Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 17 Vol. 2 - 2015 - Julho/Dezembro



A Ladainha do Quilombo São Francisco como Elemento de Identidade

Marieuzo Alves dos Santos 

 

RESUMO: O objetivo deste artigo é pesquisar sobre os significados relacionados à identidade étnica na Ladainha cantada, em latim, em festas religiosas da comunidade quilombola São Francisco (Gurupá-PA). Para constituição do corpus, a Ladainha foi cantada por duas reconhecidas cantoras da comunidade São Francisco e o contexto de entoação da Ladainha foi descrito. Após a gravação, procedemos à transcrição da mesma. Como referencial teórico, utilizamos Vieira (2008), Pacheco (2010) e Maciel (2014). Podemos observar que atualmente a Ladainha tem sido usada para fortalecer a cultura da comunidade São Francisco.

Palavras chave: Quilombo São Francisco; Ladainha; Identidade.

 

1.      INTRODUÇÃO

A meta do presente artigo é pesquisar sobre os significados relacionados à identidade na Ladainha cantada em festas religiosas da comunidade quilombola São Francisco (Gurupá-Pará).

A hipótese a ser investigada neste trabalho é a de que a Ladainha cantada em festejos realizados para o padroeiro da comunidade São Francisco é um dos símbolos relacionados à identidade social da comunidade São Francisco (Gurupá-PA). Verificaremos também se a Ladainha seria um símbolo que diferencia a comunidade São Francisco das demais comunidades quilombolas de Gurupá, considerando que a noção de identidade se constrói em situações de confronto com outros grupos.

Conforme Brandão (1985, p. 123 apud VIEIRA, 2008, p. 70),

as identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro [...]. Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença [...]

 

2.      REFERENCIAL TEÓRICO-METOLÓGICO

A discussão sobre o conceito de identidade e a relação entre identidade e os símbolos presentes em festejos religiosos foi baseada no trabalho de Vieira (2008) que integra diversos autores como Oliveira (1976) e Cunha (1985).

            As pesquisas de campo foram realizadas no mês de agosto de 2014, nomunicípio de Gurupá (PA), na comunidade São Francisco.

Inicialmente, foram gravadosrelatos sobre a história da comunidadeSão Francisco com o senhor Antônio Ramos Dos Santos, nascido em 13/06/1953 no município de Gurupá-Pará, 61 Anos. Em seguida, realizamos entrevistas para uma breve descrição dos festejos religiosos em que a Ladainha é cantada.

A Ladainha foi gravada com duas mulheres da comunidade São Francisco. Marinete Serra Ramos, nascida em 01/06/1978, Município de Gurupá-Pará, 36 anos, faz parte do grupo de mulher da comunidade e é uma cantora reconhecida da ladainha em festejo ao padroeiro da comunidade São Francisco. A Ladainha também foi cantada por Benedita Monica dos Santos Pombo, nascida em 04/05/1989, 25, município de Gurupá-Pará, que faz parte do grupo de mulher da comunidade e é também uma cantora reconhecida da Ladainha em festejos aos padroeiros da comunidade.

FIGURA 1 – reconhecidas cantoras da Ladainha da comunidade São Francisco (Gurupá-PA) (foto: Marieuzo Santos, agosto/2014)

 

 

2 - CONCEPÇÕES DE IDENTIDADE

 

            Para Manuela Carneiro da Cunha (1985 apud VIEIRA, 2008, p. 70), a identidade muda de acordo com a situação, ou seja, ela é situacional, operativa e depende do contexto em que os sujeitos sociais estão inseridos e das contingências históricas, políticas que vivem. Para Cunha (1985 apud VIEIRA, 2008, p. 70), além de ser situacional e contrastiva, a identidade

constitui resposta política a uma conjuntura, resposta articulada com outras identidades em jogo, com as quais forma um sistema (...) percebeu-se também que, se a identidade repousa numa taxonomia social, resulta de uma classificação, deriva daí que ela é um lugar de enfrentamentos. (CUNHA, 1985, p. 206 apud VIEIRA, 2008, p. 70)

 

A identidade está, portanto, relacionada à classificação ou divisão em grupos em que um grupo enfrenta o outro para se diferenciar, ou seja, um grupo se diferencia do outro para a construção da identidade, em constantes enfrentamentos. O objetivo dos enfrentamentos pode ser fazer fronteiras uns com os outros ou simplesmente se fazerem reconhecer como grupos sociais (BOURDIEU,1979 apud VIEIRA, 2008, p. 70).

Silva (1997 apud VIEIRA, 2008, p. 70) afirma sobre a festa de São Benedito em Bragança (PA) que

identidade como diferença, no ritual, seria a expressão dessa diferença  passando a se constituir um campo privilegiado, a fim de se perceber como as pessoas atribuem significados, representam as coisas, reagem aos símbolos e, principalmente, legitimam suas formas de pensar, de ver; tornam inteligíveis as representações que fazem de si mesmos, a base das quais seriam capazes de expressar todo o seu ethos.

 

            Podemos destacar na citação acima o momento do ritual como uma forma de construção ou manifestação de identidade a maneira como as pessoas atribuem significados, representam as coisas e, dessa forma, legitimam suas formas de pensar.

            Brandão (1978 apud VIEIRA, 2008, p. 72) afirma a respeito da festa do Divino Espírito Santo, de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, em Pirenópolis (GO)

 

O que o discurso do morador da cidade procura traduzir, quando ele considera-se efetivamente ligado a sua festa, é que ela não possui em si algumas tradições da cidade. A festa é, antes de mais nada, a tradição mais essencial de Pirenópolis, o seu costume ritualizado mais efetivamente capaz de atribuir a sua cidade a sua própria identidade (BRANDÃO, 1978, p. 63 apud VIEIRA, 2008, p. 72)

 

            Vieira defende que a identidade bragantina passa por vários símbolos que permeiam a festa de São Benedito em Ananindeua, como o santo de devoção e a Marujada.

Nossa hipótese é que a Ladainha cantada em festejos realizados para o padroeiro da comunidade São Francisco é um dos símbolos relacionados à identidade social da comunidade São Francisco (Gurupá-PA). Verificaremos também se a Ladainha seria um símbolo que diferencia a comunidade São Francisco das demais comunidades quilombolas de Gurupá, considerando que a noção de identidade se constrói em situações de confronto com outros grupos, conforme exposto acima. 

 

1-      LOCALIZAÇÃO DA COMUNIDADE SÃO FRANCISCO

Conforme Martins, Schaan, Veiga e Silva (2010, p. 117), o município de Gurupá está localizado na confluência do rio Xingu com o delta do rio Amazonas. Sua área é de 8.540 km². A população é de cerca de 25 mil habitantes. Limita-se ao norte com o Estado do Amapá e município de Afuá, ao sul com os municípios de Melgaço e Porto de Moz, a leste com Afuá, Breves e Melgaço, e a oeste com o Amapá e municípios de Porto de Moz e Almeirim. Na figura abaixo apresentamos a localização em um mapa.

 

Antônio Ramos Dos Santos, nascido em 13/06/1953, no município de Gurupá-Pará, 61 Anos faz parte do grupo de veteranos na comunidade e é o organizador de todos os trabalhos que acontecem na comunidade de São Francisco. Segundo ele, a comunidade foi fundada em 1971, pelo Padre Giulio Luppi, com registro na paróquia de Santo Antônio de Gurupá-Pará, com um total de 15 famílias, e um total de 40 pessoas Reunidas no Barracão comunitário.

Esse período foi o começo da organização, todos trabalhando em coletividade. Nessa época, as famílias foram aumentando. De 1971 a 2000, segundo uma pesquisa,aumentaram 35 famílias e um total de 88 pessoas. Em pesquisa mais recente, podemos ver que novamente houve aumento da população. De 2000 a 2014, há hoje 69 famílias, totalizando 370 pessoas que vivem na comunidade São Francisco.

            Embora dividida em dois povoados, que podemos chamar de São Francisco 1º e São Francisco 2º, a comunidade é considerada pelos moradores como apenas um grupo. Conforme dados da Fundação Cultural Palmares (2014), o nome completo da comunidade é São Francisco do Médio Ipixuna (data da publicação 10/12/2004, código IBGE 1503101).

FIGURA 3 – Identificação da comunidade São Francisco Médio do Ipixuna como quilombo pela Fundação Cultural Palmares (http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#)

 

            Quando se fala em comunidade está se referindo há um grupo de pessoas que trabalha em coletividade. Nesse tipo de trabalho, a divisão das tarefas é essencial. Cada grupo fica responsável por uma parte do trabalho.Ao trabalhar em grupo, você aprende, não só sobre o tema estudado, mas também a conviver com outras pessoas, a ser mais sociável e a se integrar mais no mundo em que vive.

É preciso entender o significado do trabalho em grupo. Como o homem é um ser social, vive em comunidades, em associações, é necessário saber trabalhar em grupo. Esses são exemplos que nossa comunidade tem para dar, como quilombo.

Veremos que além do trabalho comunitário, as festas religiosas estão também intimamente relacionadas com a identidade social dos moradores da comunidade São Francisco.

            A comunidade São Francisco tem apenas um padroeiro que é São Francisco.  Seu festejo ocorre a partir do dia 25 de Setembro até o dia 04 de Outubro. Sendo que no dia 25 de Setembro iniciam-se os festejos com queima de fogos e em seguida a levantação do mastro, que é uma tradição que vem sendo trabalhada há muito tempo. No dia 26 de Setembro as famílias começam a rezar a ladainha até o dia 03 de Outubro e, no dia 04 do referido mês é rezada a última ladainha em homenagem ao Santo. Assim, encerra-se o festejo com a derrubada do mastro e o almoço para todos os presentes. Desse modo acontece também com os festejos da Santa Maria festejada no mês de Agosto de 06 a 15 e os mesmos rituais são utilizados.           

 

4 - A LADAINHA

       Ladainha é definida por Houass (2009) como

prece litúrgica estruturada na forma de curtas invocações a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem, aos santos, recitadas pelo celebrante, que se alternam com as respostas da congregação (fiéis e/ou religiosos)

 

            Vieira (2008, p. 22) afirma que na festa de São Benedito em Ananindeua faz parte do ritual a reprodução do canto “Benedictus” em latim pela alegria e para a fartura da refeição. 

 Em Ananindeua se toca sempre a Ladainha de São Benedito é reproduzida normalmente através de um cd em um aparelho de som, inclusive durante o almoço, diferentemente de Bragança, que se toca ao vivo edurante o almoço, segundo Nonato da Silva (2006) toca-se o Bendito, uma reza em louvor a Deus e a SãoBenedito, pela alegria e fartura da refeição ou em qualquer outro ritual. É o canto “Benedictus”, em latim,tirado da tradição católica.

 

As Ladainhas, na comunidade São Francisco, são cantadas somente nos seguintes momentos: festejos da comunidade em homenagem aos santos. Por exemplo, no festejo de Santa Maria realizado nos dias 14 e 15 de agosto (excepcionalmente não realizado este ano de 2014 devido ao falecimento de uma pessoa da comunidade).

            A seguir, apresentamos a Ladainha transcrita com base na gravação realizada.

LADAINHA

2º ladainha de nossa senhora

Kyrie eleison

Christeeleison

Kyrie eleison

Christe, audinós

Christe, exaudinos

Pater de coelis Deus/

Misere nobis

FiliRedemptormundi, Deus

SpritusSancte, Deus

SanctaTrinitasunus Deus

Sancta Maria... Ora pro nobis

Sancta Dei Genitry

Sancta Virgo Virginum

Meter Christi

Materdivinaegratiae

Mater puríssima

Mater castíssima

Mater inviolada

Materintermerata

Materamabilis

Materadmirabilis

Mater boni consili

Matercreatoris

Matersalvatoris

Virgo prudentíssima

Virgo veneranda

Vigor praedincada

Vigo potens

Vigor ciemes

Vigor fidelis

Sedes sapientias

Causa nostraelaetiae

Vasspirituale

Vashonorabile

Vas insigne devotions

Rosa mística

Turrisdavidica

Turris ebúrnea

Donius áurea

Junnuacoeli

Steila matutina

Salis infirmorum

Refugiumpeccatorum

Consolatrixaffictorum

Auxiliumchristianorum

Regina angelorum

Regina Patriaxarum

Regina prophetarum

Regina apóstolorum

Regina martyrum

Regina confessorum

Regina virginum

Regina sanctorum omnium

Regina sinelabeoriginali concepta

Regina insselasum

Seginasacratissimirosarll

Reina pacis.

Agnus Dei, quitollispeccata

Mundi. Todos: parcenobis, domini.

Agnus Dei, quitollispecctamundi. Todos: exaudi nos, Domini.

Alguns Dei, QUI TOLLIS PecctaMundi. Todos: miserere nobis.

V. Ora pro nobis, sancta Dei Genitrix R. Ut gigniefficiamurpromissionobus. Christi.

 

5 - CONCLUSÃO

A ladainha é uma tradição da comunidade. É utilizada para fortalecer e resgatar a cultura da comunidade. Atualmente, os jovens já sabem cantar a ladainha. Todos os sábados e domingos, há reunião para ensinar os mais jovens.

            Pode acontecer durante os rituais em que se reza a ladainha de algum participante chorar ao relembrar de seus antepassados falecidos. Por exemplo, durante o festejo do ano de 2014, uma senhora chorou durante a Ladainha cantada por Marinete Serra e Benedita Mônica Nunes ao lembrar do seu pai, um dos mais antigos moradores da comunidade e grande admirador da Ladainha.

            Trata-se de um momento de lembrança e de ligação com os entes queridos que já partiram. Maciel (2014, p. 11) relata sobre a presença da Ladainha na comunidade Uruapeara (Rio Madeira, Rondônia)

Foi lá no Uruapeara que vi as mulheres preparando a ladainha para São Miguel, fazendo de modo tradicional os biscoitos doces e salgados de massa de macaxeira do jeito que aprenderam com as mulheres mais velhas. Foi lá que vi que a ladainha, embora fosse uma prática do catolicismo, havendo o homem mais velho que puxa a ladainha se remetendo ao latim e as mulheres responderem. A rememoração que acontece é do tempo dos mais velhos, todos choram lembrando-se de seus mortos. Foi ai que vi que nesse catolicismo havia um ritual tradicional próprio da comunidade em rememoração aos antigos que haviam morrido.

 

            Apesar de ser um festejo de homenagem ao Santo da tradição católica, São Francisco, podemos identificar no festejo da comunidade São Francisco elementos de identidade quilombola e indígena. As comunidades indígenas do Brasil contam com rituais de recordação e contato com os entes queridos mortos. Podemos analisar que a Ladainha também pode ser vista como um momento de lembrança dos parentes que já foram.

            Verificamos com este trabalho que há elementos de identidade quilombola e indígena, nos rituais de festejos de São Francisco. Além disso, a Ladainha é tomada como elemento diferencial entre os quilombos de Gurupá. Por exemplo, apenas os quilombos Maria Ribeira e São Francisco fazem Ladainha dentre os dez quilombos de Gurupá.

 

REFERÊNCIA

 

MACIEL, M. N. As histórias que ouvi daminha avó o que  aprendi com eles.  Revista LEETRA, São Carlos, n. 4, v. 1, 2014, p. 10-16.

MARTINS, C; SCHAAN, D; VEIGA E SILVA; W. Arqueologia do Marajó das Florestas: fragmentos de um desafio. In: SCHANN, D; MARTINS, C. (Org) Muito Além dos Campos: Arqueologia e história na Amazônia Marajoara. Belém: GKNORONHA, 2010.

VIEIRA, Sônia Cristina de Albuquerque. “É um pessoal lá de Bragança...”: Um estudo antropológico acerca de identidades de migrantes em uma festa para São Benedito em Ananindeua/PA. 95f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Belém, 2008.

 

Recebido em Março de 2015.

Aceito em Abril de 2015