Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 17 Vol. 2 - 2015 - Junho/Dezembro
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Conheci a professora
Fernanda em setembro de 2014, no debate “Tenharim: Etnocídio no Sul do
Amazonas”, Debate organizado na USP, pelo Núcleo de História Oral, com a
proposta de desconstruir as imagens etnocêntricas passadas sobre o Povo
Tenharim nas mídias sócias e oficiais, bem como, apresentar análises
históricas, geopolíticas e antropológicas que contextualizam a região de conflito
interétnico. Eu estava fazendo parte da mesa de debate e a professora Maria Fernanda
Nogueira estava no auditório assistindo ao debate, quando foi aberto para as
intervenções dos participantes, Fernanda pediu a palavra e se dirigindo a mim
disse WAWINA! Comprimento dos povos indígenas de Guajará – Mirim/ RO, os povos
do tronco ORO. Ao usar esse comprimento gerou uma aproximação de imediato, em
seguida explicou que é Linguista e fez sua pesquisa de mestrado na terra
indígena Guaporé, antigo posto indígena Ricardo Franco, onde se encontra,
dentre outros povos indígenas, o povo Wajuru. Após o debate podemos conversar e
trocar contatos. Desde quando ela me disse wawina, como tantas vezes os
parentes de Guajará Mirim me disseram, para perguntar se eu estava bem, eu já a
considerei também como parente e essa relação foi ganhando cada vez mais
sentido, à medida que, passamos a nos encontrar e compartilhar nossos projetos
de reafirmação de identidade indígena. Ela que considera os Wajuru seu povo de
criação e tem uma referência identitária indígena e estava orientando trabalhos
de final de curso de professores das comunidades que fazem parte da Ilha do
Marajó e também com turmas de graduação na Universidade Federal do Pará –
Campus do Marajó/Breves, logo me convidou para ir fazer um trabalho voltado
para a reafirmação de identidade indígena com seus alunos. No
período de 04 a 05 de fevereiro de 2015 fui para II Colóquio de Letras da FALE
CUMB – Formação de Professores: Ensino, Pesquisa, Teoria. Com a indicação da
linha de pesquisa de História Oral que faço parte e de meu engajamento na
questão indígena, feita por Fernanda, a professora Dra. Sandra Maria Job,
coordenadora do evento, convidou-me para ministrar um minicurso de Narrativa e identidade na Amazônia. Eu
aceitei prontamente. Foi uma experiência muito importante desde minha viagem
pelos caminhos das águas do rio que levaram de Belém até o berço ancestral dos
marajoaras à vivencia com os alunos. Durante a realização do minicurso, os
participantes receberam muito bem as minhas propostas, se envolveram nas
músicas e danças indígenas, se identificaram com o trabalho de história oral e
ficaram cheios de ideias para seus trabalhos de final de curso. No horário que
não estava acontecendo o minicurso tive a oportunidade de conhecer os alunos da
professora Fernanda que estavam apresentando seus trabalhos finais de curso,
eles são professores em suas comunidades e fizeram seus trabalhos buscando as
histórias dos mais velhos. Assisti
os trabalhos dos alunos de graduação quando estavam sendo avaliados pela
professora Fernanda e vi suas apresentações também no evento. Fiquei surpresa
em ver como o meu texto As histórias que
ouvi da minha avó e o que aprendi com elas, publicado na revista LEETRA –
Indígena revista do Laboratório de linguagens LEETRA da Universidade Federal de
São Carlos havia influenciado na escolha que os alunos fizeram para seus
trabalhos, buscando as histórias dos mais velhos, em especial o trabalho da
Carla Cristina Duarte que estava finalizando o curso e o da Miriam Loureiro do
Amaral que ainda está cursando a graduação, mas apresentou um trabalho no
evento de Letras. O
que vi nas águas dos textos foram muitas histórias dentro de uma perspectiva
indígena de ver e ser no mundo emergindo do fundo dos rios da ilha de Marajó,
berço de uma tradição milenar que embora seja mencionada apenas nos Museus por
meio dos seus magníficos artefatos, também está ali nos rios de memórias dos
mais velhos que habitam ainda hoje a ilha e na relação com a natureza, no modo
de se alimentar, no modo de se organizar e enfim de viver como tão bem é
demonstrado nos textos. No
artigo Memórias de Cobra e Identidade na
Comunidade de São Pedro, Rio Aquiri de Carla Cristina CAMBUI, podemos ver a
percepção indígena desde o título “Memórias de Cobra” Se formos pensar dentro
de uma lógica não indígena não iremos entender que a cobra tem Memória, mas
numa perspectiva indígena isso é totalmente verdadeiro, pois em muitas
narrativas indígenas há o registro de pessoas que também ficam em forma de cobras.
Nas narrativas indígenas houve o tempo que os bichos falavam, e no mundo dos
encantados os bichos que se apresentam na forma de gente. Na cultura do Povo
Mura isso é muito presente. Conversando com o cacique Nelson Mura do rio
Itaparanã, ele me contou sobre os encantados que no fundo do rio são pessoas e
que ao submergir ficam em forma de boto. Nas margens do lago Urupera - AM onde
se formou uma população de seringal advinda dos processos de
desterritorialização indígena as narrações sobre pessoas que se tornam bichos a
noite também são muito presentes. O artigo de Carla Cristina CAMBUI, é uma
narrativa narrada por ela, ela nos conta as histórias contadas por sua avó e
traz para a escrita o ritual da tradição oral em que aquele que escuta a
história torna-se portador dessa história e passa a contar para as novas
gerações. No artigo Eles Viviam No Meio Deles:
Desvendando a Identidade Marajoara de
Mirian Loureiro do AMARAL, há uma retomada da história indígena na Ilha do
Marajó, tanto por meio dos registros históricos e cartográficos como por meio
da busca de identidade indígena retomando as narrativas dos mais velhos e da
construção das árvores genealógicas. Tive a oportunidade de assistir a
apresentação do trabalho de Miriam num dos grupos de trabalho do Colóquio de
Letras e fiquei emocionada de ver uma jovem estudante apresentando um trabalho
com tanta força identitária. A força de reafirmação de indígena é visível nas
histórias que ela traz dos mais velhos em sua narrativa, dentre elas a da sua
avó: [Uma das histórias mais
interessantes que ouvi da minha avó, foi quando relatou que sua mãe (minha
bisavó) quando ainda moça engravidou de um lagarto, quando menstruada saiu a
andar no mato e passando por cima deste bicho embuchou. “Passou dois meses para
minha mãe ter aquele bicho, depois jogaram fora aquele lagarto”, conta ela.] A
visão indígena como forma de configuração de mundo está presente nessa gravidez
do lagarto. Na narrativa da minha avó Francisca também há a história de sua
cunhada que engravidou de um bicho que virou uma serpente: Quando
a Maria do Pedro, a mulher do meu irmão, adoeceu um tempo, ele foi com ela lá
na dona Preta. A Maria gerou um bicho. Eu não fui nem olhar aquele bicho fui
foi nada! Essa gente que foi. A Fermina e a Sabá. Eu não fui. Enterraram bem lá
na ilha mesmo. Diz que era tão feio que Deus me livre! Então, a Maria ficou
doente, ficou toda amarelona. Levaram ela pra fazer uma consulta com a dona
Preta... Aí diz que os mestres lá falaram que aquela ilha ia cair tudo, ainda mais
lá onde a gente morava. Que lá do lado de cima ia cair tudo aquela ilha, no
lugar que a Maria com o Pedro moravam. Que aquele bicho que a Maria teve ia
virar uma serpente. Ah! Mas, eu tinha medo! Mais que depressa nós já arrumamos
as coisas pra ir embora. Ainda bem que o Antônio se virou e arrumou casa pra
nós aí no Triângulo. Nós viemos embora foi daí. E caiu mesmo... Caiu tudo...
Caía cada rebolão de terra. (Trecho da narrativa resultante da entrevista
realizada com Francisca Nunes Maciel, falecida em 2007 com 88 anos de idade, IN
MACIEL, 2013 p. 51) Nesse
trecho da narrativa de Francisca, que foi publicado no livro Espaço Lembrado: Experiências de Vida em
Seringais da Amazônia (2013), também acontece o fenômeno da gestão de um
bicho no ventre de uma mulher. Assim como, a narração da mulher que gerou um
lagarto, também a narração da mulher que gerou um bicho e virou uma serpente ao
se enterrado vem dos contextos de comunidades resultantes das
desterritorializações indígenas e apesar de todo o processo de apagamento das
relações com os territoriais tradicionais, o modo de ver indígena se mantém
nessas histórias vivenciadas no contexto cultural dessas comunidades. No
artigo Nomeação de Lugares através de
mitos: O caso da Comunidade Castanhal do Peru (GURUPÀ-PA) de Edevaldo Serra
MARTINS, relaciona o modo que a comunidade de São Pedro do Baca do Ipixuna
nomeia os lugares com a forma que os povos indígenas do Rio negro fazem as
nomeações de seus lugares. Assim como, os povos indígenas do Rio Negro configuram
um sentido sagrado para as rochas, serras, praias, ilhas, cachoeiras, paranás
entre outros lugares e formações geológicas, a comunidade são Pedro da Baca do
Ipixuna também faz a sua nomeação por meio da história do Peru, a narrativa é
riquíssima de elementos que explicam a configuração de mundo indígena, o aturar carregado pelo homem, a forma
que de se livrar do peru “[...] nesse momento, não pensou
três vezes abaixou o aturar deu duas volta sobre o aturar...” A qual indica um
saber indígena de lidar com situações como essa referida. O movimento é
circular que indica o movimento de tempo, tempo da morte do Peru protetor do
interior da floresta que passa a nomear a própria comunidade que o mantém vivo
em suas narrações. Marcilene de Souza
MENEZES em seu artigo Identidade
Cultural: Uma abordagem indígena no Marajó. Embora, vá a busca do modo de
ser indígena no Marajó hoje em modos de vida de outras famílias que não são
ligadas a sua, ela se coloca no texto como parte dessa reflexão: “Lamentamos que muitas vezes não
valorizamos o que é nosso, apegamo-nos a outros valores e nos apropriamos deles
como se de fato fossem a nossa cultura, muitas vezes por imposição de mídias e
poderes que nos apresentam como bom e necessário para a vivencia humana,
desvalorizamos as matas e os igarapés, a nossa gente, as nossas histórias, que
são relatadas pela boca de homens e mulheres quotidianamente que passam
despercebidas por nós moradores deste chão. Misturamos e reinventamos dia a dia
a construção de uma nova identidade marajoara”. Nesse trecho evidencia-se que a
pesquisa da autora contribui acima de tudo para ela mesma como Marajoara pensar sobre sua própria
identidade no contexto em que vive. Marieuzo Alves dos SANTOS, em seu artigo A Ladainha do Quilombo São Francisco
Como Elemento De Identidade, traz sua contribuição ao
abordar a Ladainha para além de uma pratica religiosidade cristã, mas como
forma de reapropriação da comunidade local no seu ritual de se reunir e
reafirmar seus modos tradicionais de ser: “Verificamos com este trabalho que há elementos de
identidade quilombola e indígena, nos rituais de festejos de São Francisco.
Além disso, a Ladainha é tomada como elemento diferencial entre os quilombos de
Gurupá. Por exemplo, apenas os quilombos Maria Ribeira e São Francisco fazem
Ladainha dentre os dez quilombos de Gurupá.” No artigo Elementos indígenas em Narrativas do
Quilombo, Maria Ribeira (GURUPÁ-PA), de
Marivaldo Alves dos SANTOS, temos as três narrativas que atualizam o
contexto cultual indígena que se remete a onça como a causadora da nova
organização social instaurada entre os moradores da comunidade os quais
deixaram de viver dispersos para viver próximos um dos outros, como se fosse a
instauração de dois tempos: Antes do aldeamento e depois do aldeamento, tendo a
carreira da onça como marco divisor desses dois tempos. E as duas outras
narrativas a da Mulher que desejou
Guariba e Sobre o Jacaré atualizam as relações com a caça, com os
protetores dos animais e a referência a pajelança. Eu diria que essas duas
narrativas não têm elementos indígenas, elas são narração indígena que matem
viva as referências tradicionais dos tabus culturais em reação a caça e aos
referencias de leitura de mundo indígena. No
artigo História e influência Indígena Na
Sociedade Marajoara: A Colonização De
Breves, o tom narrativo dado por Izaque
de Oliveira BATISTA é historiográfico. Apesar de fazer um apanhado
historiográfico para falar dos antigos Povos de Marajó, recorre aos relatos
orais de sua própria família para tratar da questão: Indígenas No Marajó Hoje? Questão
essa que funcionou em todos os artigos como uma pergunta de corte, denominada
assim em história oral, por ser um procedimento adotado por alguns oralistas
(que fazem trabalhos com a história oral), para trazer a abordagem do interesse
da pesquisa, após a pessoa entrevistada ter falado livremente sobre a sua
experiência de vida. Nesse caso, ela aparece nos artigos como uma pergunta que
norteou os trabalhos dos alunos. Todos de uma maneira ou de outra buscaram
responder essa questão e foram conduzidos por uma busca de suas próprias
origens. No conjunto dos textos ha
uma reafirmação de origem e história indígena e de certa maneira uma retomada
indígena por meio dos registros das histórias dos mais velhos e atualizações de
narrações com visões de mundo indígenas. Para um lugar que é o berço de uma cultura indígena Milenar tida
atualmente no discurso oficial como algo do passado distante dos dias atuais,
esses artigos são verdadeiros processos de retomada dessa história e
identificação indígena que por tanto tempo se mantém no subterrâneo da memória
dos mais velhos. REFERÊNCIAS CALDAS, Alberto Lins. Nas Águas do Texto: Palavra e Leitura em História Oral. Porto
Velho, EDUFRO, 2001. MACIEL, Márcia Nunes. O Espaço Lembrado: Experiências em Seringais da Amazônia, Manaus,
EDUA, 2013. Recebido em março de 2015. Aceito em abril 2015. |
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