Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 17 Vol. 2 - 2015 - Julho/Dezembro
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O
CASO DA COMUNIDADE CASTANHAL DO PERU (GURUPÁ-PA)
Resumo: O
objetivo deste artigo é investigar a presença indígena na narrativa sobre o
nome de uma comunidade do quilombo São Pedro Bacá do Ipixuna (Gurupá-PA). A
narrativa foi obtida com a senhora Teodora Clemente, moradora nativa da
comunidade Castanhal do Peru, no quilombo São Pedro Bacá do Ipixuna. Como
arcabouço teórico, utilizamos Mattos (2006), Alves et al. (s.d), Silva (2013).
Segundo Silva (2013), o processo de nomeação de localidade a partir de eventos
mitológicos é comum entre os povos indígenas. Notamos que o nome da localidade
Castanhal do Peru provém de uma narrativa mitológica, tal como fazem os povos
indígenas para nomear territórios. Palavras-chave:
Comunidade Castanhal do Peru; Quilombo São Pedro; Nomeação de território;
Identidade indígena. 1. INTRODUÇÃO A localidade São Pedro
tem sua titulação legal como comunidade de remanescentes de Quilombos (Código
1503101, Data da publicação 10/12/2014, Fundação Cultural Palmares). O croqui
da comunidade é apresentado no final deste artigo, em anexo. Sobre
a importância que as narrativas de animais mitológicos relacionadas à
territorialidade têm para a comunidade São Pedro foi dito por Aureliano de
Jesus Ribeiro (59) que nunca se deu valor algum para esses acontecimentos na
comunidade São Pedro já que as pessoas da comunidade estão acostumadas com
tantas impressões e aperreações de algo estranho dessa natureza, por morarem
tão próximo dos animais e no meio da floresta. Os moradores da comunidade não
se assustam do que acontece ou do que já aconteceu. Segundo Aureliano estamos
gratos de alguém de dentro da comunidade se preocupar com o passado, do
presente e atentar a juventude de prever o futuro, para esses fatos históricos
seja colocado no papel em que as gerações de nossa comunidade faça conhecerem o
que temos e tornar presença viva tudo aquilo que nunca foi desvendado, que gera
uma riqueza de informações capaz de proporcionar pessoas pesquisadoras
escritores de seu próprio convívio natural. O
objeto do trabalho é investigar a presença indígena nas narrativas sobre nome
de lugares da comunidade São Pedro Bacá do Ipixuna, especificamente sobre o
nome do lugar Castanhal do Peru. Veremos que é
possível perceber na narrativa contada pelos mais velhos da comunidade a relação
com as narrativas de animais mitológicos como formas de explicar as
territorialidades. 2.Fundamentos
teóricos metodológicos Nossa
metodologia de pesquisa consistiu de consulta bibliográfica, com base em Mattos
(2006), Alves et al. (s.d.), Silva (2013), cujos conceitos relevantes para o
trabalho serão apresentados posteriormente. Além
disso, realizamos entrevistas com três moradores da localidade: Aureliano,
Maria do Socorro e Naldo de Jesus Borges. O trabalho de campo foi realizado na
própria comunidade São Pedro, no mês de outubro de 2014. 3.
DOS QUILOMBOS DO BRASIL À LOCALIDADE SÃO PEDRO BACÁ DO IPIXUNA Mattos
(2006, p. 106) afirma que apesar da legitimidade da sociedade escravista no
Brasil até pelo menos a primeira metade do século XIX, não se eliminava os
episódios de resistência que ocorriam “nos limites do pensável e do
possível no contexto da sociedade brasileira oitocentista”. As concentrações de
escravos fugidos são chamados mocambos ou quilombos. Conforme
Mattos (2006, p. 106), apenas com a Constituição Brasileira de 1988,
reconheceu-se os direitos territoriais aos remanescentes das comunidades dos q
quilombos. O texto integral do Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias estabelece que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Mattos
(2006, p. 106) apresenta ainda o decreto 4.887, de 20/11/2003, que regulamenta
o artigo constitucional, em termos legais, “a caracterização dos remanescentes
das comunidades dos quilombos será atestada mediante auto definição da própria
comunidade”, entendo-as como: grupos
étnicos-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida. São
hoje no Brasil mais de 1.500 comunidades certificadas pela Fundação Cultural
Palmares (http://www.palmares.gov.br/?page_id=88&estado=PA) Somente
no Pará são 161 comunidades cadastradas no site da Fundação Cultural Palmares.
Para Gomes (2003 apud MATTOS, 2006, p. 107) proliferaram-se acampamentos de
escravos fugidos, na fronteira entre o Pará e o Maranhão, bem como nas
cachoeiras do alto rio Trombetas. Para Gomes “quilombolas, grupos indígenas e
depois colonos e camponeses fizeram ali suas próprias fronteiras, as quais
foram marcadas por inúmeras experiências de lutas, de alianças e de conflitos”.
Conforme Martins, Schaan,
Veiga e Silva (2010, p. 117), o município de Gurupá está localizado na
confluência do rio Xingu com o delta do rio Amazonas. Sua área é de 8.540 km².
A população é de cerca de 25 mil habitantes. Limita-se ao norte com o Estado do
Amapá e município de Afuá, ao sul com os municípios de Melgaço e Porto de Moz,
a leste com Afuá, Breves e Melgaço, e a oeste com o Amapá e municípios de Porto
de Moz e Almeirim. Na figura abaixo apresentamos a localização em um mapa. A
comunidade São Pedro do Baca do Ipixuna iniciou-se no dia 12 de Março de 1972,
tendo como seus principais fundadores os senhores Antônio Nogueira, Binga de
Melo e Simão Alho. Na época, a comunidade iniciou-se com 15 famílias, os quais
trabalhavam em mutirões na roça das famílias da comunidade e aos domingos
faziam celebrações do culto (como ainda hoje). Tudo isso se sustentou durante
todos esses anos deixando a comunidade mais fortalecida. Houve mudança na parte
organizativa das famílias que se foram e as que surgiram deram continuidade à
tradição. A população chega a uma estimativa de 46 famílias, as quais lutam pelo
bem de todos. A comunidade hoje conseguiu manter sua
tradição, que é o ponto forte da mesma. Na comunidade São Pedro ainda se
festeja um único santo durante o ano, São Pedro, a primeira imagem trazida por
moradores da comunidade. A referida comunidade está
localizada a margem esquerda do Rio Amazonas, há 2 km da margem do rio Xingu,
no meio da floresta, divisa entre Gurupá e Porto de Moz. FIGURA 2 - Identificação
da comunidade São Pedro Bacá do Ipixuna como quilombo pela Fundação Cultural
Palmares (http://www.palmares.gov.br/?page_id=88#) 4. DO SIGNIFICADO DO NOME DOS LUGARES Segundo
o dicionário Houaiss a palavra serra é definida como “longa extensão de
montanhas, montes ou penedia com picos e quebradas”. Porém, poderia uma Serra
ser, de fato, uma mulher deitada? Povos indígenas do Rio Negro (Amazonas)
acreditam que a Serra do Curicuriari (São Gabriel da Cachoeira, AM) é uma
mulher deitada. Trata-se de uma das esposas de Basebó, o deus que ensinou a
cultivar as roças (FOIRN, 2014). O
significado da Serra e do Furo são diferentes para as comunidades citadas.
Conforme Pietroforte e Lopes Ninguém
imaginaria tratar-se de diferenças nos fenômenos naturais observados (por
exemplo, a serra e o furo de rio) nem tão pouco na acuidade visual de uns e de
outros povos. A estruturação do mundo em classes, ou seja, a maneira de ver é
que varia de uma cultura para outra, sem que se possa apontar quem é que está
com a razão nessa história (PIETROFORTE; LOPES, 2008, p. 116). Nome de lugares e seus significados na Amazônia Para
Alves et al. (s.d, p.1), a toponímia
(estudo sobre o nome dos lugares) pode ser um instrumento para se investigar o
processo de significação e percepção dos lugares. Para Leonardi (1999, p. 74
apud ALVES, s.d, p. 4), o nome dos lugares na Amazônia possui uma relação
íntima com a fauna da área, ou com alguma característica da água ou do solo. No
estudo de Alves et al. (s.d, p.10)
sobre topônimos na região norte do estado do Amazonas (interflúvios dos rios
Negro e Solimões), dentre as 956 toponímias estudadas prevaleceram aquelas
relacionadas a nomes de espécies e de vegetação. A figura abaixo mostra a
localização de ilhas cujos topônimos estão relacionados a nomes de animais
(camaleão, onças, etc.) Porém, na Amazônia, o
território também pode estar diretamente relacionado à mitologia e à
espiritualidade da sociedade que ali vive. Em estudo sobre a territorialidade e
a espiritualidade presentes nas narrativas do povo Uru-eu-wau-waw, do estado de
Rondônia, Silva (2013, p. 113) afirma que “as narrativas indígenas estão
imbrincadas de espiritualidade e contribuem no estabelecimento das relações
territoriais e do modo de se representar como coletivo e de se presentificar
com os demais coletivos”. Para o autor a
importância das narrativas indígenas, como fenômeno intrínseco da
espiritualidade, possibilita não tão-somente a compreensão sobre determinada
etnia, mas como elemento estruturante
que diz respeito a seus processos organizativos no espaço/território e no modo
de vida. (SILVA,
p.113) Ainda sobre a relação com
oterritório, espiritualidade e narrativas, vale apresentar o que dizem os
indígenas da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN, 2014), a
qual abrange povos de quatro famílias linguísticas diferentes: Tukano Oriental,
Aruak, Maku e Yanomami. São
as histórias de origens dos nossos antepassados contadas em diferentes versões
pelos vários povos da região. Essas histórias
são extremamente importantes e relacionam nossa vida cerimonial à vida
cotidiana. Um claro exemplo disso, é a relação das narrativas com nosso
território tradicional. Para nós indígenas do rio Negro, todo o território e
seus elementos originaram-se da ação de seres primordiais, cujos feitos
cristalizaram-se na forma de rochas, serras, praias, ilhas, cachoeiras, paranás
entre outros.As orientações dos rios ou dos elementos físicos que existem hoje
estão explicados nas narrativas, na forma de um conjunto sucessivo de
transformação, daqueles seres que habitaram o mundo desde o princípio. Os nomes
dos lugares sagrados nas línguas nativas da região também são um registro desse
conhecimento, pois a sua interpretação pode revelar entendimentos locais sobre
a conformação das paisagens da região, assim como das suas propriedades
invisíveis e dos cuidados necessários para habitá-las e usá-las. A Federação das organizações
indígenas do Rio Negro (FOIRN) explica que, de acordo com as narrativas de
vários povos do rio Negro, a Serra é uma das esposas de Basebó, o Gente Maniva,
o deus da sustentabilidade que ensinou os povos a cultivar as roças. A
Serra do Curicuriari é retratada pelo artista desana Feliciano Lana da seguinte
forma: Figura 4 – representação da Serra do Curicuriari para o artista da etnia desana Figura
5 – Imagem da Serra do Curicuriari (São Gabriel da Cachoeira, AM) Veremos
que as narrativas resultantes das entrevistas realizadas na comunidade São
Pedro Bacádo Ipixuna associam a origem do lugar Castanhal do Peru a nomes de
animais conforme prevê o trabalho de Alves et al para os topônimos da região
amazônica. No entanto, tais animais que aparecem nas narrativas obtidas podem
ser considerados mitológicos. Vimos que assim como os povos indígenas do Rio
Negro associam o território a explicações mitológicas, os moradores da
comunidade São Pedro Bacá também explicam o surgimento da comunidade por meio
da narrativa sobre um animal mítico. 5. LUGARES E ANIMAIS MITOLÓGICOS NA NARRATIVA DA
COMUNIDADE SÃO PEDRO Segundo
dona Teodora Clemente, Em
um determinado dia, distante de onde vivia algumas famílias naquela época, um
senhor chamado José Alho, estava no inicio da floresta apanhando castanha consigo.
Levava um facão, um rifle e seu aturar (paneiro)
onde colocava a castanha para transportar até o local da venda. Quando já
estava a caminho ouviu um grito diferente de uma pessoa. Aí veio a sua mente
que era o bicho que anda atrás das pessoas que iam até aquele lugar, chamado
castanhal, e cada vez vinha se aproximando para onde o homem vinha. Nesse
momento, não pensou três vezes abaixou o aturar deu duas volta sobre o aturar,
seu facão da bainha, engatilhou o rife e se escondeu detrás de uma árvore, de
lá ficou só observando e imaginando que bicho seria, já que ainda ninguém tinha
o visto, porque quando escutava o grito não tinha coragem para esperar, deixava
o aturar com a castanha e se desembestava na carreira. Chegando na beira do
igarapé empurrava a canoa e socava-lhe remo, socava-lhe remo, e o bicho fica
gritando na beira do igarapé. Foi dessa vez quando o homem viu aquele enorme
peru da altura de um homem com aproximadamente 1.80 m, chegou perto do aturar,
ficou rodeando quando sentiu para onde o homem tinha saído,que abriu a boca
para gritar o homem já estava como o rife engatilhado e a bala na agulha. Só
fez disparar dentro da boca do peru e ficou esperando a reação, se caia então
batendo as asas. Nada, não viu nenhum movimento, só escutou quando gritou muito
dentro da floresta. Incrível foi que não deixou nada arranhado na terra e nem
sequer algum pingo de sangue. Então
a partir dai nunca mais ninguém a viunem escutou qualquer remorso desse
misterioso peru. Por
esse motivo deu-se o nome para um desses castanhais, de “Castanhal do Peru”,
que até hoje é por esse nome que é conhecido, assim como outras partes do
castanhal grande que possui nome de animais, porque naquele tempo existia muito
e por alguém ver ou animais de tal tamanho como no caso do peru. Observa-se que a nomeação do lugar
Castanhal do Peru tem como fonte a história de um misterioso peru, com cerca de
1, 80 m que amedrontava os moradores da comunidade São Pedro. Vimos que a
mitologia é uma fonte rica para nomeação de lugares entre os povos indígenas da
Amazônia. A seguir apresentamos outros fatos da narrativa possivelmente
relacionados à cultura indígena. “Nesse momento, não
pensou três vezes abaixou o aturar
deu duas voltas sobre o aturar
(...)”. Em toda a narrativa, nota-se certo “poder” relacionado ao aturar.
Neste trecho é possível ver que o personagem tem uma forma não visível
ao Peru. Além da invisibilidade, nota-se uma ação mágica ou encantamento do aturar, pois faz o peru perder a direção
do homem, e para o mesmo achar a direção deve rodear o objeto encantado. Ainda,
pode-se afirmar que o encantamento causado pelo aturar favorece o homem em
relação ao peru, ou seja, quem o salva é o aturar. Entre diferentes povos
ameríndios, imagens e artefatos têm agência e intencionalidade. Segundo Lagrou
(2010, p. 02), artefatos e grafismos são materializações densas de complexas
redes de interações entre diferentes grupos indígenas. Entendemos que tais
redes de relação abragem ou penetram diferentes cosmos. Entre Wauja (grupo Arawak, Alto
Xingu), máscaras, panelas e, também, desenhos em papel de grande apelo plástico
(BARCELOS, 1999), representamos apapaatai,
seres sobrenaturais
causadores de doenças e passíveis de serem apaziguados através da promoção de
grandes festas em sua homenagem. Neste caso, são fabricadas suas ‘roupas’ encenadas
na forma de máscaras de grandes proporções. (LAGROU, 2010, p. 12) O
aturar poderia ser interpretado como
o agente através do qual o homem é salvo do Peru, permitindo a criação ou
gênese da comunidade. 6. CONCLUSÃO Assim como várias comunidades da
Amazônia, o quilombo São Pedro também apresenta locais com nomes de animais.
Vimos que os povos indígenas do Brasil relacionam os locais com as suas
crenças, sua espiritualidade, manifestadas nas narrativas. No Rio Negro, a
serra do Curicuriari tem sua origem explicada em uma história que relaciona a
serra à esposa do deus que ensinou a cultivar as roças, chamado Basebó. No caso
do castanhal do Peru, o nome dado ao local tem origem na narrativa sobre um bicho
mitológico que assustava os moradores do local. REFERÊNCIAS ALVES, J. A et al. Toponímia e Identificação,
Natureza e Significado dos Lugares na Amazônia. In: I Seminário de Geografia e Cultura na Amazônia, 2008, Manaus - AM.
I Seminário de Geografia e Cultura na Amazônia, 2008. FEDERAÇÃO DAS
ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS DO RIO NEGRO. LAGROU, E. Arte ou Artefato? Agência e
significado nas artes indígenas. Revista Proa, Unicamp, n°02, vol.01, 2010.
Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/proa MARTINS, C;
SCHAAN, D; VEIGA E SILVA; W. Arqueologia do Marajó das Florestas: fragmentos de
um desafio. In: SCHANN, D; MARTINS, C. (Org)
Muito Além dos Campos: Arqueologia e história na Amazônia Marajoara. Belém:
GKNORONHA, 2010. MATTOS, H. Remanescentes das comunidades
dos quilombos: memórias do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. REVISTA USP, São
Paulo, n.68, p. 104-111, dezembro/fevereiro 2005-2006. PIETROFORTE, A.V; LOPES, I. A semântica lexical. In:
FIORIN, J (org.) Introdução à
Linguística: princípio de análise. São Paulo: Contexto, 2008. SILVA, A. A. Espiritualidade, territorialidade:
interfaces das representações culturais coletivas indígenas. RAEGA, Curitiba, n. 27, 2013, p.
111-139.
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