ISSN 1982-9108 -  Zona de Impacto. ANO 16 / 1 - 2014 - Janeiro/Junho


Das decisões que antecedem e permanecem no campo etnográfico.
Notas sobre um antropólogo neófito e os Baniwa do médio rio Içana
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João Jackson Bezerra Vianna
(Doutorando PPGAS/UFSC)

 



         I


 

 


          O texto que se segue é uma tentativa de esboçar os “bastidores” da minha pesquisa etnográfica que pretendia compreender os sentidos da doença para os Baniwa, povo arawak falante, habitantes do rio Içana - Noroeste Amazônico 2  . Este é, assim, um trabalho sobre o trabalho, mais especificamente, sobre os problemas que envolvem a pesquisa de campo e que, de um modo geral, são apagadas das etnografias. Para tanto, descreverei duas situações diferentes, a primeira, sobre o medo e os desdobramentos que surgem em uma pesquisa que precisou lidar com fenômenos delicados para aqueles que o vivenciavam, as doenças causadas pelos espíritos yóopinai e; a segunda, trata da tradução linguística e antropológica, encarada como cortada pelos movimentos das posições ocupadas pelo antropólogo e nativos. Sobre este último ponto, há um convite para se repensar essas relações, reconhecendo que a sequência aparentemente estática de certos binarismos, como causa/efeito, ativo/passivo e sujeito/objeto, podem ser invertidas, ou melhor, deslocadas variavelmente e, assim, dinamizadas. O que une os dois aspectos neste artigo é o fato de que eles serão abordados como eu os experimentei durante o trabalho de campo. Ainda no preâmbulo da pesquisa que estava porvir deparei-me com problemas que tiveram de ser enfrentados por mim, enquanto pesquisador neófito. Os primeiros dias de minha incursão etnográfica entre os Baniwa afetaram o período inteiro de minha permanência em campo, e é principalmente deste ínterim que surgem as reflexões para este trabalho.
           A propósito do rótulo de neófito que tomei emprestado, é necessário assinalar o quão iniciante eu era à altura da pesquisa de campo entre os Baniwa. O trabalho com este povo se não era a minha primeira experiência etnográfica, era definitivamente a mais importante. Ele ocorreu tendo em vista o mestrado em antropologia social, em um período total de três meses em campo, em que um dos seus resultados foi a defesa da minha dissertação (Vianna, 2012a). Esta pesquisa foi realizada a partir da minha recente formação em antropologia social que, mesmo não prevendo uma preparação prática para o trabalho em campo, previa tal momento em um plano teórico. Porém, antes mesmo da pesquisa de mestrado, quando eu ainda era aluno do curso de graduação em psicologia, já havia tido outras experiências em incursões curtas a diferentes aldeias indígenas de Rondônia e Amazonas. Entre os Karitiana, passei um pouco mais que uma semana em sua maior aldeia e, em Porto Velho (RO), em um período mais longo, mas também mais disperso, fiz entrevistas com aqueles que constantemente visitavam a cidade e ficavam quase sempre concentrados na sede da FUNAI. Esta pesquisa pretendia compreender a utilização de bebidas alcoólicas (Vianna et all, 2012), cujo alcance etnográfico foi bastante limitado. Entre os Wari’ do Vale Guaporé (RO), os Tenharim e Pirahã no Sul do Amazonas, ainda durante a graduação e antes mesmo da experiência com os Karitiana, passei rapidamente em algumas de suas aldeias em cumprimento a uma pesquisa de iniciação científica. Estes dias não me renderam mais que algumas impressões rasas e um relatório cujas limitações são bastante evidentes (Vianna & Ott, 2007). Apesar da brevidade destas experiências e me sentir na época, por isso, um neófito, devemos neste artigo considerá-las ao ler as situações que descreverei a seguir. Minha expectativa é que a partilha de minhas primeiras experiências em pesquisa etnográfica possa ser útil para um pesquisador que planeja suas primeiras incursões no trabalho de campo. 
           A pesquisa para a minha dissertação de mestrado em um plano geral, pretendia compreender uma categoria de fenômenos, as doenças baniwa; e, em um plano específico, certos adoecimentos em particular, que ocorrem há anos na escola indígena Baniwa e Curripaco (EIBC) Pamáali. Estas doenças, em um primeiro momento, eram parcas e isoladas, não configurando entre si uma ligação, mas passaram a ser frequentes e, não raramente, coletivas, pensadas pelos Baniwa como constituídas em uma única lógica causal, decorrentes de um mesmo fenômeno. A multiplicação repentina dos casos, sempre circunscritos a esta escola, logo repercutiu nas muitas comunidades3 baniwa localizadas em diversos pontos dos rios Içana, Aiari e Quiari, onde habita esse povo, mobilizando a preocupação de todos aqueles envolvidos com a EIBC e motivando uma busca por explicações que organizasse, para eles, as experiências que estavam vivenciando.
           Após um ano inteiro de sucessivas doenças entre os alunos da escola, a situação passou a ser tão preocupante que se cogitou, pelas comunidades, o fechamento da escola, vislumbrando nessa alternativa uma solução possível. Neste contexto, ápice da comoção que envolvia os adoecimentos, as lideranças da Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI)convocaram uma assembleia extraordinária da escola, tendo como motivo uma única pauta: as doenças. De acordo com um relatório desta assembleia, feito pela ACEP (Associação do Conselho da Escola Pamáali), nesta reunião com lideranças das associações indígenasque abrangem os Baniwa do médio rio Içana, os pais, professores, benzedorese assessores não indígenas da escola, se discutiu o caso, e as diferentes pessoas expressaram suas opiniões a respeito das explicações das doenças, na tentativa de criar um senso explicativo que fosse comum, para o que até então múltiplo em demasia e, por isso, ambíguo e inexplicável. Ao mesmo tempo em que as pessoas explicavam suas versões, se perguntavam o que explicaria tal fenômeno nestas configurações. A assembleia, com este intuito, criou sentidos comuns entre os presentes, ainda que não tivesse suprimido totalmente a multiplicidade explicativa, de tal modo que afastaram a possibilidade de fechamento escola, a despeito da continuidade das doenças.  
           A escola Pamáali nasceu da demanda pelo ensino fundamental completo na região do médio e alto rio Içana. Ela foi construída aos moldes de uma comunidade, no entanto, fora de qualquer uma já existente. A intenção era criar um ambiente escolar indígena adequado e comprometido com a ideia de educação diferenciada que norteava seu projeto pedagógico; buscava também um modo de assegurar a dinâmica cotidiana, sem interferências das comunidades. Suas aulas estão organizadas em etapas letivas de concentração, momento em que os alunos por dois meses convivem na escola assistindo aulas, realizando pesquisas e as demais atividades da escola; e etapas de dispersão, quando voltam para suas casas, nas comunidades, e desempenham as atividades orientadas pelos professores para este período. 
           Se há decisões importantes que tomamos na escrita, há outras tantas que antecedem a esta, este artigo trata destas decisões e também das descobertas, ainda no preâmbulo do trabalho de campo.
 Sofrimento, medo e expectativas
           Parti de São Gabriel da Cachoeira, cidade ponto de partida para as aldeias baniwa, no final de maio de 2011, rumo à escola Pamáali, em uma voadeira 7  da própria escola conduzida por Arcindo, professor da EIBC. Essa viagem durou três dias, com paradas estratégicas para o pernoite. Na primeira noite dormimos em uma comunidade baniwa do baixo rio Içana; no dia seguinte partimos ainda cedo em direção à escola, mas não chegamos neste mesmo dia, como o previsto inicialmente, e dormimos, por isso, em uma comunidade do médio rio Içana, apenas algumas horas da escola. Porém, antes de aportarmos nesta comunidade, tivemos, como todos que navegam pelo rio Içana, indo do seu ponto baixo ao médio, que parar em Tunuí Cachoeira. O sugestivo nome da comunidade é indicador, em parte, dos motivos pelos quais esta é uma parada obrigatória. Tunuí localiza-se exatamente em uma grande cachoeira e, por vários períodos do ano, qualquer um que queira transpor essas águas precisa antes desembarcar na comunidade, descarregar todas as bagagens e materiais do barco, tornando-o mais leve e seguro para enfrentar este trecho acidentado do rio. A comunidade é, assim, um ponto estratégico entre o baixo e médio rio Içana, onde aqueles que sobem o rio precisam, necessariamente, passar por Tunuí, assim como os que descem, contando com a colaboração de seus moradores para a custosa logística de atravessar as corredeiras e prosseguir viagem. Ficamos, no entanto, nesta comunidade mais do que seria necessário para descarregar o barco e transpor a cachoeira. Por iniciativa de Arcindo e Obette (outro baniwa integrante da viagem), visitamos algumas pessoas, almoçamos e encontramos, não por acaso, o professor Juvêncio, presidente da Associação Conselho da Escola Pamáali (ACEP). Ele me convidou a sentar e, após os cumprimentos iniciais, falou sem rodeios, “João você vai ter muito trabalho, as doenças voltaram”.
           Sabedor do objeto de minha pesquisa, ele passou a relatar, sem mesmo que eu tivesse solicitado, o recente caso de uma aluna que lhe parecia trazer uma preocupação especial - Marta 8 , neta de uma liderança importante da comunidade onde dormiríamos naquela noite. Ela havia adoecido e, no seu caso, os professores acharam que seria apropriada a sua recuperação em casa. Juvêncio orientou, então, que no prosseguimento de nossa viagem déssemos carona a ela até a escola, pois estando ela a uma semana em casa era provável que já tivesse se restabelecido. 
           Esta curta conversa trouxe-me várias reflexões que extrapolavam a pesquisa em si, em seus objetivos antropológicos de investigar relações diversas que envolvem o objeto estudado, e encontrava um problema grave pelo qual as pessoas estavam vivenciando e que desejavam eliminar ou, ao menos, amenizar. Ademais, na declaração de Juvêncio, veio à tona também certa expectativa de que minha pesquisa fosse, de algum modo, útil na busca para uma solução de doenças que, há muito tempo, acometem os alunos da escola. Mas essas questões que, em um primeiro momento pareciam tocar somente em reflexões pessoais (passou a me incomodar o fato de estudar doenças que para mim eram objeto de boas questões antropológicas, mas que para eles eram a causa de sofrimento e em troca, eu sabia, não poderia oferecer nenhum alento) tornavam-se, com contornos bem definidos, problemas para a pesquisa, principalmente em seu sentido metodológico. Percebi que a estratégia a ser escolhida para lidar com o delicado tema desses adoecimentos definiria o meu acesso a essas experiências. 
           Ao chegar na já citada comunidade para o pernoite, o seu capitão 9 , benzedor e avô de Marta, recepcionou-nos. Após os comprimentos ele perguntou o que eu estava fazendo no Içana. A pergunta de senhor Jarbas não foi, ao meu entender, casual, pois muito provavelmente ele já sabia o objetivo da minha viagem. Quatro meses antes desta data, nesta mesma comunidade, tive uma conversa com o seu pai, em que eu contei sobre uma futura viagem que pretendia fazer para uma pesquisa a respeito das doenças da Pamáali. Com minha resposta, contando a intenção geral da minha pesquisa, o senhor Jarbas conduziu uma longa e interessante conversa, exatamente, a respeito das doenças na escola. 
           Ele passou a contar sobre a construção da EIBC, da sua participação nela, sobre o território sagrado em que ela fora construída, sobre o que sabia das doenças e como elas surgiram. Sendo ele benzedor, ou “meio-pajé”, como me disse, contou também sobre o processo de adoecimento, esclarecendo que as doenças se tratavam, na verdade, de ataques dos Yóopinai, pois a interação com estes seres-espíritos resultavam em doenças para as pessoas, explicando-me, ainda, porque e como eles estavam atacando os alunos da escola. Sobretudo, deixou claro sua preocupação a respeito deste problema, inclusive, temendo uma possível morte decorrente da doença na escola, o que nunca havia acontecido, mas o que não era garantia, segundo ele, de que não poderia vir a acontecer. Demonstrou-me anseio para que este problema tivesse uma solução mais definitiva, todavia, não vislumbrava com otimismo um desfecho para os casos. 
           É importante registrar que ele já tinha tido algumas de suas filhas e, mais recentemente, netas que adoeceram na escola, de modo que este discurso preocupado e afetado parece dizer respeito não só ao problema da Pamáali, enquanto coletivo, mas também pessoal, pois havia um histórico de vários casos em sua família. A despeito disso, ele pouco falou da doença em sua neta, ou familiares, limitando-se a dizer que Marta ainda não estava completamente curada, mas que mesmo assim iria para escola para não perder mais aulas e aproveitar a nossa carona; caso a doença voltasse, ela também voltaria para casa e receberia benzimento e tratamento, que ele mesmo administraria. Apesar de querer falar sobre o assunto, narrando vários aspectos do fenômeno, queria saber também, assim como Juvêncio, o que, afinal de contas, eu faria com o que eu descobrisse em minha pesquisa, perguntando-me, “Então João, falando sobre isso, eu vou fazer uma pergunta, você vai lá procurar saber a situação do problema, e depois, como vai ser o trabalho, mais ou menos pra ajudar lá, como é, pensando assim?”. 
           Antes de expor minhas reflexões, que naquela altura se encontravam com aquelas suscitadas pelo encontro com Juvêncio, devo dizer que me recordei, imediatamente, com o questionamento do capitão, da conversa que tive com seu pai, meses atrás. Este havia feito uma inquirição ainda mais incisiva, revelando uma opinião questionadora a respeito dos resultados que eu alcançaria em minha pesquisa. Ele, ao indagar sobre que trabalho eu faria na região e, após eu ter respondido que pretendia entender as doenças que ocorriam na Pamáali, não hesitou em me questionar, perguntando se, por algum acaso, eu era meio pajé para querer saber dessas coisas. Minha óbvia negativa preparou o terreno para que ele arrematasse seu argumento, dizendo que apesar de não querer me desanimar no trabalho que eu pretendia realizar, isso tudo seria muito complicado para mim. 
           Refleti bastante a respeito deste episódio. Em um primeiro momento, especulei que ele estivesse entendendo, talvez por saber que sou psicólogo e, portanto, profissional da saúde, que eu tentaria tratar as pessoas, imaginando as implicações que se desdobrariam disto. Esquivando-me desta indagação passei a ler o questionamento desta importante liderança baniwa não como uma recusa ou resistência a minha intenção de compreender os casos na escola Pamáali, mas como um alerta para guiar o meu espírito em lidar com as experiências ligadas a estas doenças. O que de fato me preparou para os eventos que viria a seguir. 
           Os questionamentos, dúvidas e perguntas de Juvêncio, do avô e do bisavô de Marta, aluna para quem demos carona, me informavam a natureza do problema que eu investigaria a frente, que não era para eles, os Baniwa, uma problemática de pesquisa, e logo não poderia ser assim para mim também, unicamente. A relação com o objeto estudado exigia uma cautela que não simplesmente metodológica. Portanto, eu obrigava-me, ao mesmo tempo em que eles me obrigavam, a compreender que este não era apenas um problema de pesquisa. Entender as doenças para os Baniwa implicava em um conjunto de questões capazes de mobilizar, entre outras coisas, sofrimento e medo. Entendia assim que eu, ao querer compreender na pesquisa estas doenças, deveria levar exatamente todos estes aspectos em consideração. Primeiro, por uma questão humana, ou em outros termos ética; e, em seguida, por uma questão metodológica, ao pensar em estratégias de acesso a esse conjunto de experiências delicadas e mobilizadoras de afetos que eu não tinha qualquer controle. Desta forma, pretendo deixar claro que o tema foi, na pesquisa de campo, tratado sempre com cautela, afinal, estas doenças não somente produziam dores, em sua faceta física, mas eram também ameaçadoras da existência humana destas pessoas. 
           Na escola, algumas das alunas que já haviam adoecido não quiseram falar comigo sobre o assunto, o que foi, por exemplo, o caso de Marta. Ela, em específico, não trocou sequer uma palavra comigo a respeito de qualquer assunto durante todo o período em que estive na escola Pamáali. Os motivos deste silêncio não se esclareceram completamente. Outras alunas falaram, todavia, censurando determinados conteúdos que eram, de algum modo, proibidos, e não só para mim, mas para qualquer um, fosse baniwa ou não. Os colegas das alunas que estavam doentes ou que já haviam adoecido e tinham, por isso, alguma informação a respeito das doenças falavam também com certas restrições. Estas eram questões que eu não entendia em detalhes, mas em um plano amplo, compreendia se tratar de coisas que eu não podia, simplesmente, ter acesso. 
           Dessa maneira, tive que lidar, ao longo da pesquisa, com as dimensões do medo e do não dito, efetuando passos que eu sabia serem seguros para mim, enquanto pesquisador, e para eles, enquanto pessoas que podiam ver-se ameaçadas por forças/seres que eu desconheço, e que, ainda que os tenha apreendido em algum nível, provavelmente intelectual, continuarei desconhecendo. Este era o alerta do bisavô de Marta que me serviu de guia e controle durante todo o trabalho, tanto em campo quanto na escrita.
           Sob estas circunstâncias e expectativas o trabalho de campo ocorreu em duas etapas, a primeira, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2011, resultando em aproximadamente 20 dias percorrendo comunidades do rio Içana, indo do seu ponto baixo ao alto, quando conversei com pais de alunos, lideranças comunitárias, velhos benzedores, professores da escola e assessores não indígenas da escola Pamáali. O objetivo desta incursão era fazer uma sondagem preliminar a pesquisa de campo mais prolongada, no intuito de produzir um primeiro conjunto de informações que me proporcionasse fundamentos para elaborar um plano para o trabalho de campo. Em um segundo momento, entre os meses de maio e junho deste mesmo ano, convivi por 30 dias com alunos e professores na escola Pamáali, período de tempo que correspondeu à metade da etapa letiva de concentração. Em seguida, passei 15 dias viajando por comunidades baniwa do rio Içana, em uma trajetória que seguiu o caminho da volta da escola, descendo o rio até chegar à cidade de São Gabriel da Cachoeira, fazendo novas entrevistas com velhos e benzedores, lideranças comunitárias, pais de alunos, com ex-alunos e alunos que, então, já me conheciam. Posteriormente, retornei ao rio Içana, no mês de janeiro de 2012, nestes dias tive a oportunidade de tirar dúvidas, a respeito de questões que haviam ficado em aberto.
           Houve ainda períodos que passei na cidade de São Gabriel da Cachoeira, difíceis de quantificar, em que pude conversar com professores e assessores da escola. Estas experiências na cidade foram importantes para a minha pesquisa, pois alguns dos professores moram na cidade e assim consegui acompanhar as doenças na Pamáali mesmo após meu trabalho mais prolongado na escola Pamáali. 



 

Contra a parede

          Descrevi até o momento algumas das dificuldades que o campo etnográfico apresentou, tal como lidar com temas delicados que podiam provocar nos entrevistados receio, sofrimento e medo. Espero agora adentrar com um pouco mais de profundidade nisso. Todavia, é importante dizer que essas dificuldades são relativas, pois elas não se mostraram assim o tempo todo no trabalho de campo, como, por exemplo, nas conversas com os professores, benzedores e pais de alunos. Estes, ao contrário dos que adoeciam ou que eram potencialmente doentes, gostavam de falar sobre os casos, discorrendo sobre o assunto longamente. Esta impressão esteve presente em mim durante todas as conversas que estabeleci a esse respeito com essas pessoas, o que não significava, entretanto, ausência de preocupação, mas o fato é que estavam sempre dispostos a falar sobre o tema, dedicando-se a entender o fenômeno, especulando associações e relações em um exercício que certa vez Alfredo, professor e então coordenador da escola Pamáali, qualificou como filosófico. Era exatamente este o tom das nossas conversas, detinham-se, sobretudo, a entender a natureza dos yóopinai,seres que comumente não se vê, a não ser os pajés, e que segundos os velhos assumem formas diversas, como as de animais, insetos e pedras, mas que em seu próprio mundo são gente como nós. Esta explicação, longe de elucidar tudo sobre estes seres-espíritos, foi objeto de muitas conversas, pois eles também, de certa forma, queriam entender o que era ou quem eram eles e quais eram os seus mecanismos para atacar os humanos. 
           Fui convidado pelos professores, no mesmo dia em que cheguei à escola, a apresentar meu projeto de pesquisa. Uma prévia escrita já havia sido enviada anteriormente. Esta apresentação ocorreu na casa da administração da escola, durante a noite, ocasião em que os professores se reuniam praticamente todos os dias para tratar de assuntos diversos, indo das questões pedagógicas e disciplinares às administrativas. A apresentação em si foi extrapolada por uma interessante conversa à moda de uma mesa redonda em que todos os professores expressaram suas opiniões a respeito dos casos. Ao invés da reunião se restringir a uma sabatina sobre as minhas intenções na escola, o que em alguma medida ocorreu também, o tom da conversa ao longo da minha apresentação assumiu o caráter de uma discussão em grupo, em que eu ia apresentando questões e eles me esclarecendo. Mas era mais que isso, pois eles faziam, uns para os outros, questões também, de modo que tive acessos às dúvidas e aos questionamentos que eles tinham para si mesmos, questões que eu, um não baniwa, não poderia ter. Esse encontro me possibilitou acesso às explicações e impressões dos professores que discutiam e construíam, a minha frente, consensos e desacordos.
           O sucesso desta reunião, para mim e para eles, fez como que ela não fosse a única, sendo a primeira de outras que se seguiram e que quase de imediato tomou um formato específico em uma sistemática própria. Ao fim do dia, por volta das 19hs, por pelos menos três vezes na semana, eu ia à secretaria da escola e encontrava a todos os professores me esperando e, então, conversávamos sobre as doenças. Eles me explicavam o que sabiam, discutiam entre si o que pensavam e, por outro lado, eu ia perguntando deles questões e esclarecendo dúvidas, e também respondendo as questões que eles me faziam sobre as minhas impressões a respeito dos casos da doença que eu passei a acompanhar e das conversas que a esta altura eu tinha com os alunos. Esta sistemática aconteceu não só por uma iniciativa minha, mas também dos próprios professores. No entanto, quando ela começava a se estabelecer e cujas engrenagens pareciam estar bem encaixadas foi extinta pelos professores e as conversas sobre o assunto passaram a ganhar outros formatos.  
           Com os alunos e alunas, devidas as já elencadas dificuldades, o percurso foi mais longo até encontrar uma estratégia mais adequada. Fiz inicialmente tentativas de conversas e entrevistas individuais, o que se mostrou inadequado para o tema das doenças; eles não ficavam a vontade, e a isto se somava a dificuldade deles com o português. Todos os alunos são pelo menos bilíngues, mas a fluência do português encontrou no assunto das doenças um limite 10 . Passei, por isso, a contar com a ajuda e tradução de Abílio Julio, um amigo baniwa que foi aluno da escola Pamáali e que na época do trabalho de campo era membro da equipe docente. Além disso, passei a fazer entrevistas que não eram individuais, reunindo os alunos em grupos, com intuito dos meninos e meninas se sentirem mais seguros para falar.
           A doença é em seu aspecto manifesto uma crise em que a pessoa desmaia e passa, então, a contorcer-se, chorar e balbuciar palavras. Este estado exige dos colegas do doente uma contenção constante, contra a possibilidade da pessoa correr para o mato e perder-se. Explicaram-me os Baniwa que a pessoa em crise comporta-se assim, porque teve sua alma capturada pelos espíritos-yóopinai que a levaram para o mundo subterrâneo dele. A alma lá é corpo e por isso vive analogamente ao modo como se vive no mundo humano. Os doentes capturados são capazes de descrever detalhadamente o mundo de “lá” que não é muito diferente do mundo de “cá”, os espíritos vivem em malocas e tem aparência humana. Enquanto isso, o corpo verdadeiramente humano está deitado em uma rede debatendo-se no mundo humano e recebendo a atenção e a contenção dos alunos da escola. 
           A primeira conversa sobre o assunto que tive com os alunos, especificamente os homens, ocorreu após acompanhar com eles a um destes casos de uma aluna doente, noite adentro, participando da contenção. Minha presença no alojamento da aluna doente no momento do ataque dos yóopinai e minha participação em seu cuidado operou a primeira abertura em que eles se dispuseram a conversar comigo sobre as doenças. Combinei, então, com dois deles, para o outro dia, uma conversa, e disse que se quisessem poderiam chamar outros colegas. Cumprindo o combinado, no outro dia, os dois foram ao meu encontro trazendo colegas e fizemos, então, a primeira conversa em que eles me contaram sobre o que sabiam e sobre o que tinha acontecido na noite anterior com Simone. Antes, porém, a nossa reunião passou por certa tensão que não parecia ser somente minha, mas também dos jovens alunos, ainda muito desconfiados comigo e meus interesses de pesquisa. No início da conversa ainda, perguntaram-me porque eles deveriam contar o que sabiam para mim, porque eu gostaria de saber destas coisas e, mais, como eu poderia ajudá-los? Esta conversa foi gravada por mim, transcrita e traduzida por Abílio, que cito a seguir:
Ernesto: Mas, porque será que existem esses tempos aonde ataca mais e em outras épocas não ataca muito? Por que vejo, que tem as etapas que o ataque da doença é bastante, e já nas outras etapas não é tanto. Por exemplo, no início da etapa, a doença não ataca, mas chegando ao final da etapa a doença ataca mais. Como está acontecendo atualmente, nessa etapa. Mas, como isso poderia melhorar através dessa pesquisa que ele [João] está fazendo? Como ele poderá nos ajudar a solucionar esse problema? [Notem que a pergunta é para Abílio que fazia no momento uma tradução simultânea para mim]
 João Vianna: Bom, é uma boa pergunta mesmo. Porque, quando vim para cá, minha ideia inicial era fazer um trabalho tentando descobrir coisas a respeito da doença, pois não vim solucionar o problema. Pelo o que eu vejo este é um problema que somente especialistas como os pajés e benzedores poderão resolver. Então, sou psicólogo, talvez vocês não saibam como que a psicologia funciona para gente na cidade. Um psicólogo é uma espécie de benzedor dos brancos, mas que não usam medicamentos. O nosso trabalho, como psicólogo é feito através de conversas, orientações e aconselhamento. Na medida em que a gente vai conversando, vai entendendo o problema e ajudando. Mas não sei se isso funciona aqui. Pode ser que funcione lá e pode ser  que não funcione aqui. Por isso, penso que a primeira atividade feita a respeito de doenças que posso fazer é reunir informações ao máximo que eu puder e, então, devolver para vocês. E aí a gente pode pensar juntos, o que fazer com essas informações. 
           Fui neste momento, como no encontro com o bisavô e avô de Marta e também com Juvêncio, confrontado, o que não se reverteu em uma recusa deles ao meu trabalho, mas o que poderia assim ter acontecido. Após este encontro eu tive a sensação de ter sido aprovado em uma espécie de teste. Imaginava aqui que o fato de saberem que eu era psicólogo, profissional que ligado ao serviço de saúde dos Brancos, criava certas expectativas, de tal modo que logo após o diálogo acima, perguntaram-me se para as doenças que ocorriam na escola havia cura e medicamentos próprios, respondi que não, pelo menos não nos remédios e curas dos brancos. 
           Minhas respostas, mesmo que frustrando algumas das expectativas deles em relação a mim e a um conhecimento que talvez eu representasse, funcionaram como um dispositivo que os “desarmaram”. Os alunos demonstraram-se mais a vontade, abrindo possibilidades para outras conversas que, como esta primeira, eram sempre coletivas, contando em média com a participação de seis alunos que nem sempre eram os mesmos. Desde então, os alunos demonstraram disposição para falar comigo, o que antes não ocorria, e estas conversas passaram a ser um recurso interessante de acesso às experiências dos alunos. Os encontros com as meninas seguiram o mesmo modelo das conversas com os meninos, uma vez que elas com sutileza se recusaram a conversar individualmente, de modo que a experiência de conversas coletivas, mediadas e traduzidas por Abílio, se mostrou uma estratégia importante, principalmente por ser, naquele momento, a única possível.
           Nos encontros com os alunos e alunas, diferentemente do dos professores, as reuniões tinham mais um caráter de entrevista do que de discussão. Os professores não se viam como entrevistados na maior parte do tempo e, por isso, não esperavam por minhas questões, e ainda que eu fizesse algumas perguntas com intuito de desencadear um debate, eles é que conduziam o encontro relegando a mim o espaço de um observador externo. Os meninos, por sua vez, assumiram uma posição mais próxima a de entrevistados, esperando por minhas questões, mas, assim como os professores, refletiam durante o encontro com seus colegas, discutindo entre si as questões colocadas durante a nossa reunião. Ao final dos encontros eles já se sentiam à vontade para fazer questões a mim, perguntando se problemas como os deles aconteciam entre os Brancos também, indagando quais eram os significados de certos aspectos da minha cultura, produzindo questões parecidas com as que eu fazia para eles. As meninas, porém, esperavam por minhas perguntas, respondendo-as mais objetivamente.
           Outra diferença importante contida entre os encontros com os professores e com os alunos é que com os primeiros as conversas assumiam um ponto de vista mais analítico, desencarnado, em nome do coletivo Baniwa, ou seja, a discussão girava em torno de termos mais abstratos ou filosóficos, como disse Alfredo. Não havia entre eles nenhum relato pessoal ou mesmo de um caso em específico. Em contrapartida, entre os alunos, haviam muitos relatos pessoais, descrevendo detalhadamente experiências suas ou de colegas próximos, discutindo os adoecimentos em um plano mais concreto e encarnado. Por sua vez, as meninas, mais ainda do que os meninos, focavam em casos, principalmente nos que lhes haviam acontecido, em depoimentos ricos e detalhados. Estas conversas, porém, eram mais delicadas, pois quase tudo o que falavam tratava de acontecimentos recentes que pareciam pertencer a uma ordem ainda muito perigosa para se comentar livremente.
Nativos? Ensaios de uma tradução antropológica reversa
            Quero chamar atenção agora para as pessoas com as quais e entre as quais eu fiz a pesquisa etnográfica. Para isso, devo destacar, antes, aspectos importantes que compõe o contexto mais amplo onde estão situados os Baniwa, região conhecida como Alto Rio Negro, Noroeste Amazônico. Esta paisagem etnográfica é formada por aproximadamente 23 diferentes povos indígenas que, falantes de línguas das famílias Tukano Oriental, Arawak, Maku e Yanomami, têm suas terras acessadas a partir da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Com 37.860 habitantes, sendo estimado que mais da metade da população seja de indígenas, este município é único no Brasil, entre outras coisas, por ter três línguas oficiais que além do português são: o baniwa, tukano e nheengatu. E também por ter tido, até o ano passado, a frente de sua estrutura política executiva municipal, prefeito e vice-prefeito indígenas (IBGE, 2010).
            Estas especificidades cravadas em dispositivos oficiais do estado brasileiro são algumas das conquistas do movimento indígena desta região que, organizado em diversas associações ligadas a FOIRN, desempenhou, principalmente na década de 90, um papel crucial na luta para a demarcação de terras indígenas, buscando também, desde sua criação, maneiras de pressionar as esferas públicas competentes para que as comunidades tivessem acesso à educação escolar e aos serviços de saúde. Vale ressaltar que este movimento indígena liderado pelas associações e FOIRN contou e conta até hoje com o apoio de organizações não governamentais (ONGs) estrangeiras e brasileiras, que financiam desde a fundação suas atividades e também as assessorando para assuntos técnicos e administrativos. 
           Atualmente a pauta de atuação do movimento indígena se concentra na manutenção e expansão destas conquistas e no fomento de projetos de desenvolvimento sustentável para as comunidades. A escola Pamáali é fruto exatamente desta última política de incremento das possibilidades de formação escolar, que favorece o bem estar das pessoas, ao permitir uma escolarização adaptada à realidade indígena e acessível às comunidades.
            Diante deste contexto, preenchido por associações indígenas bem sucedidas, diferentes ONGs e projetos de desenvolvimento sustentável, fazer trabalho de campo no Noroeste Amazônico é lidar, muitas vezes, com “nativos” que tem larga experiência no movimento indígena, no desenvolvimento de projetos e na relação com os não índios. Nesse sentido, os povos desta região da Amazônia têm acumulado larga experiência no estabelecimento de relações com os Brancos 11 , desde o passado em que estes eram principalmente comerciantes exploradores de seu trabalho (os patrões), garimpeiros e regatões; e que mais recentemente são militares, missionários, enfermeiros, indigenistas ligados a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a ONGs, e pesquisadores de diversas áreas. Nesse sentido, estes povos, demonstram uma grande capacidade em domesticar os Brancos e, como não poderia ser diferente, esse processo se reproduz também nas relações de pesquisa e os pesquisadores. Não só isso, os “nativos” aqui têm acesso à educação escolar básica, superior e em alguns casos - poucos, mas existentes - também a pós-graduação, exercendo funções importantes, exigentes desta formação, tanto na cidade quanto nas comunidades. 
            Nesse sentido, a escola Pamáali maximiza vários destes aspectos, pois ela concentra em seu corpo docente pessoas baniwa de destaque não só por competência em docência, mas também na condução e administração de projetos que a EIBC vincula, como o de psicicultura, o de produção de pimenta e outros. Ademais, esta escola exige de seus professores uma habilidade política, na medida em que ela se tornou uma importante referência no rio Içana no que toca ao movimento indígena relacionado às questões escolares. A EIBC Pamáali ganhou uma importância que extrapola a si mesma, o que se objetifica na Rede de Escola Baniwa/Coripaco que interliga todas as escolas indígenas da região do rio Içana. 
            Descreverei agora uma situação que sinaliza para a presença destes intelectuais indígenas, caracterizando o contexto no qual esta pesquisa foi realizada. Três meses antes de eu ir a escola em trabalho de campo encontrei Juvêncio e Raimundo, ambos professores da EIBC, que estavam em Manaus. A ideia de encontrá-los era discutir minha entrada na escola e fazer uma apresentação informal do meu projeto. Conversamos brevemente sobre as doenças da escola, eles me deram um quadro geral do fenômeno em questão, explicando-me como eram as doenças e o porquê de seu acontecimento. Ponderaram diversas possibilidades, mas destacaram duas explicações, uma ligada ao fato da escola ter sido construída em cima da maloca dos yóopinai e outra decorrente de sopro/feitiço efetuado por outro povo, invejoso do sucesso da escola Pamáali. Mas foram além e disseram que provavelmente estas duas explicações estavam envolvidas e não eram excludentes entre si. 
            A esta altura eu percebia a centralidade que os yóopinai ganhavam para entender o que ocorria na escola, porém, mesmo conhecendo a literatura baniwa, tinha muitas dúvidas e passei a perguntar mais sobre como esses seres atacavam as pessoas doentes. Os professores, então, responderam-me, dando um exemplo: - “quando uma pessoa tem um sonho erótico, ela, ao acordar, se torna mais visível aos yóopinai e eles podem, porque conseguem ver, atacar esta pessoa”. Diziam-me que as pessoas deveriam preservar algo como uma invisibilidade para eles. Percebi, então, que a noção de visibilidade/invisibilidade era importante para entender o que eles estavam me contando. 
            Notava, para além destas questões, que os professores articulavam muito bem os saberes, dominando bem o português e o mundo Branco, mas sem deixar de lado o mundo Baniwa; não hesitavam, por exemplo, em revelar as teorias indígenas e embarcavam profundamente nestas explicações. Diante disso, me senti a vontade, mesmo em um primeiro encontro, para testar com eles hipóteses e dúvidas que eu havia elaborado a partir da pesquisa bibliográfica na literatura. Nestes textos, e com a ansiedade de um principiante para explicar os fenômenos, encontrei o que seriam duas possibilidades para compreender as doenças causadas pelos Yóopinai: a primeira mencionava que eles atacavam deliberadamente os humanos, seus inimigos, ou seja, há a intenção destes seres em fazer mal para as pessoas; a segunda explicação acenava para o fato de que eles, na verdade, somente brincam com as pessoas, mas ocorre que essa brincadeira para os humanos é sentida como um ataque. 
            Os dois professores ouviram com atenção minha questão que foi colocada exatamente nestes termos e, então, Juvêncio tomou a palavra dizendo-me que certa vez tinha lido um antropólogo, neste momento ele hesitou um instante, como se buscasse na memória um nome que por um lapso fora esquecido, mas não demorou em recordar e desferiu: - “ah é o Eduardo Viveiros de Castro” 12 . Completou comentando que minha pergunta o fez lembrar o artigo que ele tinha lido sobre a teoria do perspectivismo ameríndio. Seu comentário me deixou completamente surpreendido, pois podia imaginar uma gama muito variada de respostas, desde “peripécias mitológicas” a um simples “não sei”, menos que ele identificasse um dos fundamentos da minha questão. Este episódio revelou para mim que os nativos da Pamáali, conhecem bem o trabalho dos pesquisadores e, pelo menos no caso de Juvêncio, o dos antropólogos, reconhecendo, inclusive, suas premissas teóricas.
           Ele prosseguiu desenvolvendo a questão, disse que não sabia ao certo a resposta para a minha pergunta, ainda que ela, em um primeiro momento, para ele, parecesse fazer muito sentido, justificou que quem sabem essas histórias são os velhos. Passou, a partir daí, a fazer questões também, pois, segundo ele, ouviu dos velhos que algumas pedras são Yóopinai, como as que têm no porto da EIBC nas margens do rio Içana, mas ele não sabia exatamente o que os velhos queriam dizer com isso; se eles dizem com isso que ali vivem estes seres ou se as pedras são mesmo Yóopinai que visualizam os humanos de um jeito e veem a si próprias como gente humana. 
            Com intuito de fazer exemplificar sua explicação Juvêncio contou que a piracema dos peixes demonstrava o que ele queria dizer, pois quando vemos os peixes nessas ocasiões, subindo o rio e pulando nas cachoeiras, na verdade, em seu mundo, eles estão a fazer festa, é como se fosse o pódaali 13 : - “A piracema é o pódaali dos peixes”. Se Juvêncio não é especialista em yóopinai e doenças, ele o é em peixes, por mais de uma perspectiva, ele é o responsável na Pamáali pela estação de psicicultura, e também para ensinar aos alunos manejar os peixes, tanto do ponto de vista dos projetos em segurança alimentar quanto da cultura baniwa. Ilustra esta situação as seguintes imagens, produzidas pelos alunos da escola Pamáali, orientadas por este professor. 



            A primeira imagem representa a perspectiva dos peixes que por este ângulo são pessoas humanas; na segunda imagem, visualizamos um recurso que mistura formas, em peixes antropomorfizados, com a intenção de indicar ao mesmo tempo as duas perspectivas. De um lado, peixes, pois assim eles são vistos pelos humanos (e de algum modo é assim que eles são de verdade) e, do outro lado, gente, pois é desta maneira que eles veem a si próprios, com destaque para o fato de que não se atribuiu a eles somente formas físicas humanas, mas também culturais - ambas as figuras demonstram os peixes fazendo festa, dançando e tocando flautas.
            Apesar dos professores serem intelectuais, eles são de um tipo específico e, nesse sentido, não são especialistas baniwa, tais como pajés e benzedores. Eles possuem habilidades importantes para as funções que exercem, elaborando um saber capaz de articular mundos diferentes, atuando neles simultaneamente, mas não são as principais referências no que toca as doenças e seu conhecimento correlacionado. Então, se por um lado, esta pesquisa se beneficiou deste campo preenchido por intelectuais indígenas “modernos”, tendo acesso a traduções de novos tipos, por outro, trabalhou com um conjunto de informações sobre doenças que é preponderantemente do senso comum baniwa. Conversei com alguns velhos, donos de cânticos, especialistas no conhecimento sobre as doenças, mas a pesquisa não tinha nestas informações especializadas o único foco. Interessava saber também, como os professores, alunos e pais elaboravam e eram atingidos pelos fenômenos que estavam a ocorrer na Pamáali.
            Ainda sobre minha relação com os Baniwa da escola Pamáali, é importante registrar que a tradução, tanto antropológica quanto linguística, ganhou uma atenção especial e foi objeto de reflexões durante todo o trabalho. Isso porque parte das entrevistas da pesquisa necessitaram de tradução simultânea. Abílio, nesse sentido, desempenhou um papel importante na pesquisa, não somente porque foi um bom tradutor, mas porque não se limitou a isso. Em conversas que tínhamos sobre as doenças provocadas pelos yóopinai, ele indagava-se sobre o fenômeno que acometia a escola, experimentando explicações e entendimentos. Com este mesmo tom ele adotou espontaneamente uma postura ativa nas entrevistas, demonstrando que, por motivos diferentes dos meus, se interessava também em entender as questões em torno dos desmaios e ataques de espíritos na Pamáali. Em diferentes momentos das entrevistas ele realizava perguntas aos entrevistados que eram suas em uma busca pessoal e/ou coletiva, mas que absolutamente não eram minhas.
Em nenhum momento compreendi tal postura como problemática, ao contrário, com o tempo passei a vislumbrar nesta atuação perspectivas interessantes para a pesquisa. Hoje, retrospectivamente, percebo com mais clareza que esta relação estabelecida com Abílio não somente possibilitou um acesso facilitado às experiências de adoecimento entre os alunos que já haviam adoecido, mas também, não menos importante, um acesso diferenciado a elas.  
           Mas Abílio não somente fez traduções simultâneas durante as entrevistas com os alunos, acima descritas, como também fez a transcrição dos seus registros em áudio, traduzindo-as. Nesse sentido, chamou-me à atenção, já em uma primeira leitura das transcrições, principalmente nas entrevistas realizadas com os velhos conhecedores baniwa, termos que me pareciam muito distante do modo como eles se refeririam a certas questões. Por exemplo, Abílio traduziu para mim o processo em que uma pessoa fica doente por causa dos yóopinai, como uma “infecção”. Assim, li em suas transcrições frase como, “a aluna foi infectada”, o que em outros momentos era mencionado como um ataque de espíritos. 
            Tive a oportunidade de conversar com Abílio em São Gabriel da Cachoeira, e também pela internet, após receber estas traduções transcritas. Perguntei a ele o que os velhos estavam dizendo literalmente pelo o que ele nomeou de ‘infecção’. Respondeu-me, então, que não há uma tradução literal para o que estavam dizendo, talvez fosse possível dizer, com as palavras dos velhos, que os Yóopinai estavam atacando ou pegando as meninas, mas isso em si não traduziria, para ele, o processo mais complexo que estava implicado. Uma vez que por infecção Abílio queria informar uma espécie de estado que se estabelece a partir deste ataque, algo como uma contaminação, que cria uma condição que deixa a pessoa mais suscetível, indeterminadamente, a outros ataques destes seres. A ideia de uma infecção dos Yóopinai, mesmo não sendo um termo nativo, descreve bem, do ponto de vista do tradutor, o que ocorre, conferindo a este processo uma característica de permanência da doença, que só o ataque não atribui. E assim ele me convenceu de que esta era uma boa palavra para definir o que acontecia nas pessoas doentes. 

Conclusão

           O caráter etnográfico deste artigo pretendeu trazer à tona, em uma rede cujas pontas não se fecham necessariamente, algumas das questões que a pesquisa de campo pode revelar ao pesquisador que, inexperiente, não imaginaria lidar. Revelar os problemas, as dificuldades e os acertos - estes últimos desde que nesta rede de elementos heterogêneos - dentro das descrições etnográficas pode cumprir um papel importante, na medida em que demonstra a operação do próprio antropólogo e sua inclusão como um dos termos nas relações que ele descreve. O sucesso das experiências etnográficas parece mais facilmente obscurecer o antropólogo do que as dificuldades. Por consequência, não imaginar somente os acertos da pesquisa suspende a força imperativa das entidades - como o social, a sociedade, a cultura e os sistemas.
           A sugestão deste deslocamento torce nosso olhar e permite imaginar que, por exemplo, os povos indígenas podem ler os mesmos textos da bibliografia do antropólogo, assim como o próprio trabalho do antropólogo sobre o qual eles são pensados. Sobre isso ver o trabalho de João Rivelino, índio tukano e mestre em antropologia social, cuja dissertação tratou de um olhar tukano a respeito da literatura sobre os Tukano no que toca sua organização social (Barreto, J., 2012). Ou ainda, como fez Abílio para mim, ao ler meus trabalhos sobre os Baniwa e comentá-los. Do mesmo modo que nós refletimos sobre eles, podemos imaginar também que, em reverso, eles refletem sobre nós. Se nem sempre fazem teses escritas a respeito destas reflexões sobre nós, eles nos objetificam de outras maneiras que muitas vezes não percebemos, em parte porque estamos preocupados demais em colocá-los no lugar inerte dos objetos (Wagner, 2010).
            Imaginar tal virada teórica traz simultaneamente uma virada da percepção do antropólogo em reformulações que, por um lado, evidenciam os limites do modo como produzimos conhecimento e que, por outro, projetam novas possibilidades e permitem novas relações, sejam elas abstratas em um âmbito teórico, mas também concretas em um âmbito interpessoal. O alcance dos limites permite  vislumbrar novas possibilidades.  
            Espero, entre outras coisas, com este trabalho, ter deixado evidente que os meus “nativos” não são objetos, não são passivos e, muito menos, desprovidos de reflexão, são, portanto, interlocutores e também, alguns deles, meus amigos. Eles não somente traduzem entrevistas e me ensinam a língua baniwa, mas me ensinam o português, ao conferir novos sentidos para termos estabilizados da minha língua materna. E ainda me revelam, a contra gosto, meus fundamentos teóricos, desmascarando meus artifícios analíticos. Nesta dinamização das relações, ou pelo menos no modo de descrevê-las, alguns binarismos passam a ser repensados nos oferecendo não somente novos olhares e experiências, mas novas imaginações. Se, então, os nativos não estão mais presos na posição apática ao qual foram por muito tempo encaixados nos trabalhos antropológicos, o antropólogo enquanto sujeito/analista também não, podendo gritar por sua liberação de uma posição ativa, obliteradora tanto das outras atividades de outros sujeitos, quanto da sua própria “passividade” e da sua posição de objeto. O antropólogo não é o senhor de sua pesquisa de campo e saber disso talvez faça ele lidar melhor com as ambiguidades de suas próprias intenções e ações, tomando mesmo, em alguma medida, consciência delas. 
            Realizar um trabalho etnográfico levando em conta outrem, reconhecendo sua capacidade reflexiva, sua capacidade de interlocução pode ser ao mesmo tempo o efeito do que se espera e a causa para o que se pretende. Compreender nativos ativos, reflexivos e potencialmente amigos pode fazer alguma diferença na pesquisa que ainda virá. O resultado neste ponto se antecipa. Imaginar primeiramente uma tese ou uma escrita capaz de absorver todos estes aspectos, como causa, o que seria pretensamente o resultado final, pode provocar um efeito interessante: uma determinada pesquisa etnográfica. Um movimento de antecipação, a tese (efeito) que vem antes da pesquisa (causa) ou então uma tese (causa) que produz uma pesquisa (efeito). Isso, levado a sério, têm implicações para as relações que envolvem o antropólogo na convivência pessoal com seus interlocutores, ainda que por um tempo limitado, e na partilha existencial de uma vida com eles, esta provavelmente muito mais duradoura.


Referências


BARRETO, J. R. R. Formação e Transformação de Coletivos Indígenas do Noroeste Amazônico: do mito à sociologia das comunidade, Dissertação de Mestrado, PPGAS/Ufam, 2012 (mimeo).

HILL, Jonathan. Cosmology and Situation of Contact in Upper Rio Negro Basin. In: Turner,Terence (ed.). South American Studies: Cosmology, Values and Inter-Ethnic Contact in South America, 2:42-51, 1993.

VIANNA, João & OTT, Ari. Agentes indígenas de saúde no DSEI Porto Velho: um estudo etnográfico. Pesquisa e Criação, 2007.

VIANNA, J. J. B., Cedaro, J. J., & Ott, A. M. T. Aspectos psicológicos na utilização de bebidas alcoólicas entre os Karitiana. Psicologia & Sociedade, 24(1), 94-103. 2012. 

VIANNA, João. De volta ao caos primordial. Alteridade, indiferenciação e adoecimento entre os Baniwa. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2012a. 

________. Eu, nativo, nós, Ialanawi. Reflexões baniwa sobre a alteridade branca. Cadernos de campo, n. 21, 2012b. 

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010 [1981].

WRIGHT, Robin. Os Guardiões do Cosmos: Pajés e Projetas entre os Baniwa, In: Langdon, Esther Jean. (org.).  Xamanismo no Brasil. Novas Perspectivas. pg. 75-116. Florianópolis:Ed. UFSC,1996.
____________. Ialanawinai. O branco na história e mito Baniwa. In. Ramos, Alcida & Albert, Bruce (Orgs.). Pacificando o branco. Cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Editora UNESP, 2000. p 431 – 468.

 

Notas

1  Agradeço aos comentários e críticas de Marina Monteiro e Nicole Soares-Pinto às versões que deram origem a este texto.
2  Pesquisa apoiada pelo Projeto Saúde e Condições de Vida de Povos Indígenas na Amazônia, Programa de Apoio a Núcleos de Excelência – PRONEX/FAPEAM/CNPq, Edital 003/2009.
3  Os Baniwa denominam seus grupos ou assentamentos familiares, localizados às margens do Içana e de seus afluentes como ‘comunidades’ ao invés de aldeias, a denominação, talvez, mais comum para muitos povos indígenas do Brasil.
4  OIBI é a associação indígena Baniwa que atua na região do médio rio Içana, localização onde se situa a escola Pamáali.
5  Mais de uma associação, além da OIBI, já citada, atuam entre os Baniwa do médio rio Içana. Em seu plano maior está a FOIRN, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, que se desdobra em diferentes coordenadorias abrangentes de todo o Noroeste Amazônico. A CABC, Coordenadoria das Associações Baniwa e Coripaco, é a responsável por articular o movimento indígena nas distintas associações que estão presentes nas comunidades da bacia do Içana e afluentes. Para cada instituição desta há representantes eleitos, conhecidos na região como lideranças indígenas. Eles que, em sua figura política, são: os presidentes, no caso das associações locais; coordenador no caso da CABC; ou diretor, na representação Baniwa dentro da FOIRN. 
6  Os ‘benzedores’ é o modo como hoje comumente são chamados os ‘donos de cânticos’, de tal modo que os dois termos utilizados durante o trabalho remeterão ao mesmo especialista. É um especialista capaz de realizar orações cantadas, ou “rezas” enunciados em momentos rituais importantes, como o pós-parto, o ritual de iniciação masculina, ritos de cura e outros eventos ligados aos ciclo produtivos da sociedade (Wright, 1996).
7  Voadeira é o termo utilizado comumente, nesta região, para designar um barco de alumínio impulsionado por motor de popa.
8  A estratégia de pseudônimos será utilizada durante o trabalho. Os alunos serão sempre identificados por nomes fictícios, bem como algumas lideranças indígenas e professores. Estes últimos, no entanto, não necessariamente terão sua identidade nominal ocultada, dado o conteúdo de certas declarações não exigir sigilo. 
9  Capitão é a denominação utilizada pelos Baniwa para designar o chefe de uma comunidade, é a principal liderança local.
10  Falam o baniwa como primeira língua e o português, como segunda. Os Coripaco, que moram no alto Içana, próxima a fronteira do Brasil com a Colômbia, falam além destas duas línguas, em sua maioria, o espanhol
11  Sobre a categoria baniwa de “brancos”, ou ialanawinai, ver Vianna (2012b) e Wright (2000).
12  Eduardo Viveiros de Castro é etnólogo com experiência entre povos ameríndios e, atualmente, é um dos mais importantes antropólogos brasileiros. Com uma argumentação teórica refinada e complexa, sua obra tem instigado uma série de debates que extrapolam as fronteiras da etnologia indígena, alcançando a teoria antropológica produzida no Brasil e alhures. 
13  Pódaali é uma festa baniwa em que há a reunião entre afins, onde trocas diversas se estabelecem, tal como matrimoniais e também de alimentos e bebidas (HILL, 1993).