Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 17 Vol. 2 - 2015 - Julho/Dezembro



A racionalidade como destruição humana na capital da dor

 

Renan Araújo Kell

 

Quem nunca se perguntou ao ouvir o trecho da música Eduardo e Mônica da Legião Urbana que diz que “o Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas a Mônica queria ver um filme do Godard”, afinal de contas quem é esse tal Godard?

Jean-Luc Godard é um dos maiores cineastas da história. Francês de nascença e sem pátria por escolha própria; escolha esta que se deu realizada ao longo de um processo de reflexão sobre as contradições e problemas que uma pátria e um sentimento nacionalista possam causar. O diretor nasceu na Paris de 30 e ao longo da sua trajetória dirigiu mais de quarenta filmes, entre eles Acossado, O desprezo, Bande à Part, A chinesa, Alphaville entre outros. O diretor foi um dos expoentes do chamado movimento artístico francês Nouvelle Vague (Nova Onda) iniciado em 1958, que contou com a participação de diretores renomados como François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol entre outros, apoiados principalmente pela revista Cahiers Du Cinéma.

Para os cinéfilos que tentam escolher o melhor filme de Godard o desafio é gigantesco, dada a vastidão da obra e grandeza do diretor; porém destacarei um filme que em minha opinião está entre os três melhores do diretor, o filme chamado Alphaville – A capital da dor, lançado em 1965.

Esta obra prima de Godard apresenta uma profunda abordagem sobre o tema da reificação, uma forte crítica ao analisar os aspectos do racionalismo e também a problemática do avanço tecnológico interligado e/ou excludente do sentimento humano. O filme está longe de ser uma superprodução como “Acossado”, contudo a narrativa e a câmera na mão do diretor não permitem transpassar esse problema de orçamento.

O filme gira em torno das personagens Lemmy Caution (Eddie Constantine), um detetive que tem como objetivo principal destruir o computador que controla Alphaville, chamado Alpha 60, o cientista von Braun (Howard Vernon para o qual Godard se inspirou no cientista de mesmo nome, Wernher von Braun, (um dos principais engenheiros construtores de foguetes para a Alemanha Nazista), Natacha (Anna Karina), filha do cientista von Braun e figura emblemática na narrativa do filme, assim como a beleza ímpar da própria atriz.

O detetive Caution é enviado a cidade Alphaville para destruir o computador Alpha 60. Computador de uma voz inesquecível aos que já tiveram o prazer de assistir ao filme, sua persona se assemelha muito ao Grande Irmão do livro 1984, de George Orwell. Na medida em que ele é a representação da racionalidade na cidade de Alphaville, onde os sentimentos dos seus habitantes são proibidos e é executada a sentença de morte aos que apresentarem qualquer tipo de sentimento ou palavra que não esteja de acordo com a ordem da cidade. Num dado momento do filme, Caution dialoga com Natacha (Anna Karina) sobre a questão da consciência, e ela afirma que na bíblia (dicionário em Alphaville) não existe essa palavra.

Os habitantes de Alphaville se assemelham a máquinas programadas para agir e pensar de forma racional, e obedecer sistematicamente a conduta imposta pela racionalidade de um computador. Godard se torna emblemático por tratar da questão da reificação dos indivíduos e por mais que o autor não tivesse a compreensão do conceito, sua percepção aguçada introduz essa abordagem no filme para falar sobre o ser humano e a forma do pensar.

Permiti-me utilizar o conceito de reificação (falsa consciência), abordado pelo pensador György Lukács no livro "História e Consciência de Classe", pela profundidade que carrega a palavra, assim como a profundidade que se encontra na obra cinematográfica de Godard. Em um trecho desse livro é colocado: “Somente para as etapas da consciência de classe é que se realizou a unidade real, descrita por Marx, da teoria e da prática, a intervenção prática real da consciência de classe na marcha da história e, por aí, a revelação prática da reificação”, por mais que o filme Alphaville não fosse uma produção do auge do pensamento político de Godard, que só aconteceria pós Maio de 68.

Godard nos mostra uma profunda preocupação com o ser humano e com o caminho seguido pela humanidade. A preocupação do diretor está muito mais voltada para o desenvolvimento do homem do que para o desenvolvimento da tecnologia, o que fica patente na composição do personagem, Alpha 60.

Podemos associar o computador Alpha 60 de Alphaville com o computador do filme "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, chamado HAL 9000, que parte do mesmo pressuposto do controle do pensamento do homem pela tecnologia, materializada nos computadores em questão. O filme de Kubrick é outra fonte interessante para quem se interessa pelo debate acerca da constituição do pensamento humano.

A crítica de Godard quanto a racionalidade espelhada no computador/ditador Alpha 60 não é a-histórica, está fortemente alicerçada na tragédia das duas grandes Guerras “Mundiais”. Já que o imperialismo, nas guerras de ontem e de hoje se utiliza desta mesma racionalidade para promover a aniquilação de povos.

Os diálogos mais emblemáticos da obra se dão entre Caution e Alpha 60: o computador extrapola a compreensão de ser único, representa a constituição social de todos os moradores de Alphaville; é ao mesmo tempo o fomentador da moral e carrega em si mesmo os pressupostos que irão destruí-lo. A lógica do computador se apresenta na seguinte interlocução: "mesmo se a significação das palavras e expressões não é mais percebida, uma palavra isolada ou um detalhe isolado num desenho podem ser entendidos, mas a significação do conjunto escapa. Uma vez que nós conhecemos um, nós acreditamos conhecer dois, porque um mais um é igual a dois. Nós esquecemos que antes é preciso saber mais". Ao longo da obra, os questionamentos de Caution ao computador se acirram como em uma batalha do sentimento humano (ora expressado às claras pelo sentimento que só os humanos poderiam compreender) contra a métrica e a linearidade racional de Alpha 60.

A palavra "por que" está proibida em Alphaville, assim como as palavras amor, consciência, ternura etc. Natacha, ao questionar os costumes de Alphaville com um único "por que", foi interrompida por um apito sonoro que indicava uma anomalia na cidade.

A poesia do filme está ligada diretamente ao poeta Paul Éluard. Diversos trechos de poesias suas são fixados na filmagem, dando base ao enredo e propiciando um acúmulo das representações do ser humano como humano, em contrapartida a reificação dos demais habitantes de Alphaville.

A estética futurista, muito mais pela narrativa do que pelo cenário, prende os espectadores do começo ao fim, num filme preto e branco, com jogos de luz representando o movimento da cena. O enredo do filme assemelha-se ao livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, por conter uma forte narrativa em torno da coerção do Estado frente aos habitantes que lá residem.

É importante frisar o papel do cientista von Braun como o programador de Alpha 60, o cientista é o fio condutor da trama e permite desmistificar a caracterização do computador como um ser com vida própria. De igual importância é compreender como a máquina dominou o homem, e o processo de reificação tomou conta das relações sociais que interagem dentro e fora da obra de ficção de Godard.

Uma questão fundamental que não poderia deixar de ser citada é a mercantilização do prazer, que é simbolizado com bastante força no filme como o código de barras localizado na nuca das personagens do sexo feminino; assim como pela mulher aprisionada em uma redoma de vidro, como mais uma mera mercadoria em uma das várias vitrines de uma grande avenida. Esta obra de extremamente rica em reflexões não deixa de fora a relação de gênero e a crítica à representação do humano, principalmente do sexo feminino que é retratado como uma simples mercadoria, em uma sociedade patriarcal, machista e preconceituosa com as diversas formas e representações do Humano.

Filmes como os de Godard e dos adeptos da Nouvelle Vague, não trabalham com a necessidade de um clímax para as suas obras. Portanto, Alphaville é uma mistura de tensões e de descobertas que deixam de lado a lógica hollywoodiana de que em um ápice ocorrerá em uma explosão e o vilão derrotado pelo herói. Talvez por estar tão longe do cinema mercantil é que filmes como Alphaville são tão desconhecidos do grande público.

A sétima arte nunca deixará de existir enquanto houverem filmes como os de Godard. Não apenas pela grandeza do diretor, mas pela capacidade que o cinema tem de abordar de forma tão sensível, questões tão brutais como os mecanismos de controle, presentes nos costumes e nas conveniências.

Acredito que agora quando o leitor for ouvir Eduardo e Mônica novamente irá compreender um pouco melhor o porquê da referência direta de Renato Russo à Godard.

Deixo nas mãos dos leitores e cinéfilos o uso que farão de Alphaville e das obras de Godard, pois o julgo das mazelas e da reificação dos indivíduos são responsabilidade dos que são conscientes das correntes que aprisionam mentes e punhos para a construção de uma nova sociedade, uma sociedade onde o humano não seja cada vez mais desumanizado.

     Recebido em abril de 2015. Aceito em maio de 2015.