Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 17 V 2 - 2015 - Junho/Dezembro
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Palavras-chave:
História da Cobra; Narrativas orais; Ribeirinhos do Rio Aquiqui;
Identidade
Cultural. 1.
INTRODUÇÃO
Este
trabalho apresenta histórias contadas sobre cobras grandes capazes de
devorar
uma pessoa e provocar medo e terror. Tem como objetivo propor uma
reflexão
sobre as histórias do povo ribeirinho na comunidade são Pedro, rio
Aquiqui
(Pará). As histórias inquietam o nosso imaginário e misturam fantasia
com a
realidade. Tais narrativas nasceram, cresceram e se reproduziram na
memória
oral, porém, não foram escritas. Fazem parte da construção da
identidade do
povo ribeirinho na Comunidade São Pedro, pois foram ouvidas por nossos
ancestrais e por nós quando crianças. Alguns de nossas avós sempre
contavam uma
história que sua avó ou avô contou a eles, e esse costume foi passando
de
geração a geração. Porém o que se percebe é que muitas dessas histórias
não são
registradas pela escrita; dessa forma, elas vão se perdendo com o
tempo. Além
de registrar na modalidade escrita a história da cobra da comunidade
São Pedro,
o presente investiga a identidade cultural carregada pela mesma.
Para
além do natural, a paisagem se configura como um elemento mediador de
uma
ligação com o maravilhoso e fantástico, tal como afirma Simões (2010,
p.13): A paisagem
composta e emoldurada por rios e florestas
significa para o amazônida, portanto, não apenas o espaço de vida e
trabalho no
cotidiano repetitivo, mas também um elemento mediador de uma ligação
com o
maravilhoso e com fantástico. Nessa paisagem homens, animais, seres,
rios,
florestas são vistos e observados com a perspectiva de perscrutação e
captação
de sentido íntimo das coisas. METODOLOGIA Foi
adotado como
procedimento de investigação para a construção do artigo a pesquisa
bibliográfica Simões (2010), Maciel (2014) e Vaz Filho (2014). Além da
pesquisa
bibliográfica realizamos pesquisa de campo com os moradores da
Comunidade São
Pedro e com a minha querida avó Inês Pinheiro Correia (a quem
agradecemos pela
colaboração). 3.
A COMUNIDADE SÃO PEDRO DO RIO AQUIQUI
A
comunidade São Pedro, mais conhecida como vila São Pedro fica
localizada no
baixo Xingu no interior da cidade de Porto de Moz (Pará). Figura
1: Mapa e Dados sobre a cidade de
Porto de Móz (IBGE, 2015,
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=150590)
De
acordo com dados do IBGE (2015), a origem histórica do município data
de 1639.
Segundo o IBGE quando
os capuchos de José lançaram os fundamentos da atual sede, com a
denominação de
aldeamento [aldeamento] Maturu, sob a invocação de São Braz. Em
decorrência das
primeiras explorações da parte baixa do rio Xingu, o aldeamento se
desenvolveu,
passando assim, para o século XVIII.
O
povo Maturu é também citado como habitante primitivo de Porto de Moz
por
Feitosa (2006). Ao descrever a Bacia do rio Xingu, Feitosa afirma que
Porto de
Moz seria “terra do povo Maturu”. Com
uma área de 511.891 quilômetros quadrados, a Bacia do rio Xingu nasce
no Mato
Grosso, onde estão as nascentes dos seus principais formadores, e segue
por dentro
do Estado do Pará, onde encontra o Rio Amazonas, na altura da região de
Porto de Moz, terra do povo Maturu.
(grifos nossos)
As
margens do rio são estreitas, a água é muito barrenta o que
impossibilita
enxergar o que se esconde no fundo do rio, área de várzea. No inverno,
as
casas, trapiches e marombas são tomados pela água. Muitas criações de
animais e
aves são mortas afogadas, porém no verão a seca é tão forte que o solo
racha
plantas, peixes e animais morrem por falta de água. O meu falecido
bisavô foi o
primeiro morador a pisar em terras aquiquienses.Lá nasceram, meu avô e
seus
irmãos, meu avô casou pela segunda vez com a minha avó, junto tiveram
dez
filhos, quatro mulheres e seis homens. Minha mãe é a filha mais velha,
eles
sempre viveram da criação do gado e da pesca.
Veremos
que as narrativas tradicionais da comunidade apontam para uma memória
de
histórias indígenas no passado, a qual ainda se pode detectar no
presente, que
pode estar ligada com a presença do aldeamento Maturu. 2.
MEMÓRIAS
DE COBRA NO RIO AQUIQUI Os
moradores da comunidade vivem da pesca e da criação do búfalo, mas
guardam com
eles verdadeiros tesouros da sua história, que foram ouvidas, mas não
escritas.
Minha avó conta a história de uma vaca que foi engolida por uma cobra e
que a
mesma a vomitou. Repetiu o mesmo gesto ao engolir um homem, mas em
situações
deferentes. Abaixo transcrevo a história que a vovó contou para a
construção
deste trabalho.
Minha
avó se chama Inês Pinheiro Correia. Ela tem 80 anos de vida, de
história e de
sabedoria. Uma enciclopédica de conhecimentos adquiridos ao longo da
vida
arquivada em sua memória, e na vida de seus netos e netas. Era verão, o
sol
estava escaldante, meu falecido avô era criador de gado. Esses animais
quando
sentem calor vão para a beira do rio para minimizar o calor, vovó disse
que
meus tios estavam em casa com ela e o vovô quando, de repente, eles
ouviram um
forte mungido. Era a vaca que estava sendo engolida por uma gigantesca
cobra.
Todos ficaram assustados, mas não conseguiram livrá-la daquela fera,
ela levou
o animal para o fundo do rio. Dias depois os moradores encontraram o
animal. Na
volta do “S” eles viram muitas borbulhas, galhos e folhas saindo do
fundo do
rio, eles acreditavam que a cobra estava lá provocando o maior terror.
Esta parte
do rio é muito parecida com a letra “S”. Minha avó diz que o ninho da
cobra
fica no porto do Alcibiades. Este senhor mora distante da comunidade
por essa
razão. Vovó acredita que a cobra se desloca daquele local, quando não
encontra
alimento. Minha avó diz: “minha filha, foi assim. Aquele bicho enorme
puxou o
traseiro da vaca e, puxava ela, com tanta força e arrastou, arrastou a
bicha para
o fundo do rio até sumir”.
A outra história retratada é a morte de um homem. A
vovó
conta que, era tarde da noite. Marcos convidou seu irmão para defecar
na cabeça
do trapiche, seu irmão foi buscar o lampião para clarear. Marcos não
esperou e
seguiu e foi daquele lugar que desapareceu, esse fato ocorreu no
período do
inverno. A água estava grande e muitos ribeirinhos preferem defecar na
cabeça
do trapiche, e foi daquele local que ele desapareceu. Dois dias depois,
os
moradores o encontraram, ele estava muito liso, todos acreditam que o
homem foi
vomitado Haaminha
filha, a tábua do trapiche estava com os sinais
do xixi dele, os moradores procuraram ele noite toda, mas não o
encontraram e,
quando acharam, ele estava, liso, liso, liso.
Serpentes e cobras fazem parte das narrativas de
origem
do mundo e de localidades em várias culturas. Na bíblia, no livro de
Gêneses
(cap. 05; vs. 03) surge a serpente. No jardim do Éden, ela atenta Eva a
comer o
fruto proibido e depois, Adão, que também o comeu. Deus os expulsou do
paraíso,
sendo obrigados por ele a comer o pão do seu suor. As erpente foi então
considerada maldita por Deus entre todos os animais: “Porquanto fizeste
isto
maldita serás tu dentre todos os animais domésticos, e dentre todos do
campo;
sobre teu ventre andarás, e pó comerás por todos os dias da tua vida”.
Dessa forma, constata-se que a cobra acompanha o ser
humano a partir do momento que este surgiu na face da Terra, dentro da
tradição
cristã. E nos mais diversos povos, encontram-se culturas, crenças,
mitos,
lendas, rituais relacionados a serpentes dos mais distintos tamanhos e
com
inúmeras narrativas orais as envolvendo.
Segundo
Malcheret al. (2009,p.11) O imaginário é
fruto da cultura e ao mesmo tempo um
dos elementos que fundamentame dão corpo a essa cultura. Isso acontece
porque o
homem é constantemente influenciado pela mediação de diversos aspectos
culturais, utilizando os símbolos que já estão disponíveis e
significando-os de
acordo com o contexto no qual se encontram.
Minha avó conta as histórias com muita certeza de
que
realmente existe uma cobra que devora pessoas, animais gerando
reverência e
medo.
Segundo Vaz Filho (2014, p. 89), para alguns povos
indígenas de Santarém, a cobra grande é uma sucuri que cresceu demais e
teve
que abandonar os igarapés e pequenas lagoas, para se refugiar na parte
mais
profunda dos rios ou nas ilhas. No Aquiqui, a profundidade do rio é
muito
grande, pois inúmeras embarcações (de grande porte) trafegam por lá, o
que leva
a crer que realmente existe uma cobra nas profundidades do rio. Certa
parte do
rio chamou minha atenção e dos moradores, pois ela tem um formato
parecido com
a letra S. Como disse anteriormente minha avó assim como os demais
moradores
daquele local acreditam que é lá o ninho da serpente. Tanto que foi na
volta do
S que eles encontraram o cadáver do homem o do animal, ambos, como
vimos, foram
engolidos pela cobra. O que nos chama atenção é o formato do local do
rio em
que ela deixa suass vítima: a semelhança da letra S com o formato do
seu corpo.
No texto lendas
paraenses: vivas no imaginário popular (Jornal Diário do
Pará), afirma-se
que o conteúdo das lendas da nossa região é fortemente simbólico e
geralmente
tem detalhes que podem ter acontecido ou não. Minha avó demonstra
completa
confiabilidade quanto às narrativas que conta.
É importante ressaltar também que, para muitos
fenômenos
ocorridos no Brasil, os quais a ciência não conseguia explicar, os
indígenas,
os escravos – advindos do processo de colonização do País e
conhecedores de
outras lendas e histórias – tinham uma resposta para tudo o que
acontecia em
sua volta, principalmente certos fenômenos da natureza. Eles, assim,
contribuíram no processo de edificação do nosso acervo cultural, bem
como com
os costumes, tradições, crenças e principalmente nas construções das
narrativas
orais existentes no Brasil.
Nos textos resultantes da entrevista de minha avó, a
cobra nasce como uma maldição, um espaço em que animais e homens se
tornam
vítima da mesma fera.
Segundo Maciel (2014, p. 15) A serpente
está presente nos mitos de várias culturas
e possui uma variedade de significados simbólicos. Para a mitologia
cristã, é a
representação do mal, do pecado, imagem que parece no mito de Adão e
Eva.
Temida pelos ribeirinhos, sobretudo nos grandes rios
regionais, a cobra grande, além de provocar naufrágio, também pode ser
vista
como uma praga para os criadores de gado que moram nas margens dos
rios. A
fazenda do meu vovô, por exemplo, também foi alvo desta temida cobra. Segundo
Malcheret al. (2009,
p. 11) Os seres
humanos estão imersos na história do lugar em
que vivem e dos grupos aos quais pertencem. Por esse motivo, tomam para
si todo
o conjunto de regras e de símbolos pertencentes a esse grupo. A cultura
é,
portanto, o que orienta e o que dá lugar às atitudes e pensamentos dos
sujeitos, a partir do seu lugar de fala. Warnier (2000) compara a
cultura como
uma bússola, pois ela que mostra quem somos e a que lugar pertencemos,
nos
identificando com alguns grupos e nos diferenciando em relação a outros.
Como podemos observar na citação acima, todo ser
vivo se
mantém em torno de um grupo e com ele constitui sua própria cultura,
suas
crenças, seus valores e seus costumes. Com os familiares da minha avó
não é
diferente, pois eles acreditam na existência da Cobra grande que habita
na
profundidade do rio, que moças menstruadas não devem aproximar-se das
margens
do mesmo e que existem forças superiores que protegem tudo ao seu redor. 5.
CONCLUSÃO
Com base nos referencias teóricos e nas narrativas
orais
da minha avó certifico as semelhanças entre os textos e a narrativa da
mesma. A
transformação do homem é influenciada pela origem de sua cultura,
conhecer o
que a minha avó possui de conhecimento foi um presente para a minha
formação
enquanto pessoa e como profissional, pois faço parte dessas narrativas
e
aprendi a respeitá-las e repassá-las às demais gerações. Somos frutos
de um
processo de colonização cruel contra o pensamento indígena, por
exemplo, contra
a crença na Cobra grande. Apesar disso, ainda há inúmeras narrativas
orais e os
indígenas continuam tendo um papel fundamental nesta construção. O povo
Maturu,
dono de Porto de Móz, podemos dizer que, ainda está presente nas
narrativas da
Cobra grande. Tal como os povos indígenas de outras localidades, os
Maturu
foram cruelmente excluídos. Segundo Vaz Filho (2014, p. 84), os povos
indígenas
de Santarém (PA), descendentes dos povos indígenas que já viviam na
região à
época da chegada dos europeus (XVI), passaram por vários processos de
violência
esses indígenas passaram por um longo processo de invasão dos seus
territórios,
exploração econômica, imposição política e cultural e mestiçagem com
outros
povos, que resultou em profundas transformações no seu modo de vida.
Por
exemplo, muitos indígenas não falam suas línguas originais, e hoje
estão
reaprendendo o Nheengatu (tupi) e o Munduruku. Longe daquela visão
estereotipada
do “índio selvagem”, os indígenas do baixo rio tapajós pareciam mais
simulados
à lógica do mercado e do Estado.
Este trabalho pretende contribuir para o
conhecimento de
nossa ancestralidade indígena, especialmente sobre o povo Maturu,
residente do
território hoje ocupado pelo município de Porto de Móz. Nossa crença na
Cobra
grande pode estar diretamente ligada à presença desse povo na região,
antes da
chegada dos europeus, e, certamente, também atualmente. REFERÊNCIAS BRASIL.
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