os Baniwa do médio rio Içana, os
pais, professores, benzedores6 e
assessores não indígenas da escola, se discutiu o caso, e as diferentes
pessoas expressaram suas opiniões a respeito das explicações das
doenças, na tentativa de criar um senso explicativo que fosse comum,
para o que até então múltiplo em demasia e, por isso, ambíguo e
inexplicável. Ao mesmo tempo em que as pessoas explicavam suas versões,
se perguntavam o que explicaria tal fenômeno nestas configurações. A
assembleia, com este intuito, criou sentidos comuns entre os presentes,
ainda que não tivesse suprimido totalmente a multiplicidade
explicativa, de tal modo que afastaram a possibilidade de fechamento
escola, a despeito da continuidade das doenças.
A escola
Pamáali nasceu da demanda pelo ensino fundamental completo na região do
médio e alto rio Içana. Ela foi construída aos moldes de uma
comunidade, no entanto, fora de qualquer uma já existente. A intenção
era criar um ambiente escolar indígena adequado e comprometido com a
ideia de educação diferenciada que norteava seu projeto pedagógico;
buscava também um modo de assegurar a dinâmica cotidiana, sem
interferências das comunidades. Suas aulas estão organizadas em etapas
letivas de concentração, momento em que os alunos por dois meses
convivem na escola assistindo aulas, realizando pesquisas e as demais
atividades da escola; e etapas de dispersão, quando voltam para suas
casas, nas comunidades, e desempenham as atividades orientadas pelos
professores para este período.
Se há
decisões importantes que tomamos na escrita, há outras tantas que
antecedem a esta, este artigo trata destas decisões e também das
descobertas, ainda no preâmbulo do trabalho de campo.
Sofrimento, medo e expectativas
Parti de
São Gabriel da Cachoeira, cidade ponto de partida para as aldeias
baniwa, no final de maio de 2011, rumo à escola Pamáali, em uma voadeira 7 da
própria escola conduzida por Arcindo, professor da EIBC. Essa viagem
durou três dias, com paradas estratégicas para o pernoite. Na primeira
noite dormimos em uma comunidade baniwa do baixo rio Içana; no dia
seguinte partimos ainda cedo em direção à escola, mas não chegamos
neste mesmo dia, como o previsto inicialmente, e dormimos, por isso, em
uma comunidade do médio rio Içana, apenas algumas horas da escola.
Porém, antes de aportarmos nesta comunidade, tivemos, como todos que
navegam pelo rio Içana, indo do seu ponto baixo ao médio, que parar em
Tunuí Cachoeira. O sugestivo nome da comunidade é indicador, em parte,
dos motivos pelos quais esta é uma parada obrigatória. Tunuí
localiza-se exatamente em uma grande cachoeira e, por vários períodos
do ano, qualquer um que queira transpor essas águas precisa antes
desembarcar na comunidade, descarregar todas as bagagens e materiais do
barco, tornando-o mais leve e seguro para enfrentar este trecho
acidentado do rio. A comunidade é, assim, um ponto estratégico entre o
baixo e médio rio Içana, onde aqueles que sobem o rio precisam,
necessariamente, passar por Tunuí, assim como os que descem, contando
com a colaboração de seus moradores para a custosa logística de
atravessar as corredeiras e prosseguir viagem. Ficamos, no entanto,
nesta comunidade mais do que seria necessário para descarregar o barco
e transpor a cachoeira. Por iniciativa de Arcindo e Obette (outro
baniwa integrante da viagem), visitamos algumas pessoas, almoçamos e
encontramos, não por acaso, o professor Juvêncio, presidente da
Associação Conselho da Escola Pamáali (ACEP). Ele me convidou a sentar
e, após os cumprimentos iniciais, falou sem rodeios, “João você vai ter
muito trabalho, as doenças voltaram”.
Sabedor do
objeto de minha pesquisa, ele passou a relatar, sem mesmo que eu
tivesse solicitado, o recente caso de uma aluna que lhe parecia trazer
uma preocupação especial - Marta 8 ,
neta de uma liderança importante da comunidade onde dormiríamos naquela
noite. Ela havia adoecido e, no seu caso, os professores acharam que
seria apropriada a sua recuperação em casa. Juvêncio orientou, então,
que no prosseguimento de nossa viagem déssemos carona a ela até a
escola, pois estando ela a uma semana em casa era provável que já
tivesse se restabelecido.
Esta curta
conversa trouxe-me várias reflexões que extrapolavam a pesquisa em si,
em seus objetivos antropológicos de investigar relações diversas que
envolvem o objeto estudado, e encontrava um problema grave pelo qual as
pessoas estavam vivenciando e que desejavam eliminar ou, ao menos,
amenizar. Ademais, na declaração de Juvêncio, veio à tona também certa
expectativa de que minha pesquisa fosse, de algum modo, útil na busca
para uma solução de doenças que, há muito tempo, acometem os alunos da
escola. Mas essas questões que, em um primeiro momento pareciam tocar
somente em reflexões pessoais (passou a me incomodar o fato de estudar
doenças que para mim eram objeto de boas questões antropológicas, mas
que para eles eram a causa de sofrimento e em troca, eu sabia, não
poderia oferecer nenhum alento) tornavam-se, com contornos bem
definidos, problemas para a pesquisa, principalmente em seu sentido
metodológico. Percebi que a estratégia a ser escolhida para lidar com o
delicado tema desses adoecimentos definiria o meu acesso a essas
experiências.
Ao chegar
na já citada comunidade para o pernoite, o seu capitão 9 ,
benzedor e avô de Marta, recepcionou-nos. Após os comprimentos ele
perguntou o que eu estava fazendo no Içana. A pergunta de senhor Jarbas
não foi, ao meu entender, casual, pois muito provavelmente ele já sabia
o objetivo da minha viagem. Quatro meses antes desta data, nesta mesma
comunidade, tive uma conversa com o seu pai, em que eu contei sobre uma
futura viagem que pretendia fazer para uma pesquisa a respeito das
doenças da Pamáali. Com minha resposta, contando a intenção geral da
minha pesquisa, o senhor Jarbas conduziu uma longa e interessante
conversa, exatamente, a respeito das doenças na escola.
Ele passou
a contar sobre a construção da EIBC, da sua participação nela, sobre o
território sagrado em que ela fora construída, sobre o que sabia das
doenças e como elas surgiram. Sendo ele benzedor, ou “meio-pajé”, como
me disse, contou também sobre o processo de adoecimento, esclarecendo
que as doenças se tratavam, na verdade, de ataques dos Yóopinai,
pois a interação com estes seres-espíritos resultavam em doenças para
as pessoas, explicando-me, ainda, porque e como eles estavam atacando
os alunos da escola. Sobretudo, deixou claro sua preocupação a respeito
deste problema, inclusive, temendo uma possível morte decorrente da
doença na escola, o que nunca havia acontecido, mas o que não era
garantia, segundo ele, de que não poderia vir a acontecer.
Demonstrou-me anseio para que este problema tivesse uma solução mais
definitiva, todavia, não vislumbrava com otimismo um desfecho para os
casos.
É
importante registrar que ele já tinha tido algumas de suas filhas e,
mais recentemente, netas que adoeceram na escola, de modo que este
discurso preocupado e afetado parece dizer respeito não só ao problema
da Pamáali, enquanto coletivo, mas também pessoal, pois havia um
histórico de vários casos em sua família. A despeito disso, ele pouco
falou da doença em sua neta, ou familiares, limitando-se a dizer que
Marta ainda não estava completamente curada, mas que mesmo assim iria
para escola para não perder mais aulas e aproveitar a nossa carona;
caso a doença voltasse, ela também voltaria para casa e receberia
benzimento e tratamento, que ele mesmo administraria. Apesar de querer
falar sobre o assunto, narrando vários aspectos do fenômeno, queria
saber também, assim como Juvêncio, o que, afinal de contas, eu faria
com o que eu descobrisse em minha pesquisa, perguntando-me, “Então
João, falando sobre isso, eu vou fazer uma pergunta, você vai lá
procurar saber a situação do problema, e depois, como vai ser o
trabalho, mais ou menos pra ajudar lá, como é, pensando assim?”.
Antes de
expor minhas reflexões, que naquela altura se encontravam com aquelas
suscitadas pelo encontro com Juvêncio, devo dizer que me recordei,
imediatamente, com o questionamento do capitão, da conversa que tive
com seu pai, meses atrás. Este havia feito uma inquirição ainda mais
incisiva, revelando uma opinião questionadora a respeito dos resultados
que eu alcançaria em minha pesquisa. Ele, ao indagar sobre que trabalho
eu faria na região e, após eu ter respondido que pretendia entender as
doenças que ocorriam na Pamáali, não hesitou em me questionar,
perguntando se, por algum acaso, eu era meio pajé para querer saber
dessas coisas. Minha óbvia negativa preparou o terreno para que ele
arrematasse seu argumento, dizendo que apesar de não querer me
desanimar no trabalho que eu pretendia realizar, isso tudo seria muito
complicado para mim.
Refleti
bastante a respeito deste episódio. Em um primeiro momento, especulei
que ele estivesse entendendo, talvez por saber que sou psicólogo e,
portanto, profissional da saúde, que eu tentaria tratar as pessoas,
imaginando as implicações que se desdobrariam disto. Esquivando-me
desta indagação passei a ler o questionamento desta importante
liderança baniwa não como uma recusa ou resistência a minha intenção de
compreender os casos na escola Pamáali, mas como um alerta para guiar o
meu espírito em lidar com as experiências ligadas a estas doenças. O
que de fato me preparou para os eventos que viria a seguir.
Os
questionamentos, dúvidas e perguntas de Juvêncio, do avô e do bisavô de
Marta, aluna para quem demos carona, me informavam a natureza do
problema que eu investigaria a frente, que não era para eles, os
Baniwa, uma problemática de pesquisa, e logo não poderia ser assim para
mim também, unicamente. A relação com o objeto estudado exigia uma
cautela que não simplesmente metodológica. Portanto, eu obrigava-me, ao
mesmo tempo em que eles me obrigavam, a compreender que este não era
apenas um problema de pesquisa. Entender as doenças para os Baniwa
implicava em um conjunto de questões capazes de mobilizar, entre outras
coisas, sofrimento e medo. Entendia assim que eu, ao querer compreender
na pesquisa estas doenças, deveria levar exatamente todos estes
aspectos em consideração. Primeiro, por uma questão humana, ou em
outros termos ética; e, em seguida, por uma questão metodológica, ao
pensar em estratégias de acesso a esse conjunto de experiências
delicadas e mobilizadoras de afetos que eu não tinha qualquer controle.
Desta forma, pretendo deixar claro que o tema foi, na pesquisa de
campo, tratado sempre com cautela, afinal, estas doenças não somente
produziam dores, em sua faceta física, mas eram também ameaçadoras da
existência humana destas pessoas.
Na escola,
algumas das alunas que já haviam adoecido não quiseram falar comigo
sobre o assunto, o que foi, por exemplo, o caso de Marta. Ela, em
específico, não trocou sequer uma palavra comigo a respeito de qualquer
assunto durante todo o período em que estive na escola Pamáali. Os
motivos deste silêncio não se esclareceram completamente. Outras alunas
falaram, todavia, censurando determinados conteúdos que eram, de algum
modo, proibidos, e não só para mim, mas para qualquer um, fosse baniwa
ou não. Os colegas das alunas que estavam doentes ou que já haviam
adoecido e tinham, por isso, alguma informação a respeito das doenças
falavam também com certas restrições. Estas eram questões que eu não
entendia em detalhes, mas em um plano amplo, compreendia se tratar de
coisas que eu não podia, simplesmente, ter acesso.
Dessa
maneira, tive que lidar, ao longo da pesquisa, com as dimensões do medo
e do não dito, efetuando passos que eu sabia serem seguros para mim,
enquanto pesquisador, e para eles, enquanto pessoas que podiam ver-se
ameaçadas por forças/seres que eu desconheço, e que, ainda que os tenha
apreendido em algum nível, provavelmente intelectual, continuarei
desconhecendo. Este era o alerta do bisavô de Marta que me serviu de
guia e controle durante todo o trabalho, tanto em campo quanto na
escrita.
Sob estas
circunstâncias e expectativas o trabalho de campo ocorreu em duas
etapas, a primeira, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2011,
resultando em aproximadamente 20 dias percorrendo comunidades do rio
Içana, indo do seu ponto baixo ao alto, quando conversei com pais de
alunos, lideranças comunitárias, velhos benzedores, professores da
escola e assessores não indígenas da escola Pamáali. O objetivo desta
incursão era fazer uma sondagem preliminar a pesquisa de campo mais
prolongada, no intuito de produzir um primeiro conjunto de informações
que me proporcionasse fundamentos para elaborar um plano para o
trabalho de campo. Em um segundo momento, entre os meses de maio e
junho deste mesmo ano, convivi por 30 dias com alunos e professores na
escola Pamáali, período de tempo que correspondeu à metade da etapa
letiva de concentração. Em seguida, passei 15 dias viajando por
comunidades baniwa do rio Içana, em uma trajetória que seguiu o caminho
da volta da escola, descendo o rio até chegar à cidade de São Gabriel
da Cachoeira, fazendo novas entrevistas com velhos e benzedores,
lideranças comunitárias, pais de alunos, com ex-alunos e alunos que,
então, já me conheciam. Posteriormente, retornei ao rio Içana, no mês
de janeiro de 2012, nestes dias tive a oportunidade de tirar dúvidas, a
respeito de questões que haviam ficado em aberto.
Houve
ainda períodos que passei na cidade de São Gabriel da Cachoeira,
difíceis de quantificar, em que pude conversar com professores e
assessores da escola. Estas experiências na cidade foram importantes
para a minha pesquisa, pois alguns dos professores moram na cidade e
assim consegui acompanhar as doenças na Pamáali mesmo após meu trabalho
mais prolongado na escola Pamáali.
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Contra a parede
Descrevi
até o momento algumas das dificuldades que o campo etnográfico
apresentou, tal como lidar com temas delicados que podiam provocar nos
entrevistados receio, sofrimento e medo. Espero agora adentrar com um
pouco mais de profundidade nisso. Todavia, é importante dizer que essas
dificuldades são relativas, pois elas não se mostraram assim o tempo
todo no trabalho de campo, como, por exemplo, nas conversas com os
professores, benzedores e pais de alunos. Estes, ao contrário dos que
adoeciam ou que eram potencialmente doentes, gostavam de falar sobre os
casos, discorrendo sobre o assunto longamente. Esta impressão esteve
presente em mim durante todas as conversas que estabeleci a esse
respeito com essas pessoas, o que não significava, entretanto, ausência
de preocupação, mas o fato é que estavam sempre dispostos a falar sobre
o tema, dedicando-se a entender o fenômeno, especulando associações e
relações em um exercício que certa vez Alfredo, professor e então
coordenador da escola Pamáali, qualificou como filosófico. Era
exatamente este o tom das nossas conversas, detinham-se, sobretudo, a
entender a natureza dos yóopinai,seres
que comumente não se vê, a não ser os pajés, e que segundos os velhos
assumem formas diversas, como as de animais, insetos e pedras, mas que
em seu próprio mundo são gente como nós. Esta explicação, longe de
elucidar tudo sobre estes seres-espíritos, foi objeto de muitas
conversas, pois eles também, de certa forma, queriam entender o que era
ou quem eram eles e quais eram os seus mecanismos para atacar os
humanos.
Fui
convidado pelos professores, no mesmo dia em que cheguei à escola, a
apresentar meu projeto de pesquisa. Uma prévia escrita já havia sido
enviada anteriormente. Esta apresentação ocorreu na casa da
administração da escola, durante a noite, ocasião em que os professores
se reuniam praticamente todos os dias para tratar de assuntos diversos,
indo das questões pedagógicas e disciplinares às administrativas. A
apresentação em si foi extrapolada por uma interessante conversa à moda
de uma mesa redonda em que todos os professores expressaram suas
opiniões a respeito dos casos. Ao invés da reunião se restringir a uma
sabatina sobre as minhas intenções na escola, o que em alguma medida
ocorreu também, o tom da conversa ao longo da minha apresentação
assumiu o caráter de uma discussão em grupo, em que eu ia apresentando
questões e eles me esclarecendo. Mas era mais que isso, pois eles
faziam, uns para os outros, questões também, de modo que tive acessos
às dúvidas e aos questionamentos que eles tinham para si mesmos,
questões que eu, um não baniwa, não poderia ter. Esse encontro me
possibilitou acesso às explicações e impressões dos professores que
discutiam e construíam, a minha frente, consensos e desacordos.
O sucesso
desta reunião, para mim e para eles, fez como que ela não fosse a
única, sendo a primeira de outras que se seguiram e que quase de
imediato tomou um formato específico em uma sistemática própria. Ao fim
do dia, por volta das 19hs, por pelos menos três vezes na semana, eu ia
à secretaria da escola e encontrava a todos os professores me esperando
e, então, conversávamos sobre as doenças. Eles me explicavam o que
sabiam, discutiam entre si o que pensavam e, por outro lado, eu ia
perguntando deles questões e esclarecendo dúvidas, e também respondendo
as questões que eles me faziam sobre as minhas impressões a respeito
dos casos da doença que eu passei a acompanhar e das conversas que a
esta altura eu tinha com os alunos. Esta sistemática aconteceu não só
por uma iniciativa minha, mas também dos próprios professores. No
entanto, quando ela começava a se estabelecer e cujas engrenagens
pareciam estar bem encaixadas foi extinta pelos professores e as
conversas sobre o assunto passaram a ganhar outros formatos.
Com os
alunos e alunas, devidas as já elencadas dificuldades, o percurso foi
mais longo até encontrar uma estratégia mais adequada. Fiz inicialmente
tentativas de conversas e entrevistas individuais, o que se mostrou
inadequado para o tema das doenças; eles não ficavam a vontade, e a
isto se somava a dificuldade deles com o português. Todos os alunos são
pelo menos bilíngues, mas a fluência do português encontrou no assunto
das doenças um limite 10 .
Passei, por isso, a contar com a ajuda e tradução de Abílio Julio, um
amigo baniwa que foi aluno da escola Pamáali e que na época do trabalho
de campo era membro da equipe docente. Além disso, passei a fazer
entrevistas que não eram individuais, reunindo os alunos em grupos, com
intuito dos meninos e meninas se sentirem mais seguros para falar.
A doença é
em seu aspecto manifesto uma crise em que a pessoa desmaia e passa,
então, a contorcer-se, chorar e balbuciar palavras. Este estado exige
dos colegas do doente uma contenção constante, contra a possibilidade
da pessoa correr para o mato e perder-se. Explicaram-me os Baniwa que a
pessoa em crise comporta-se assim, porque teve sua alma capturada pelos
espíritos-yóopinai
que a levaram para o mundo subterrâneo dele. A alma lá é corpo e por
isso vive analogamente ao modo como se vive no mundo humano. Os doentes
capturados são capazes de descrever detalhadamente o mundo de “lá” que
não é muito diferente do mundo de “cá”, os espíritos vivem em malocas e
tem aparência humana. Enquanto isso, o corpo verdadeiramente humano
está deitado em uma rede debatendo-se no mundo humano e recebendo a
atenção e a contenção dos alunos da escola.
A primeira
conversa sobre o assunto que tive com os alunos, especificamente os
homens, ocorreu após acompanhar com eles a um destes casos de uma aluna
doente, noite adentro, participando da contenção. Minha presença no
alojamento da aluna doente no momento do ataque dos yóopinai e
minha participação em seu cuidado operou a primeira abertura em que
eles se dispuseram a conversar comigo sobre as doenças. Combinei,
então, com dois deles, para o outro dia, uma conversa, e disse que se
quisessem poderiam chamar outros colegas. Cumprindo o combinado, no
outro dia, os dois foram ao meu encontro trazendo colegas e fizemos,
então, a primeira conversa em que eles me contaram sobre o que sabiam e
sobre o que tinha acontecido na noite anterior com Simone. Antes,
porém, a nossa reunião passou por certa tensão que não parecia ser
somente minha, mas também dos jovens alunos, ainda muito desconfiados
comigo e meus interesses de pesquisa. No início da conversa ainda,
perguntaram-me porque eles deveriam contar o que sabiam para mim,
porque eu gostaria de saber destas coisas e, mais, como eu poderia
ajudá-los? Esta conversa foi gravada por mim, transcrita e traduzida
por Abílio, que cito a seguir:
Ernesto:
Mas, porque será que existem esses tempos aonde ataca mais e em outras
épocas não ataca muito? Por que vejo, que tem as etapas que o ataque da
doença é bastante, e já nas outras etapas não é tanto. Por exemplo, no
início da etapa, a doença não ataca, mas chegando ao final da etapa a
doença ataca mais. Como está acontecendo atualmente, nessa etapa. Mas,
como isso poderia melhorar através dessa pesquisa que ele [João] está
fazendo? Como ele poderá nos ajudar a solucionar esse problema? [Notem
que a pergunta é para Abílio que fazia no momento uma tradução
simultânea para mim]
João Vianna: Bom,
é uma boa pergunta mesmo. Porque, quando vim para cá, minha ideia
inicial era fazer um trabalho tentando descobrir coisas a respeito da
doença, pois não vim solucionar o problema. Pelo o que eu vejo este é
um problema que somente especialistas como os pajés e benzedores
poderão resolver. Então, sou psicólogo, talvez vocês não saibam como
que a psicologia funciona para gente na cidade. Um psicólogo é uma
espécie de benzedor dos brancos, mas que não usam medicamentos. O nosso
trabalho, como psicólogo é feito através de conversas, orientações e
aconselhamento. Na medida em que a gente vai conversando, vai
entendendo o problema e ajudando. Mas não sei se isso funciona aqui.
Pode ser que funcione lá e pode ser que não funcione aqui. Por
isso, penso que a primeira atividade feita a respeito de doenças que
posso fazer é reunir informações ao máximo que eu puder e, então,
devolver para vocês. E aí a gente pode pensar juntos, o que fazer com
essas informações.
Fui neste
momento, como no encontro com o bisavô e avô de Marta e também com
Juvêncio, confrontado, o que não se reverteu em uma recusa deles ao meu
trabalho, mas o que poderia assim ter acontecido. Após este encontro eu
tive a sensação de ter sido aprovado em uma espécie de teste. Imaginava
aqui que o fato de saberem que eu era psicólogo, profissional que
ligado ao serviço de saúde dos Brancos, criava certas expectativas, de
tal modo que logo após o diálogo acima, perguntaram-me se para as
doenças que ocorriam na escola havia cura e medicamentos próprios,
respondi que não, pelo menos não nos remédios e curas dos brancos.
Minhas
respostas, mesmo que frustrando algumas das expectativas deles em
relação a mim e a um conhecimento que talvez eu representasse,
funcionaram como um dispositivo que os “desarmaram”. Os alunos
demonstraram-se mais a vontade, abrindo possibilidades para outras
conversas que, como esta primeira, eram sempre coletivas, contando em
média com a participação de seis alunos que nem sempre eram os mesmos.
Desde então, os alunos demonstraram disposição para falar comigo, o que
antes não ocorria, e estas conversas passaram a ser um recurso
interessante de acesso às experiências dos alunos. Os encontros com as
meninas seguiram o mesmo modelo das conversas com os meninos, uma vez
que elas com sutileza se recusaram a conversar individualmente, de modo
que a experiência de conversas coletivas, mediadas e traduzidas por
Abílio, se mostrou uma estratégia importante, principalmente por ser,
naquele momento, a única possível.
Nos
encontros com os alunos e alunas, diferentemente do dos professores, as
reuniões tinham mais um caráter de entrevista do que de discussão. Os
professores não se viam como entrevistados na maior parte do tempo e,
por isso, não esperavam por minhas questões, e ainda que eu fizesse
algumas perguntas com intuito de desencadear um debate, eles é que
conduziam o encontro relegando a mim o espaço de um observador externo.
Os meninos, por sua vez, assumiram uma posição mais próxima a de
entrevistados, esperando por minhas questões, mas, assim como os
professores, refletiam durante o encontro com seus colegas, discutindo
entre si as questões colocadas durante a nossa reunião. Ao final dos
encontros eles já se sentiam à vontade para fazer questões a mim,
perguntando se problemas como os deles aconteciam entre os Brancos
também, indagando quais eram os significados de certos aspectos da
minha cultura, produzindo questões parecidas com as que eu fazia para
eles. As meninas, porém, esperavam por minhas perguntas, respondendo-as
mais objetivamente.
Outra
diferença importante contida entre os encontros com os professores e
com os alunos é que com os primeiros as conversas assumiam um ponto de
vista mais analítico, desencarnado, em nome do coletivo Baniwa, ou
seja, a discussão girava em torno de termos mais abstratos ou
filosóficos, como disse Alfredo. Não havia entre eles nenhum relato
pessoal ou mesmo de um caso em específico. Em contrapartida, entre os
alunos, haviam muitos relatos pessoais, descrevendo detalhadamente
experiências suas ou de colegas próximos, discutindo os adoecimentos em
um plano mais concreto e encarnado. Por sua vez, as meninas, mais ainda
do que os meninos, focavam em casos, principalmente nos que lhes haviam
acontecido, em depoimentos ricos e detalhados. Estas conversas, porém,
eram mais delicadas, pois quase tudo o que falavam tratava de
acontecimentos recentes que pareciam pertencer a uma ordem ainda muito
perigosa para se comentar livremente.
Nativos? Ensaios de uma tradução antropológica
reversa
Quero chamar atenção agora para as pessoas com as quais e entre as
quais eu fiz a pesquisa etnográfica. Para isso, devo destacar, antes,
aspectos importantes que compõe o contexto mais amplo onde estão
situados os Baniwa, região conhecida como Alto Rio Negro, Noroeste
Amazônico. Esta paisagem etnográfica é formada por aproximadamente 23
diferentes povos indígenas que, falantes de línguas das famílias Tukano
Oriental, Arawak, Maku e Yanomami, têm suas terras acessadas a partir
da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Com 37.860 habitantes, sendo
estimado que mais da metade da população seja de indígenas, este
município é único no Brasil, entre outras coisas, por ter três línguas
oficiais que além do português são: o baniwa, tukano e nheengatu. E
também por ter tido, até o ano passado, a frente de sua estrutura
política executiva municipal, prefeito e vice-prefeito indígenas (IBGE,
2010).
Estas especificidades cravadas em dispositivos oficiais do estado
brasileiro são algumas das conquistas do movimento indígena desta
região que, organizado em diversas associações ligadas a FOIRN,
desempenhou, principalmente na década de 90, um papel crucial na luta
para a demarcação de terras indígenas, buscando também, desde sua
criação, maneiras de pressionar as esferas públicas competentes para
que as comunidades tivessem acesso à educação escolar e aos serviços de
saúde. Vale ressaltar que este movimento indígena liderado pelas
associações e FOIRN contou e conta até hoje com o apoio de organizações
não governamentais (ONGs) estrangeiras e brasileiras, que financiam
desde a fundação suas atividades e também as assessorando para assuntos
técnicos e administrativos.
Atualmente
a pauta de atuação do movimento indígena se concentra na manutenção e
expansão destas conquistas e no fomento de projetos de desenvolvimento
sustentável para as comunidades. A escola Pamáali é fruto exatamente
desta última política de incremento das possibilidades de formação
escolar, que favorece o bem estar das pessoas, ao permitir uma
escolarização adaptada à realidade indígena e acessível às comunidades.
Diante deste contexto, preenchido por associações indígenas bem
sucedidas, diferentes ONGs e projetos de desenvolvimento sustentável,
fazer trabalho de campo no Noroeste Amazônico é lidar, muitas vezes,
com “nativos” que tem larga experiência no movimento indígena, no
desenvolvimento de projetos e na relação com os não índios. Nesse
sentido, os povos desta região da Amazônia têm acumulado larga
experiência no estabelecimento de relações com os Brancos 11 ,
desde o passado em que estes eram principalmente comerciantes
exploradores de seu trabalho (os patrões), garimpeiros e regatões; e
que mais recentemente são militares, missionários, enfermeiros,
indigenistas ligados a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a ONGs, e
pesquisadores de diversas áreas. Nesse sentido, estes povos, demonstram
uma grande capacidade em domesticar os Brancos e, como não poderia ser
diferente, esse processo se reproduz também nas relações de pesquisa e
os pesquisadores. Não só isso, os “nativos” aqui têm acesso à educação
escolar básica, superior e em alguns casos - poucos, mas existentes -
também a pós-graduação, exercendo funções importantes, exigentes desta
formação, tanto na cidade quanto nas comunidades.
Nesse sentido, a escola Pamáali maximiza vários destes aspectos, pois
ela concentra em seu corpo docente pessoas baniwa de destaque não só
por competência em docência, mas também na condução e administração de
projetos que a EIBC vincula, como o de psicicultura, o de produção de
pimenta e outros. Ademais, esta escola exige de seus professores uma
habilidade política, na medida em que ela se tornou uma importante
referência no rio Içana no que toca ao movimento indígena relacionado
às questões escolares. A EIBC Pamáali ganhou uma importância que
extrapola a si mesma, o que se objetifica na Rede de Escola
Baniwa/Coripaco que interliga todas as escolas indígenas da região do
rio Içana.
Descreverei agora uma situação que sinaliza para a presença destes
intelectuais indígenas, caracterizando o contexto no qual esta pesquisa
foi realizada. Três meses antes de eu ir a escola em trabalho de campo
encontrei Juvêncio e Raimundo, ambos professores da EIBC, que estavam
em Manaus. A ideia de encontrá-los era discutir minha entrada na escola
e fazer uma apresentação informal do meu projeto. Conversamos
brevemente sobre as doenças da escola, eles me deram um quadro geral do
fenômeno em questão, explicando-me como eram as doenças e o porquê de
seu acontecimento. Ponderaram diversas possibilidades, mas destacaram
duas explicações, uma ligada ao fato da escola ter sido construída em
cima da maloca dos yóopinai e
outra decorrente de sopro/feitiço efetuado por outro povo, invejoso do
sucesso da escola Pamáali. Mas foram além e disseram que provavelmente
estas duas explicações estavam envolvidas e não eram excludentes entre
si.
A
esta altura eu percebia a centralidade que os yóopinai ganhavam
para entender o que ocorria na escola, porém, mesmo conhecendo a
literatura baniwa, tinha muitas dúvidas e passei a perguntar mais sobre
como esses seres atacavam as pessoas doentes. Os professores, então,
responderam-me, dando um exemplo: - “quando uma pessoa tem um sonho
erótico, ela, ao acordar, se torna mais visível aos yóopinai e
eles podem, porque conseguem ver, atacar esta pessoa”. Diziam-me que as
pessoas deveriam preservar algo como uma invisibilidade para eles.
Percebi, então, que a noção de visibilidade/invisibilidade era
importante para entender o que eles estavam me contando.
Notava, para além destas questões, que os professores articulavam muito
bem os saberes, dominando bem o português e o mundo Branco, mas sem
deixar de lado o mundo Baniwa; não hesitavam, por exemplo, em revelar
as teorias indígenas e embarcavam profundamente nestas explicações.
Diante disso, me senti a vontade, mesmo em um primeiro encontro, para
testar com eles hipóteses e dúvidas que eu havia elaborado a partir da
pesquisa bibliográfica na literatura. Nestes textos, e com a ansiedade
de um principiante para explicar os fenômenos, encontrei o que seriam
duas possibilidades para compreender as doenças causadas pelos Yóopinai:
a primeira mencionava que eles atacavam deliberadamente os humanos,
seus inimigos, ou seja, há a intenção destes seres em fazer mal para as
pessoas; a segunda explicação acenava para o fato de que eles, na
verdade, somente brincam com as pessoas, mas ocorre que essa
brincadeira para os humanos é sentida como um ataque.
Os
dois professores ouviram com atenção minha questão que foi colocada
exatamente nestes termos e, então, Juvêncio tomou a palavra dizendo-me
que certa vez tinha lido um antropólogo, neste momento ele hesitou um
instante, como se buscasse na memória um nome que por um lapso fora
esquecido, mas não demorou em recordar e desferiu: - “ah é o Eduardo
Viveiros de Castro” 12 .
Completou comentando que minha pergunta o fez lembrar o artigo que ele
tinha lido sobre a teoria do perspectivismo ameríndio. Seu comentário
me deixou completamente surpreendido, pois podia imaginar uma gama
muito variada de respostas, desde “peripécias mitológicas” a um simples
“não sei”, menos que ele identificasse um dos fundamentos da minha
questão. Este episódio revelou para mim que os nativos da Pamáali,
conhecem bem o trabalho dos pesquisadores e, pelo menos no caso de
Juvêncio, o dos antropólogos, reconhecendo, inclusive, suas premissas
teóricas.
Ele
prosseguiu desenvolvendo a questão, disse que não sabia ao certo a
resposta para a minha pergunta, ainda que ela, em um primeiro momento,
para ele, parecesse fazer muito sentido, justificou que quem sabem
essas histórias são os velhos. Passou, a partir daí, a fazer questões
também, pois, segundo ele, ouviu dos velhos que algumas pedras são Yóopinai,
como as que têm no porto da EIBC nas margens do rio Içana, mas ele não
sabia exatamente o que os velhos queriam dizer com isso; se eles dizem
com isso que ali vivem estes seres ou se as pedras são mesmo Yóopinai que
visualizam os humanos de um jeito e veem a si próprias como gente
humana.
Com
intuito de fazer exemplificar sua explicação Juvêncio contou que a
piracema dos peixes demonstrava o que ele queria dizer, pois quando
vemos os peixes nessas ocasiões, subindo o rio e pulando nas
cachoeiras, na verdade, em seu mundo, eles estão a fazer festa, é como
se fosse o pódaali 13 : - “A piracema é o pódaali dos
peixes”. Se Juvêncio não é especialista em yóopinai e
doenças, ele o é em peixes, por mais de uma perspectiva, ele é o
responsável na Pamáali pela estação de psicicultura, e também para
ensinar aos alunos manejar os peixes, tanto do ponto de vista dos
projetos em segurança alimentar quanto da cultura baniwa. Ilustra esta
situação as seguintes imagens, produzidas pelos alunos da escola
Pamáali, orientadas por este professor.
A
primeira imagem representa a perspectiva dos peixes que por este ângulo
são pessoas humanas; na segunda imagem, visualizamos um recurso que
mistura formas, em peixes antropomorfizados, com a intenção de indicar
ao mesmo tempo as duas perspectivas. De um lado, peixes, pois assim
eles são vistos pelos humanos (e de algum modo é assim que eles são de
verdade) e, do outro lado, gente, pois é desta maneira que eles veem a
si próprios, com destaque para o fato de que não se atribuiu a eles
somente formas físicas humanas, mas também culturais - ambas as figuras
demonstram os peixes fazendo festa, dançando e tocando flautas.
Apesar dos professores serem intelectuais, eles são de um tipo
específico e, nesse sentido, não são especialistas baniwa, tais como
pajés e benzedores. Eles possuem habilidades importantes para as
funções que exercem, elaborando um saber capaz de articular mundos
diferentes, atuando neles simultaneamente, mas não são as principais
referências no que toca as doenças e seu conhecimento correlacionado.
Então, se por um lado, esta pesquisa se beneficiou deste campo
preenchido por intelectuais indígenas “modernos”, tendo acesso a
traduções de novos tipos, por outro, trabalhou com um conjunto de
informações sobre doenças que é preponderantemente do senso comum
baniwa. Conversei com alguns velhos, donos de cânticos, especialistas
no conhecimento sobre as doenças, mas a pesquisa não tinha nestas
informações especializadas o único foco. Interessava saber também, como
os professores, alunos e pais elaboravam e eram atingidos pelos
fenômenos que estavam a ocorrer na Pamáali.
Ainda
sobre minha relação com os Baniwa da escola Pamáali, é importante
registrar que a tradução, tanto antropológica quanto linguística,
ganhou uma atenção especial e foi objeto de reflexões durante todo o
trabalho. Isso porque parte das entrevistas da pesquisa necessitaram de
tradução simultânea. Abílio, nesse sentido, desempenhou um papel
importante na pesquisa, não somente porque foi um bom tradutor, mas
porque não se limitou a isso. Em conversas que tínhamos sobre as
doenças provocadas pelos yóopinai, ele
indagava-se sobre o fenômeno que acometia a escola, experimentando
explicações e entendimentos. Com este mesmo tom ele adotou
espontaneamente uma postura ativa nas entrevistas, demonstrando que,
por motivos diferentes dos meus, se interessava também em entender as
questões em torno dos desmaios e ataques de
espíritos na Pamáali. Em diferentes momentos das entrevistas ele
realizava perguntas aos entrevistados que eram suas em uma busca
pessoal e/ou coletiva, mas que absolutamente não eram minhas.
Em nenhum momento compreendi tal postura como problemática, ao
contrário, com o tempo passei a vislumbrar nesta atuação perspectivas
interessantes para a pesquisa. Hoje, retrospectivamente, percebo com
mais clareza que esta relação estabelecida com Abílio não somente
possibilitou um acesso facilitado às experiências de adoecimento entre
os alunos que já haviam adoecido, mas também, não menos importante, um
acesso diferenciado a elas.
Mas
Abílio não somente fez traduções simultâneas durante as entrevistas com
os alunos, acima descritas, como também fez a transcrição dos seus
registros em áudio, traduzindo-as. Nesse sentido, chamou-me à atenção,
já em uma primeira leitura das transcrições, principalmente nas
entrevistas realizadas com os velhos conhecedores baniwa, termos que me
pareciam muito distante do modo como eles se refeririam a certas
questões. Por exemplo, Abílio traduziu para mim o processo em que uma
pessoa fica doente por causa dos yóopinai,
como uma “infecção”. Assim, li em suas transcrições frase como, “a
aluna foi infectada”, o que em outros momentos era mencionado como um
ataque de espíritos.
Tive
a oportunidade de conversar com Abílio em São Gabriel da Cachoeira, e
também pela internet, após receber estas traduções transcritas.
Perguntei a ele o que os velhos estavam dizendo literalmente pelo o que
ele nomeou de ‘infecção’. Respondeu-me, então, que não há uma tradução
literal para o que estavam dizendo, talvez fosse possível dizer, com as
palavras dos velhos, que os Yóopinai estavam
atacando ou pegando as meninas, mas isso em si não traduziria, para
ele, o processo mais complexo que estava implicado. Uma vez que por
infecção Abílio queria informar uma espécie de estado que se estabelece
a partir deste ataque, algo como uma contaminação, que cria uma
condição que deixa a pessoa mais suscetível, indeterminadamente, a
outros ataques destes seres. A ideia de uma infecção dos Yóopinai,
mesmo não sendo um termo nativo, descreve bem, do ponto de vista do
tradutor, o que ocorre, conferindo a este processo uma característica
de permanência da doença, que só o ataque não atribui. E assim ele me
convenceu de que esta era uma boa palavra para definir o que acontecia
nas pessoas doentes.
Conclusão
O
caráter etnográfico deste artigo pretendeu trazer à tona, em uma rede
cujas pontas não se fecham necessariamente, algumas das questões que a
pesquisa de campo pode revelar ao pesquisador que, inexperiente, não
imaginaria lidar. Revelar os problemas, as dificuldades e os acertos -
estes últimos desde que nesta rede de elementos heterogêneos - dentro
das descrições etnográficas pode cumprir um papel importante, na medida
em que demonstra a operação do próprio antropólogo e sua inclusão como
um dos termos nas relações que ele descreve. O sucesso das experiências
etnográficas parece mais facilmente obscurecer o antropólogo do que as
dificuldades. Por consequência, não imaginar somente os acertos da
pesquisa suspende a força imperativa das entidades - como o social, a
sociedade, a cultura e os sistemas.
A
sugestão deste deslocamento torce nosso olhar e permite imaginar que,
por exemplo, os povos indígenas podem ler os mesmos textos da
bibliografia do antropólogo, assim como o próprio trabalho do
antropólogo sobre o qual eles são pensados. Sobre isso ver o trabalho
de João Rivelino, índio tukano e mestre em antropologia social, cuja
dissertação tratou de um olhar tukano a respeito da literatura sobre os
Tukano no que toca sua organização social (Barreto, J., 2012). Ou
ainda, como fez Abílio para mim, ao ler meus trabalhos sobre os Baniwa
e comentá-los. Do mesmo modo que nós refletimos sobre eles, podemos
imaginar também que, em reverso, eles refletem sobre nós. Se nem sempre
fazem teses escritas a respeito destas reflexões sobre nós, eles nos
objetificam de outras maneiras que muitas vezes não percebemos, em
parte porque estamos preocupados demais em colocá-los no lugar inerte
dos objetos (Wagner, 2010).
Imaginar tal virada teórica traz simultaneamente uma virada da
percepção do antropólogo em reformulações que, por um lado, evidenciam
os limites do modo como produzimos conhecimento e que, por outro,
projetam novas possibilidades e permitem novas relações, sejam elas
abstratas em um âmbito teórico, mas também concretas em um âmbito
interpessoal. O alcance dos limites permite vislumbrar novas
possibilidades.
Espero, entre outras coisas, com este trabalho, ter deixado evidente
que os meus “nativos” não são objetos, não são passivos e, muito menos,
desprovidos de reflexão, são, portanto, interlocutores e também, alguns
deles, meus amigos. Eles não somente traduzem entrevistas e me ensinam
a língua baniwa, mas me ensinam o português, ao conferir novos sentidos
para termos estabilizados da minha língua materna. E ainda me revelam,
a contra gosto, meus fundamentos teóricos, desmascarando meus
artifícios analíticos. Nesta dinamização das relações, ou pelo menos no
modo de descrevê-las, alguns binarismos passam a ser repensados nos
oferecendo não somente novos olhares e experiências, mas novas
imaginações. Se, então, os nativos não estão mais presos na posição
apática ao qual foram por muito tempo encaixados nos trabalhos
antropológicos, o antropólogo enquanto sujeito/analista também não,
podendo gritar por sua liberação de uma posição ativa, obliteradora
tanto das outras atividades de outros sujeitos, quanto da sua própria
“passividade” e da sua posição de objeto. O antropólogo não é o senhor
de sua pesquisa de campo e saber disso talvez faça ele lidar melhor com
as ambiguidades de suas próprias intenções e ações, tomando mesmo, em
alguma medida, consciência delas.
Realizar um trabalho etnográfico levando em conta outrem, reconhecendo
sua capacidade reflexiva, sua capacidade de interlocução pode ser ao
mesmo tempo o efeito do que se espera e a causa para o que se pretende.
Compreender nativos ativos, reflexivos e potencialmente amigos pode
fazer alguma diferença na pesquisa que ainda virá. O resultado neste
ponto se antecipa. Imaginar primeiramente uma tese ou uma escrita capaz
de absorver todos estes aspectos, como causa, o que seria pretensamente
o resultado final, pode provocar um efeito interessante: uma
determinada pesquisa etnográfica. Um movimento de antecipação, a tese
(efeito) que vem antes da pesquisa (causa) ou então uma tese (causa)
que produz uma pesquisa (efeito). Isso, levado a sério, têm implicações
para as relações que envolvem o antropólogo na convivência pessoal com
seus interlocutores, ainda que por um tempo limitado, e na partilha
existencial de uma vida com eles, esta provavelmente muito mais
duradoura.
Referências
BARRETO, J. R. R. Formação e Transformação de Coletivos
Indígenas do Noroeste Amazônico: do mito à sociologia das comunidade,
Dissertação de Mestrado, PPGAS/Ufam, 2012 (mimeo).
HILL, Jonathan. Cosmology and Situation of Contact in Upper Rio
Negro Basin. In: Turner,Terence (ed.). South
American Studies: Cosmology, Values and Inter-Ethnic Contact in South
America, 2:42-51, 1993.
VIANNA, João & OTT, Ari. Agentes indígenas de saúde no DSEI Porto
Velho: um estudo etnográfico. Pesquisa e Criação, 2007.
VIANNA, J. J. B., Cedaro, J. J., & Ott, A. M. T. Aspectos
psicológicos na utilização de bebidas alcoólicas entre os
Karitiana. Psicologia & Sociedade, 24(1), 94-103.
2012.
VIANNA, João. De volta ao caos primordial. Alteridade,
indiferenciação e adoecimento entre os Baniwa. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012a.
________. Eu, nativo, nós, Ialanawi. Reflexões
baniwa sobre a alteridade branca. Cadernos de campo, n.
21, 2012b.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac
Naify, 2010 [1981].
WRIGHT, Robin. Os Guardiões do Cosmos: Pajés e Projetas entre os
Baniwa, In: Langdon, Esther Jean. (org.). Xamanismo no
Brasil. Novas Perspectivas. pg. 75-116. Florianópolis:Ed.
UFSC,1996.
____________. Ialanawinai. O branco na história e mito Baniwa. In.
Ramos, Alcida & Albert, Bruce (Orgs.). Pacificando o branco.
Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Editora
UNESP, 2000. p 431 – 468.
Notas
1 Agradeço aos comentários e críticas de Marina
Monteiro e Nicole Soares-Pinto às versões que deram origem a este texto.
2 Pesquisa
apoiada pelo Projeto Saúde e Condições de Vida de Povos Indígenas na
Amazônia, Programa de Apoio a Núcleos de Excelência –
PRONEX/FAPEAM/CNPq, Edital 003/2009.
3 Os
Baniwa denominam seus grupos ou assentamentos familiares, localizados
às margens do Içana e de seus afluentes como ‘comunidades’ ao invés de
aldeias, a denominação, talvez, mais comum para muitos povos indígenas
do Brasil.
4 OIBI é a associação indígena Baniwa que atua na
região do médio rio Içana, localização onde se situa a escola Pamáali.
5 Mais
de uma associação, além da OIBI, já citada, atuam entre os Baniwa do
médio rio Içana. Em seu plano maior está a FOIRN, Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro, que se desdobra em diferentes
coordenadorias abrangentes de todo o Noroeste Amazônico. A CABC,
Coordenadoria das Associações Baniwa e Coripaco, é a responsável por
articular o movimento indígena nas distintas associações que estão
presentes nas comunidades da bacia do Içana e afluentes. Para cada
instituição desta há representantes eleitos, conhecidos na região como
lideranças indígenas. Eles que, em sua figura política, são: os
presidentes, no caso das associações locais; coordenador no caso da
CABC; ou diretor, na representação Baniwa dentro da FOIRN.
6 Os
‘benzedores’ é o modo como hoje comumente são chamados os ‘donos de
cânticos’, de tal modo que os dois termos utilizados durante o trabalho
remeterão ao mesmo especialista. É um especialista capaz de realizar
orações cantadas, ou “rezas” enunciados em momentos rituais
importantes, como o pós-parto, o ritual de iniciação masculina, ritos
de cura e outros eventos ligados aos ciclo produtivos da sociedade
(Wright, 1996).
7 Voadeira
é o termo utilizado comumente, nesta região, para designar um barco de
alumínio impulsionado por motor de popa.
8 A
estratégia de pseudônimos será utilizada durante o trabalho. Os alunos
serão sempre identificados por nomes fictícios, bem como algumas
lideranças indígenas e professores. Estes últimos, no entanto, não
necessariamente terão sua identidade nominal ocultada, dado o conteúdo
de certas declarações não exigir sigilo.
9 Capitão é a denominação utilizada pelos Baniwa
para designar o chefe de uma comunidade, é a principal liderança local.
10 Falam
o baniwa como primeira língua e o português, como segunda. Os Coripaco,
que moram no alto Içana, próxima a fronteira do Brasil com a Colômbia,
falam além destas duas línguas, em sua maioria, o espanhol
11 Sobre a categoria baniwa de “brancos”, ou ialanawinai, ver
Vianna (2012b) e Wright (2000).
12 Eduardo
Viveiros de Castro é etnólogo com experiência entre povos ameríndios e,
atualmente, é um dos mais importantes antropólogos brasileiros. Com uma
argumentação teórica refinada e complexa, sua obra tem instigado uma
série de debates que extrapolam as fronteiras da etnologia indígena,
alcançando a teoria antropológica produzida no Brasil e alhures.
13 Pódaali é
uma festa baniwa em que há a reunião entre afins, onde trocas diversas
se estabelecem, tal como matrimoniais e também de alimentos e bebidas
(HILL, 1993).
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