Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 17 Vol. 2 - 2015 - Julho/Dezembro
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Libertador, ou o estranhamento de
nós mesmos
Luiz Guilherme Veppo
Libertador é
uma coprodução que envolveu na sua realização quatro países (Venezuela, Espanha,
Estados Unidos e Alemanha) e gerou o filme mais caro da história do cinema
latino-americano. Segundo a reportagem
do jornal “El Pais” da Espanha, o filme custou 50 milhões de dólares - cifra
bastante distanciada da realidade do cinema em nuestra América. Considero ser importante começar por aqui, porque
a pujança e a grandiosidade é talvez uma das mais fortes marcas do filme de 119
minutos dirigido por Alberto Arvelo. Este
orçamento tão expressivo se reflete em uma produção que não fica devendo em
nada ao cinema hollywoodiano: estão presentes à
todo instante locações deslumbrantes (radicadas em sete países); o elenco é
composto por uma safra de atores latinos que
encontram certa colocação no cinema estadunidense (por exemplo, o protagonista
e produtor, Edgar Ramirez, talvez tenha
um rosto familiar para alguns, já que fez filmes como: “O últimato Bourne”,
“Fúria de Titãs 2” e outras coisas do tipo); assim como a reconstituição da
época por meio dos figurinos faustuosos. Enfim, o filme possui uma estética
muito palatável, bastante próxima do cinema que hodiernamente tem a maior
colocação no mercado. Também me parece importante pontuar que esta
produção não é um raio num dia de céu azul. Libertador
é mais um dos filmes que recentemente vem sendo produzidos na América do
Sul com o intuito de colocar em evidência o passado do Continente, através da
trajetória de alguns de seus insignes personagens. Os quase incógnitos no
Brasil, Artigas (mítica liderança da luta de independência uruguaia), San
Martin (herói da libertação Argentina e partícipe do processo peruano e
chileno) e José Martí (personagem fundamental da luta de libertação cubana) já
ganharam as suas cinebiografias e a mesma produtora responsável por estas,
realizará ao todo, oito filmes sobre os “heróis da libertação” da América. O
representante do Brasil será o também mitológico Tiradentes. Contudo,
estas outras cinebiografias possuem
orçamentos muito mais modestos que Libertador.
Para se ter uma ideia da disparidade entre os filmes que fazem parte do Projeto
Libertadores e Libertador, um único dado é suficiente: a cinebiografia
de Tiradentes, segundo a reportagem de “O Globo” de 25/03/2011, terá como teto
para o seu orçamento três milhões de reais. Seguramente, Libertador possui
um orçamento 20 vezes maior do que os demais filmes que compõem a “série
Libertadores” - entre eles incluo também o filme sobre Bolívar que compõe o
projeto Libertadores, que é muito mais modesto que o filme de Alberto Arvelo. O
que me deixa com a pulga atrás da orelha para saber como foi possível a
realização deste filme. Uma questão pelo
menos me deixou muito curioso: existe alguma relação entre Libertador e o governo venezuelano? E, se existe, qual é? Cabe
ponderar que o questionamento não é reflexo de mera curiosidade, mas uma
inquietação gerada pelos ocorridos do ano de 2013. Tendo em vista que este ano é crucial para o bolivarianismo, pois
é nele que a Venezuela mergulha em uma profunda instabilidade econômica e numa
conjuntura de ebulição política com a morte de Hugo Chavez em março. Portanto,
tendo em vista a dimensão da crise econômica, como é possível produzir um filme
de 50 milhões de dólares em um país em que
o dólar está desde então extremamente supervalorizado? Esta é uma pergunta que, por ora, infelizmente não tenho como
responder, já que demandaria uma pesquisa muito mais aprofundada do que a que
realizei. Embora me pareça bastante razoável supor que os chavistas (que se
reivindicam bolivarianistas, é bom pontuar) tenham buscado, neste momento de
polarização da luta política, lutar com todas as armas; e um filme como este, na minha modesta opinião, é uma baita arma
para a luta ideológica. Conjecturas
à parte, agora gostaria de entrar no filme de fato e pincelar alguns elementos
do enredo que me parecem significativos. Está muito além das possibilidades
desta resenha entrar numa discussão mais profunda sobre as possíveis
incoerências historiográficas da película. A trajetória de Simón Bolívar
(1783-1830) foi retratada de diversas formas ao longo dos dois últimos séculos
e a consciência da magnitude do debate sobre a vida do “Libertador” não me
permite, com o pouco que conheço sobre a sua história, defender qualquer
posição mais incisivamente. Acredito que sejam boas demonstrações do quão
heterogêneo é o legado e as perspectivas sobre a trajetória de Bolívar: as
dezenas de estátuas de Simón espalhadas por toda a América do Sul (o que
caracteriza a apropriação que as elites liberais fizeram da sua figura para a
construção das tradições nacionais); a atual reivindicação do bolivarianismo na
Venezuela (apropriação mais progressista, mais próxima de um social
democratismo); além da perspectiva
extremamente crítica desenvolvida por Marx, no verbete dedicado ao ilustre
venezuelano, escrito em 1858 para a New American Cyclopedia. Estes
poucos exemplos, ao meu ver, ilustram bem o quão espinhoso é o debate dentro da historiografia, assim como é
altamente plural a sua apropriação política posterior, de modo que procurarei
me concentrar nos elementos menos polêmicos do filme. O
Bolívar do filme está claramente próximo do que me arriscarei a chamar de
apropriação bolivariana. Embora seja um personagem um pouco complexo - é
perpassado em alguns momentos por dilemas que tem claramente o objetivo
evidenciar que ele era de carne e osso -, Bolívar é durante todo o filme
sinônimo de grandeza, visionarismo, intrepidez; valor, fibra moral etc. etc.;
enfim, um clássico herói! Contudo, Simón não é retratado como
um sujeito para além do seu tempo. O desenrolar da sua trajetória através da
interação com alguns personagens mobilizados pelo diretor são fundamentais para
a sua evolução enquanto sujeito histórico, pois suas influências sobre “o
libertador” são determinantes para a trama. A primeira personagem a aparecer
com destaque no filme é a escrava Hipólita, que assume o papel de mãe do
garotinho Simón, quando ele ainda em tenra infância se torna órfão. Eu não
encontrei nenhuma referência à Hipólita para atestar a sua historicidade, mas a
opção do diretor por envolvê-la na história, ao meu ver tem a clara intenção de
humanizar Bolívar e mostrar o quão avançado ele era para o seu tempo. É
importante não perder de vista que no início do século XIX a escravidão ainda
imperava em praticamente todo o continente americano, salvo no Haiti e norte
dos EUA. Outro
personagem importante e que talvez cumpra o pior papel para o filme é o da
primeira esposa de Bolívar, Maria Teresa, interpretada pela também
hollywoodiana Maria Valverde. O diretor Alberto Arvelo atribuiu à pequena
participação desta personagem um papel de
suma importância para a trama. Pois, é
com a sua precoce morte que Bolívar (até aí nada além de um aristocrata bon vivant) passa a se envolver visceralmente com a luta de independência da
Coroa espanhola. Nesta passagem está
fortemente presente a ideia de que é por não ter mais nada que o sustente no
mundo depois da perda do seu grande amor que Simón se torna “El Libertador”. O
enfoque dado à esta desilusão amorosa é
extremamente piegas e prescindível para o desenvolvimento da história. Além do
tratamento dado ao romance me parecer uma tentativa de tornar o filme mais
apetecível ao grande público, a forma como é tratada a superação do luto pelo
protagonista reforça algumas ideias muito comuns entre os setores mais
conservadores e reacionários da sociedade de que são apenas os aventureiros e
desesperados que se envolvem com a luta social. Li alguns textos sobre El
Libertador para produzir esta resenha. Entre os autores que li, o único que
menciona Maria Teresa é Marx e mesmo assim a referência é extremamente pontual;
não existe qualquer relação entre a precoce morte de Maria Teresa e o futuro de
Bolívar como lutador social. Como já disse anteriormente, não sou especialista
no assunto, mas penso que o enredo não teria qualquer prejuízo se o filme
tivesse ficado sem isso. A
película também sofre de alguns anacronismos, que ao que me parece poderiam ser
justificados pela razoável hipótese de que os realizadores tinham o interesse
de influenciar a conjuntura sociopolítica da Venezuela. Estes anacronismos
aparecem em alguns diálogos que fogem bastante das discussões próprias ao
século XIX, assim como transparecem em algumas locações (como as cenas rodadas
às margens de alguns rios que apenas conservam suas matas ciliares; algo
impensável para o século XIX!) e, na minha modesta opinião, principalmente com
o personagem do professor. O Maestro
Rodriguez (este sim aparece na bibliografia que consultei como uma
importante referência para Bolívar) é no filme a materialização das influências
progressistas sobre o protagonista. Sua relação com o enredo viabiliza os
diálogos mais profundos, que procuram evidenciar o legado progressista e
libertário de Bolívar. No entanto, pelo pouco que conheço sobre a teoria
política do início do século XIX, me parece que as teses e os diálogos
desenvolvidos por meio deste personagem estão um pouco descolados da realidade
do período; embora sejam debates bastante instigantes para os dias de hoje. Também
enredado no anacronismo (apesar de em menor medida) está o personagem interpretado
por Danny Huston, Martin Torkington, que personifica a influência do capital
inglês na evolução do processo político na América do Sul, num momento em que a
influência espanhola no Continente começa a declinar. Este personagem também é
de extrema importância para a trama e a sua participação está diretamente
ligada à leitura que o diretor faz dos limites colocados para a realização dos
desígnios de Bolívar. Na minha opinião, chega a ser possível afirmar que o
diretor atribui o desenlace trágico da história de Bolívar à sua ruptura com
Torkington, pois não é à toa esta é uma das últimas cenas do filme. É
interessante notar que Martin está presente durante todo o filme - mesmo quando
não está em cena - como uma espécie de espectro que protege e auxilia Bolívar. Quanto
aos últimos dias de Bolívar, mais uma vez, diferentes teses dividem a
historiografia. A História Oficial afirma que Simón teria falecido em
decorrência de uma tuberculose que o acompanhara durante seus últimos anos. Os
diretores, como o próprio Hugo Chavez, defendem a tese de que Bolívar teria
sido assassinado em uma conspiração realizada pelas elites criollas, que viam
no “Libertador” uma ameaça à conservação dos seus privilégios. Falei
diretamente de Chavez neste ponto, porque no ano 2010 os restos mortais de
Bolívar chegaram a ser exumados, numa tentativa do Estado venezuelano de pôr um
fim à esta polêmica. A exumação, para a infelicidade de Chavez, não foi
conclusiva e manteve o campo aberto para as duas possibilidades. Independentemente
disto, Chavez morreu em 2013 defendendo a tese de que a sua grande inspiração
havia sido vítima da sanha arrivista dos seus opositores. Libertador
com certeza não é a melhor cinebiografia já produzida. É um filme latino
americano adaptado à linguagem e a lógica do cinema hollywoodiano (embora com
uma história bem mais interessante do que a grande maioria explorada na
atualidade pelas produções estadunidenses). Evidencia o que já é sabido há
muito tempo: o cinema da América Latina não deixa nada a desejar frente ao
cinema dos EUA e quando tem os recursos necessários consegue fazer filmes tão
palatáveis quanto os maiores block
boster´s da atualidade. Libertador, embora não seja um primor, nem de
longe pode ser tido como um filme vazio; o contraponto com os enlatados
hollywoodianos chega a ser um pouco maldoso da minha parte. O filme tem
passagens de grande sensibilidade e muito tocantes, como as passagens que
retratam a formação do Exército Republicano; assim como a cena em que Bolívar
disputa o coração dos soldados com o General Santander, que queria impedir que
suas tropas atravessassem a fronteira. Infelizmente,
a obra não está acessível ao grande público, foi exibida em poucas salas de
cinema do Brasil e jamais passará numa “Tela Quente”, ou em qualquer programa
de cinema dos grandes canais de TV - antes das 3 da matina. Pois explicita a
importância da luta diuturna contra os opressores, assim como mostra que, se
hoje vivemos uma realidade de ampliação de direitos em comparação com o século
XIX é porque trajetórias como a de Bolívar constituem o passado do nosso
Continente. Portanto, este contraponto histórico, torna clarividente a
necessidade de novas lutas para podemos continuar a avançar em direção à um
mundo melhor. Concluo
dizendo que Libertador é uma ótima indicação para os que
acreditam que o conhecimento histórico é uma importante ferramenta de luta e se
interessam por começar a debater e a desvendar a riquíssima História deste
continente que ainda se conhece muito pouco. A dificuldade de falar sobre
figuras como Bolívar, dimensiona o desconhecimento da nossa história e
evidencia o quão necessário são filmes como este. Recebido em abril de 2015. Aceito em maio de 2015
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