Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.



Os artefatos: um reflexo do habitus das elites alagoanas do século XIX


Jarisson Lima Dos Santos Albuquerque

 Resumo: Este artigo se situa num período em que graduais mudanças afetavam o padrão de vida das elites produtoras de açúcar, que tinham nas terras e nos escravos o símbolo de sua nobreza. Ao longo do século XIX, no entanto, essa dita nobreza sofreu um duro golpe e começou a perder espaço, contudo ainda lutavam para manter sua imagem, poder e influência. Por meio da análise arqueológica, que tem nos artefatos os elementos para pensar socialmente, juntamente com o conceito de habitus, necessário para refletir a respeito do desenvolvimento das maneiras de pensar e agir, busca-se compreender a forma com que se modificaram certos comportamentos e costumes cotidianos dos donos de engenho do norte de Alagoas.

 Palavras-chave: Artefatos, Engenho, Habitus.

Abstract: This article is in a period in which gradual changes affected the living standards of Alagoas elites, in what slaves and lands were the symbol of their nobility. Throughout the nineteenth century, however, this so-called nobility suffered a blow and started to loose space, yet still struggled to maintain their image, power and influence. Through archaeological analysis, wherein artifacts are the elements to think socially, along with the concept of habitus, needful to reflect on the development of ways of thinking and acting, seeks to understand the way that certain behaviors and everyday customs of the plantation owners from the north of Alagoas has changed.

Key words: Artifacts, Mill, Habitus

 

 

Arqueologia e história: uma relação de intimidade

 

            Jacques Le Goff, em História e Memória, afirma que o documento é como um monumento, é o resultado dos esforços das sociedades históricas para impor ao futuro uma determinada visão de si, sendo estão imposição voluntária ou involuntária (Le Goff, 1990:548), sua posição, busca se distanciar de todo e qualquer tipo de noção positivista de uma aparente neutralidade. Segundo Le Goff, o documento não é inócuo, é o resultado de uma ação, de uma montagem, produzido em um determinado contexto, com juízos dos mais variáveis possíveis.

Não obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos não aparecem aqui e ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutável desígnio dos deuses. A sua presença ou a sua ausência nos fundos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que não escapam de forma alguma à análise, e aos problemas postos pela sua transmissão, longe de serem apenas exercícios técnicos, tocam, eles próprios, no mais íntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da recordação através das gerações. (Marc Bloch, 1941-42, p.29-30, apud Jacques Le Goff, p. 544, 1990)

O historiador é o responsável pela construção do conhecimento histórico, e a interpretação destas fontes serão certamente influenciadas por suas posições, sejam elas teóricas, metodológicas, políticas, econômicas ou culturais. Uma vez realizado este trabalho, aquilo que está posto aparenta assumir a forma de passado, e faz desaparecer todo o laborioso processo de desenvolvimento e construção historiográfica, parecido com o processo de produção de mercadoria, onde os meios pelos quais são criadas fazem desaparecer o caráter social do trabalho dos homens; de certa forma, algo análogo acontece com a operação historiográfica, que depois de realizada, apaga todos os procedimentos anteriores que foram necessários para chegar ao resultado final da produção.

Outra problemática bastante discutida por pensadores como Marc Bloch e Jacques Le Goff se refere a noção de documento, do que poderia ser tido como fonte de análise historiográfica, o foco sai apenas do documento escrito em si, com o intuito de se afastar da noção elitizada do “fazer história” como algo de exclusividade da elite letrada, a fim de expandir as fontes históricas. Há então, como pontua Muniz (1999:34) uma desierarquização do documento, este podendo ser um filme, uma poesia, uma música ou um artigo de jornal; no âmbito da história, todos são discursos que produzem realidade e que são ao mesmo tempo produzidos em determinada condição histórica.

            “Fazer história”, para Certeau (1982:77) é uma prática, muito antes de uma interpretação, esta ação é mediatizada pelo uso de diversas técnicas, as quais possibilitam a construção do corpo interpretativo da história, contudo essas técnicas são relegadas em segundo plano, e são colocadas em uma posição de subordinação a história, são classificadas como “ciências auxiliares”, sejam elas a paleografia, a diplomática, a numismática, a informática, o folclorismo, ou ainda no caso em questão, a arqueologia; onde as opiniões divergem se ela seria ou não um apêndice da história, contudo, como afirma Jacques Le Goff:

“O primeiro diz respeito a arqueologia. O meu problema não é saber se ela é uma ciência auxiliar da história ou uma ciência independente. Apenas faço notar como o seu desenvolvimento renovou a história. Mal deu seus primeiros passos, no século XVIII, ganhou logo o vasto campo da Pré-história e da Proto-história e renovou a história antiga”. (Le Goff, 1990:108)

            O ato de desierarquizar os documentos, abre espaço para uma gama bastante vasta de fontes históricas, é nesse contexto que se abre a possibilidade de exploração de outros tipos de fontes de interpretação do passado que possam atuar, em pé de igualdade com a documentação escrita. Assim como os documentos escritos são interpretados, esses outros tipos de fonte devem também ser examinadas por via de um olhar crítico. A operação historiográfica procura se apossar de elementos “naturais”, transformando-os num ambiente cultural, pois de acordo com Michel de Certeau:

“De resíduos de papeis, de legumes, até mesmo das geleiras das “neves eternas”, o historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza. Participa do trabalho que transforma a natureza em ambiente, e assim modifica a natureza do homem. Suas técnicas o situam, precisamente, nesta articulação. Colocando-o ao nível desta prática, não mais se encontra a dicotomia que opõe o natural ao social, mas a conexão entre uma socialização da natureza e uma “naturalização” (ou materialização) das relações sociais”. (Michel de Certeau, 1982, p. 78)

      

           Ainda segundo Certeau (1982:79), o historiador é capaz de traduzir uma linguagem social para outra, transformando fenômenos sociais em objetos da história, está habilitado ainda, por meio de uma articulação entre natureza e cultura, a transformar os componentes dos campos naturais em elementos culturais, na medida em que é comum que certos objetos que fazem parte da vida de alguém, por vezes assumam certo significado que vão além da utilidade objetiva.

            A articulação entre natureza e cultura, não parte de um ponto de vista explicativo a partir de leis, a forma de proceder não é a mesma das ciências da natureza, pois se assim fosse, impossibilitaria uma interpretação que procura observar a vida enquanto processo social e afetivo.

            Nesse sentido, o leque de possibilidades de fontes de interpretação histórica aumenta de maneira bastante significativa. A cultura material, enquanto fonte de interpretação, enquanto documento, se apresenta como algo de potencial uso na interpretação da história.

 

Cultura material

 

            Em Domínios da História (1997), Mary del Priore, sustenta que para que o historiador seja capaz de estudar e explicar o cotidiano das populações, seria necessário a união com os estudos arqueológicos da cultura material, valorizando os menores e mais simples utensílios domésticos, a mobília, instrumentos de trabalho, restos de suas dietas alimentares, ou quaisquer outros tipos de objetos que fossem de uso rotineiro.

            A arqueologia então tem como foco principal os estudos a respeito da materialidade deixada pelo homem ao longo do tempo, privilegiando ainda o ambiente em que se localizam esses restos materiais, pois o contexto em que se encontram esses materiais é de suma importância, algo que não pode ser dissociado do estudo arqueológico, volta também seu olhar para a arquitetura, os monumentos, ou todo e qualquer remanescente que tenha sofrido ação do homem; todo esse conjunto faz parte da cultura material, “os restos arqueológicos são o produto de feitos histórico-sociais do passado (...) são testemunhos” (Boschin, 1991: 81, apud Reis, 2010:81). No entanto, não é uma tarefa simples trabalhar a cultura material, pois:

Uma das categorias da teoria arqueológica que talvez provoque as tais subversão e ambiguidades apontadas é a ‘cultura material’. Aqui sim há polissemia de acordo com a posição teórica do arqueólogo. Cultura material: reflete uma sociedade, dissimula efeitos de poder social, pode ser lida e transformada em texto, são os vestígios materiais do passado, é a agente ativa da vida humana, está significada, simbolizada carregada e imbuída de emoções, de estética, de relações socioculturais-crenças, etc. (Reis, José Alberione, 2010, p. 82)

            Alguns arqueólogos da década de 80 começaram a enfatizar o caráter simbólico da cultura material, faziam frente a ideia neopositivista de que os artefatos eram simples formas de adaptação ao meio, acreditavam que esses fragmentos de atividade humana podiam também exprimir significados, logo, as formas, decorações, pinturas, poderiam ultrapassar o quesito de utilidade, dando lugar a uma relação mais íntima entre sujeito e objeto. (Johnson, 2000:133)

            A interpretação arqueológica parte do pressuposto que a cultura material enfatiza como os objetos aparentemente inanimados, juntamente com o ambiente, agem em conjunto sobre os indivíduos numa relação dialética, mudando então o foco de antigas perspectivas mecanicistas da arqueologia, numa ótica diferente daquela que tem o sujeito como produtor e possuidor do objeto, que o usa segundo sua vontade; para a concepção do objeto como atuante, formador, como algo que não é simplesmente coisa com função prática. (Woodward, 2007:3)

            A cultura material, é vista como relevante para o conhecimento histórico na medida que estes objetos são resultado das atividades realizadas pelos indivíduos. Diariamente pessoas convivem, se relacionam e criam laços umas com as outras; esses elos, são criados através das ações diárias como: trabalho, consumo e lazer, por exemplo. Essas atividades, são em sua maioria, mediadas por objetos de uso habitual, sejam eles quais forem. Sendo estes objetos atuantes nas relações desenvolvidas pelos indivíduos cotidianamente, num universo que é tanto de palavras, quanto de coisas, é possível considerar que possuem valor histórico (Meneses, 1997:2).

            Essas “coisas velhas” de fato geram essa controvérsia na mente dos indivíduos, são objetos que escapam a uma categoria funcional ou utilitária, nos dias de hoje não fazemos uso de cerâmicas indígenas ou de faianças portuguesas, são consideradas ultrapassadas para o modo de vida atual, dessa maneira, surge a questão do porquê estudar tal coisa, qual a relevância do maior dos monumentos históricos, ao menor dos fragmentos de cerâmica?

            A modernidade não compreende o valor desses remanescentes, vivemos no mundo do capital, onde se produzem mercadorias que atendem quesitos práticos, necessidades, e que tem funções bastante específicas, sendo assim, não é de se espantar que esses objetos deslocados do tempo e que não atendem a esses requisitos; causem estranheza a muitas pessoas. Contudo, esses materiais não são carentes de funcionalidade, eles servem precisamente para significar o tempo, resultados das atividades dos homens, indícios culturais (Baudrillard, 2009:82). O que se pretende tratar aqui, mesmo que de maneira sutil, é como esses objetos, que fizeram parte do cotidiano de um grupo, tornaram-se influentes em seu meio, e a maneira que as relações são construídas através de simples práticas rotineiras. Para tentar compreender esse universo onde os objetos são ativos nas relações sociais, o conceito de habitus é para isso, bastante útil.

 Habitus

            Bourdieu enquanto sociólogo, trouxe grande contribuição para a compreensão crítica da realidade social, reunindo e aprimorando ideias de outros grandes teóricos como Marx, Weber, Durkheim e Lévi-Strauss. Para entender um pouco seu raciocínio, é necessário compreender o conceito de habitus.

Há de se esclarecer previamente, duas características do conceito de habitus, primeiro quando se tratando de algo já estruturado apresenta seus executores como passivos, a cultura por exemplo, quando vista como um conjunto caracterizador de determinadas condutas, crenças e práticas, assume essa característica de algo que já é dado, já está posto, é então instrumento comunicador que cria um consenso quanto a visão de mundo; é também estruturante, pois os indivíduos estão impregnados dessa estrutura e a partir disso se tornam ativos reprodutores dessa formação.

Seguindo a tradição marxista, esta realidade é constituída através de um processo de coerção, através de ideologias que servem a classe dominante para legitimar e estabelecer uma ordem, e por meio desta, se estabelecem hierarquias para distinguir aqueles que estão acima e os que se encontram abaixo. Sua comunicação está estreitamente ligada as formas de poder que agem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, por meio da violência simbólica, contribuindo para a domesticação dos dominados. (Bourdieu, 1992:11)

A análise da formação de condutas e das representações é o cerne dos interesses bourdieusianos, as estruturas são responsáveis e dão sentido as ações individuais, são determinadas no tempo e no espaço, historicamente construídas, sendo assim não são um tipo de espírito universal, mas estão sujeitas a mudanças.

O habitus põe em evidência as capacidades criadoras, ativas e inventivas, dos indivíduos. (...) o habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido, e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural – mas sim, o de um agente em ação (...) (Bourdieu, 1992:61)

                 A noção de habitus orienta o funcionamento do corpo socializado, a sociologia de Bourdieu é uma tentativa de desvendar de que maneira a sociedade consegue reproduzir nos indivíduos todas as suas estruturas, ela age e se reproduz de maneira inconscientes, sua atuação embora não determinada, é condicionada por esse habitus.

            Ao conceituar habitus, Bourdieu o difere da palavra hábito, a qual considera repetitiva e mecânica, e mais reprodutivo que reprodutor, essa distinção deixa clara sua intenção de não fadar as práticas individuais a meros processos automáticos, o habitus é potencialmente um propulsor de ações com base em nossas condições sociais, contudo a forma com que ele se reproduz está sujeita a transformações imprevisíveis. (Bourdieu, 2003:140)

            A reprodução é outra característica muito presente em Bourdieu, é através desse processo que as estruturas de valores da sociedade tendem a renovar constantemente seu habitus, servindo como forma de manutenção dos mecanismos da sociedade, são exterioridades que são continuamente interiorizadas na trajetória social dos indivíduos.

A estrutura de poder e de dominação que se reproduz sem que o indivíduo tenha consciência, é algo investido no indivíduo e por isso não conscientes, para que ele possa assim ativamente, engendrar as práticas que reproduzem tal estrutura de dominação e de hierarquias, faz surgir então aquilo que parece “normal” ou “natural”, como formas de conceber a realidade social.  A dimensão simbólica, é necessariamente política, capaz de construir a realidade, instrumento de integração social e que contribui para a reprodução social, de certas práticas e crenças, organizando a lógica, a ética e a moral, age dessa forma tanto no corpo, quanto na “alma”.

            Essa concepção da realidade social, busca ir além de objetivismos ou subjetivismo, colocando-se num projeto teórico classificado como “construtivismo estruturalista”, que põe as estruturas objetivas e subjetivas numa relação dialética:

Os que ocupam posições dominadas no espaço social, estão também em posições dominadas no campo de produção simbólica e não se vê de onde lhes poderiam vir os instrumentos de produção simbólica de que necessitassem para exprimirem o seu próprio ponto de vista sobre o social, se a lógica própria do campo de produção cultural e os interesses específicos que aí se geram não produzisse o efeito de predispor uma fração dos profissionais envolvidos neste campo a oferecer aos dominados, na base de uma homologia de posição, os instrumentos de ruptura com as representações que se geram na cumplicidade imediata das estruturas sociais e das estruturas mentais e que tendem a garantir a reprodução continuada da distribuição do capital simbólico. (Bourdieu, 1992:152)

            Esse espaço social, constitui outro conceito fundamental de Bourdieu, o campo, o lugar onde o poder simbólico é exercido, através do choque de interesses, visando legitimar posições, o campo é onde empiricamente se desenrola o habitus que é previamente estabelecido, é o local de socialização em que os agentes lutam entre si para validar uma representação. É multidimensional, Bourdieu critica a abordagem marxista, para ele, sua visão estritamente econômica para explicar as diferenças do mundo social baseada apenas no campo econômico é bastante limitada, enxergando a posição social como resultante apenas da posição em relação a produção econômica, ignorando com isso as posições ocupadas no diversos campos e subcampos, sobretudo nas relações de produção e reprodução cultural. (Bourdieu, 1992:153)

O habitus é lei[1]¹ imanente, depositada em cada agente, condição não somente da concentração das práticas, mas das práticas de concentração, há um consenso entre os que compõem mesma classe, um código comum (Bourdieu, 2003:71), essa concordância faz funcionar o sistema das práticas do campo, onde há um reconhecimento que faz com que os agentes empreguem ações automáticas em prol de um sistema objetivo, onde as atividades cotidianas parecem “sensatas” ou “razoáveis”, em que os indivíduos contribuem para reproduzi-las, quer ele deseje ou não.

Tal imanência do habitus pode nos levar a várias reflexões, chamando atenção primeiramente a sua força de imposição, cujo termo “violência simbólica” mencionado anteriormente, é utilizado por Bourdieu como o mediador entre a interiorização e exteriorização, consciência e inconsciência; seria um tipo de dominação mais suave, ou que de tão sorrateira, parece invisível. É algo que toca no sistema de percepção, que à primeira vista parece inocente, mas que encobre seu forte poder coercitivo, em A dominação masculina (2012) Bourdieu fala a respeito da maneira como estão instituídas em todos os corpos os mais diversos tipos de “naturalização”, a começar pela divisão dos sexos, esta que parece estar na “ordem das coisas”, a oposição entre masculino e feminino parece estender-se para além das questões de gênero, distinções como: alto/baixo, em cima/ abaixo, subir/descer, fora (público)/dentro (privado).

O paradoxo está no fato de que são as diferenças visíveis entre o corpo feminino e o corpo masculino que, sendo percebidas e construídas segundo esquemas práticos da visão androcêntrica, tornam-se o penhor mais perfeitamente indiscutível de significações e valores que estão de acordo com os princípios desta visão. (Bourdieu, 2012:32)

A força da ordem masculina não carece de justificação, “o mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão sexualizantes” (Bourdieu, 2012:18). As diferenças biológicas e mais especificamente a diferença anatômica dos sexos são utilizadas como pressuposto em favor de um “natural domínio masculino”, atuando quase como uma regra geral, está estabelecido e é reproduzido, e daí o porquê de ser estrutura estruturada e estruturante. Esse tipo de violência simbólica se manifesta nas coisas mais triviais do cotidiano, Bourdieu toca bastante na questão do feminino e masculino, porém essa violência que não é física, mas nem por isso menos danosa, é evidenciada em outros âmbitos como o cultural, étnico, religioso e etc.

Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação, ou em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. (Bourdieu, 2012:22)

            Ao tratar de dominação simbólica, Bourdieu não pretende cair em idealismos, ao demonstrar as capacidades opressivas da violência simbólica, ele não o faz em detrimento da violência física, o que tenta demonstrar é de que maneira ela pode atuar juntamente com a força bruta para impor domínio, pois o reconhecimento da submissão supõe sempre um ato de conhecimento (Bourdieu, 2012:53)

Eu estava tão ciente, desde o início do inquérito, de que o efeito de legitimidade, que desempenha um papel tão grande em matéria de linguagem, fazia com que os membros das classes populares interrogados sobre sua cultura tendessem consciente ou inconscientemente, em situação de inquérito, a selecionar o que lhes parecia mais em conformidade com a imagem que tinham da cultura dominante, de tal maneira que não se podia conseguir que dissessem simplesmente aquilo que deveras gostavam. (Bourdieu, 2003:135)

            Bourdieu se interessava pela capacidade de alcance dessa dominação simbólica; por meio de inquéritos verbais ele percebeu a tendência que os dominados têm de reproduzir os gostos dos dominantes ou admirá-los, quando colocadas certas questões, pareciam responder mais aquilo que acreditavam ser o que se desejava ouvir, reproduzindo as características que eram comuns as classes dominantes, sempre com a imagem de “bom gosto”, “melhor”, “mais desenvolvido” ou “mais culto”.

            Essa reprodução presente em Bourdieu é alvo de duras críticas por parte de seus opositores, sendo por muitos identificado como determinista e reprodutivista, ele no entanto rebate tal afirmação argumentando que por vezes há uma confusão entre duas coisas distintas: uma seria a necessidade objetiva dos corpos e a outra a necessidade subjetiva, aquilo que se pensa ser necessário, ao passo que conhecer a necessidade e sua razão, representa um progresso na liberdade possível, e é nesse sentido que para Bourdieu a sociologia se apresenta como arma de reflexão no conhecimento das necessidades, e por consequência, no avanço da liberdade possível (Bourdieu, 2003:49)

            Apesar da tendência dos indivíduos de reproduzirem seu habitus como um propulsor de ações, a relação entre estruturas objetivas e subjetivas faz com que as orientações sociais sejam concretamente moldadas para determinados fins como forma de se adaptar a contextos históricos específicos “em que os atores são submetidos a efeitos de histerese[2] e forçados a sair, por assim dizer, do ‘piloto automático’” (Peters, 2013:9), e que os colocaria num movimento de reflexão consciente dessas disposições.

Por meio da noção de habitus, é possível discutir o processo de formação e transformação das vivencias em terras alagoanas durante o século XIX.

A figura do senhor de engenho e o banguê

 

            Numa relação com o princípio das práticas, procurando compreender as metamorfoses ocorridas em território nacional durante século XIX, percebe-se mudanças que navegam na mesma corrente que iniciada no continente europeu, num longo processo de transformações estruturais.

            A distinção comportamental sempre agradou aqueles que fazem ou fizeram parte das elites, apregoando normas de conduta que os colocam em um pedestal bem acima das classes inferiores. Essa diferenciação tem sua gênese nas práticas das aristocracias, onde a burguesia tentava incessantemente assumir padrões semelhantes ao dessa camada nobre, criando uma competição, uma concorrência incessante para se colocar em evidência, esse é segundo Norbert Elias, o principal motor do processo civilizador, um jogo constante para aumentar as sofisticações criando assim uma discrepância entre os detentores de certos status e aqueles que não o possuíam. (Elias, 2001:23)

            Elias da ênfase as alterações pelas quais passavam a sociedade europeia. Com o crescente avanço do poder econômico da burguesia, essa camada começou aos poucos a adquirir certos espaços que anteriormente pertenciam apenas aos mais nobres e privilegiados.

            Segundo Elias, a uma diferença capital no quesito de consumo entre a burguesia e aqueles que habitam a corte, de acordo com ele o ethos[3] social dos profissionais burgueses se pauta pela norma de que seu consumo diário deve ser menor do que seus gastos, para que assim a renda acumulada possa servir para investimentos futuros, de modo que seu êxito social e de sua família, depende da estratégia de ganhos e despesas a longo prazo. Já nas sociedades em que prevalece o consumo em função do status, o oposto se verifica, as despesas domésticas estão diretamente ligadas a esfera social, em que o prestígio e a convivência em meio a determinado grupo são mais importantes (Elias, 2001:86)

Nas sociedades pré-industriais, a riqueza mais respeita era aquela que não havia sido conquistada pelo esforço, aquela pela qual não era preciso trabalhar, portanto uma riqueza herdade. Não o trabalho em si, mas o trabalho com o objetivo de ganhar dinheiro, bem como a própria posso do dinheiro bem recebido, ocupava os níveis mais baixos na escala de valores das camadas superiores nas sociedades pré-industriais. Era o que ocorria com ênfase especial na sociedade de corte mais influente do século XVII e XVIII: a francesa. Ao assinalar que muitas famílias da nobless d’épée viviam do seu capital, Montesquieu quer dizer, em primeira instância que elas vendiam terras, e talvez joias ou outros objetos de valor herdados a fim de pagar dívidas. Seus rendimentos diminuíam, mas a coerção para representar não lhes oferecia nenhuma possibilidade honrosa de limitar suas despesas. Contraíam novas dívidas, vendiam mais terras, sua rende continuava a decrescer. Aumentá-la por meio de uma participação ativa em empreendimentos comerciais lucrativos era não só proibido por lei, como também vergonhoso – do mesmo modo que limitar os gastos com a casa ou com as ostentações (Elias, 2001:91)

            Esse caráter de comportamento mais evidenciado nas sociedades pré-industriais, se verifica também nas altas camadas das sociedades industriais, mesmo que em menores proporções, ainda que o prestígio seja de grande relevância, quase não se afigura como aparelho de poder. Na sociedade baseada no consumo de prestígio, a posse de um título de nobreza é muito mais valiosa do que a acumulação de riquezas.

            Desde os primórdios da colonização do Brasil era bastante comum o pedido de mercês a coroa portuguesa como forma de retribuição pela prestação de algum serviço, é através disso que começam a se constituir as primeiras elites senhoriais na América portuguesa, a chamada “nobreza da terra”, que tinha na figura do proprietário de terras e de escravos, seu símbolo máximo.   

             Contudo a industrialização iniciada na Europa, em especial na Grã-Bretanha, logo se expandiu também para o Brasil e com a Família Real em território nacional, experimentou-se maior liberdade de comércio, o que anteriormente era bastante limitado a trocas com Portugal devido ao pacto colonial.

            Devido a isso, verificou-se que o poder econômico se concentrava cada vez mais nas mãos de comerciantes, contudo Sheila de Castro Faria destaca que “a casa-grande e seu senhor representavam na época, a aspiração, de podemos supor, quase todos os homens que vieram por vários séculos para a Colônia” (Faria, 1998:48).

            Diversos foram os motivos da vinda de diversos homens para a colônia, em geral a buscando fazer fortuna nas terras que por muitos era vista como purgatório, outros ainda fugiam de perseguições ou buscavam atender estratégias de família. A América Portuguesa era uma terra de inúmeras possibilidades para os que desejavam se aventurar e que por vezes oferecia recompensas para aqueles com capital necessário para investir, sendo o comércio uma das opções preferidas dos recém chegados a Colônia. (Faria, 1998)

            A área urbana era o local de atividade do comércio e onde viviam aqueles com profissões manuais, como alfaiates, carpinteiros, sapateiros, médicos, comerciantes e toda a sorte de gente comum, a vila tinha função comercial. Em oposição ao meio urbano, o meio rural era moradia dos produtores de açúcar e objetivo dos que detinham poder aquisitivo suficiente para se tornarem donos de terra e de escravos, a vila era somente trajeto de passagem para esse objetivo principal, onde a estabilidade estava ligada, pelo menos em teoria, aqueles que se enquadravam no modelo da tradição patriarcal, que eram donos de engenho e de muitos escravos.

            Embora a atividade comercial pudesse oferecer condições necessárias para estabilidade econômica, ela carregava consigo uma chaga profundamente enraizada na sociedade, em que “este desprezo tinha suas raízes na hierarquia medieval cristã, que colocava o mercador mais abaixo na escala social dos que os praticantes de artes mecânicas: camponeses, caçadores, soldados, marinheiros, cirurgiões, tecelões, ferreiros” (Boxer, 1981:303, apud Faria, 1998:176). O que justifica o fato de mesmo sendo o comércio atividade bastante lucrativa, ser apenas o meio para se chegar a um fim, o de se tornar senhor de engenho.

            O casamento muitas vezes parecia uma alternativa muito eficaz e um meio de rápida ascensão para o comerciante bem sucedido, e ainda mais fortuito para o senhor de engenho que dispunha suas filhas ao casamento como uma maneira de assegurar crédito necessário para a manutenção das fortunas rurais, o benefício era mútuo. Mediante análise de inventários de alguns proprietários rurais da capitania de Paraíba do Sul no Rio de Janeiro, Faria (1998) constatou que a maior parte destes, em algum momento de suas vidas, atuaram como comerciantes, e que foi através disso que conseguiram transformar-se em proprietários rurais. É possível perceber ainda que em meados do século XVIII os comerciantes que conseguiram, seja por casamento ou por acúmulo de riquezas tornar-se senhores de engenho, gozaram durante certo tempo dos privilégios que acompanhavam seu título, porém o mesmo não se verificou nas gerações que o sucederam, pois seus filhos e netos muito dificilmente conseguiam manter o padrão econômico e acabavam pobres e endividados. Esse fenômeno ainda que analisado em contexto regional, pode ser verificado também em Alagoas e persiste até fins do XIX.

            Além de ser dispendioso e economicamente inviável deixar de ser comerciante para se tornar senhor de engenho, o século XIX trouxe um novo problema para estes, a mecanização a força produtiva que obrigava a esses senhores se modernizarem para que pudessem continuar competindo no mercado mundial do açúcar. Os engenhos a vapor tornaram o sistema banguê obsoleto, produziam açúcar em maior quantidade, em menor custo e em menos tempo. Desse modo, para que conseguissem se manter no topo da pirâmide social, os senhores de engenho necessitavam atualizar o modo de fabrico do açúcar.

Foi então que mais arraigou o exclusivismo da cultura açucareira. O banguê sofria os seus primeiros desencantos, mais agravados nos fins do século XIX com o aparecimento da usina. O desenvolvimento técnico da produção criava dificuldades à vida do banguê – do banguê que tinha na água, nos bois, nas bestas, nas “entrosas”, no trabalho escravo os seus elementos fundamentais, os sustentáculos de sua vida. (Diégues Júnior, 206:121)

            De acordo com Manuel Diegues Júnior, data dos primeiros anos da segunda metade do século XIX a introdução do engenho a vapor em Alagoas. Mesmo sendo no século XIX o período de maior proliferação de engenhos banguês, com um total de 479, a cultura da cana que já não era economicamente satisfatória, declina em vista da concorrência com o engenho a vapor.

            Para que o engenho banguê conseguisse competir em pé de igualdade era necessário adotar novas tecnologias, contudo isso demandava um alto investimento o qual muitos proprietários do engenho não dispunham. Outro agravante para a situação crise, foi a suspensão do tráfico de escravos por meio da Lei Eusébio de Queiroz em 1851, e a Lei do Ventre Livre em 1871, que sufocaram ainda mais a vida do engenho banguê.

            Os produtores banguês criticaram duramente o governo imperial pela falta de auxílios destinados a seus engenhos, em face a concorrência com o engenho a vapor que eram obrigados a enfrentar. Desse modo, o governo buscando atender a essas demandas, criou o projeto de engenhos centrais que buscava aperfeiçoar a fabricação do açúcar, contudo houve certa resistência por parte de alguns, e a falta de capital para investimento ainda era preocupação primária, os poucos que buscaram aderir a máquina a vapor, fizeram isso com recursos próprios (Carvalho, 1988; Campos, 2001; Sant’anna, 1970, apud Barbosa, 2012).

Num contexto alagoano

 

            Como afirmava Diegues Júnior, “a história dos engenhos de açúcar nas Alagoas, quase que se confunde com a própria história do hoje Estado, antiga Capitania e Província”. A cultura do açúcar foi amplamente desenvolvida em Alagoas, ela se entrelaçava com a cultura, com a vida social, sem falar é claro de sua indispensável contribuição econômica.

         O banguê era local onde se congregava a vida social, expressivo elemento da paisagem social de Alagoas. Em torno do engenho que se constitui a família alagoana e é no senhor de engenho que se centraliza a atividade social e política, que tinha na grande propriedade, na capela e nas senzalas, elementos constitutivos do projeto colonizador.

           Para compreender um pouco da história e do desenvolvimento dos engenhos em território alagoano é necessário citar o nome do português Cristovão Lins, a quem é atribuído a fundação da Vila de Porto Calvo, núcleo de irradiação do povoamento do território de Alagoas e local onde estão situados os engenhos abordados nesse trabalho, bem como desbravamento de todo o norte do Estado, que abrangia os municípios de Porto de Pedras, Camaragibe, Maragogi, Colônia Leopoldina e São Luiz do Quitunde (DIEGUES JÚNIOR, 2006:51). Devido a um projeto político militar com o objetivo de defesa das terras da capitania de Pernambuco, Porto calvo foi um dos primeiros lugares ocupados pelos portugueses (Babosa, 2012:48). A região era vista como ponto estratégico com rotas de importante acesso a capitania (Lindoso, 2000:17 apud Barbosa, 2012, 48).

            Os engenhos a serem trabalhados são resultado de estudos arqueológicos do projeto Rota da Escravidão/Rota da Liberdade realizado nos anos de 2006 e 2007, que por meio de procedimentos e metodologias da arqueologia, como: sondagem, prospecção visual e poço teste, tinham por objetivo identificar locais de possível interesse arqueológico, em que os materiais obtidos pudessem dar noções do cotidiano dos antigos habitantes da região.

            Dentro do projeto Rota foram delimitados os sítios: Capiana, Capricho, Colinas, Crastos, Cova da onça, Escurial, Estaleiro, Genipapo, Guaribas, Ilha da Guedes e São Gonçalo. Dentre eles, serão objetivo de discussão os sítios: Capiana, Cova da onça e São Gonçalo, engenhos banguês; e Estaleiro e Escurial, engenhos a vapor. Para compreender o contexto destes, os artefatos de louça recolhidos se apresentam como de grande potencial elucidativo para os sítios aqui abordados.    

 Louças e análise

             Como já mencionado anteriormente, desde de fins do século XVIII a Europa já começava a sentir os sinais de uma gradual mudança provocada pela industrialização, essas transformações vão aos poucos reconfigurando todo o modelo social e econômico dessa região, e como não poderia ser diferente, esse processo se expande para além do continente europeu.

            Essa expansão buscava mercados consumidores para os novos produtos industrializados, fruto do desenvolvimento cada vez maior das forças capitalistas que buscava fincar suas raízes.

            A chegada da família real portuguesa ao Brasil e a posterior abertura dos portos para expansão do comércio, trouxe consigo uma série de mudanças no cotidiano desta terra. O meio urbano começou a ser mais valorizado e buscava se diferenciar não só economicamente, mas culturalmente, com maiores requintes, sempre espelhados na corte, e essa por sua vez seguia a mesma corrente de mudanças vivenciadas na Europa.

            Esse cenário se deu devido a produção em massa propiciada pela indústria dos itens que anteriormente somente eram consumidos pelas classes superiores. O barateamento dessas peças fez com que mais pessoas conseguissem adquiri-las, e entre esses produtos, está a louça.

As louças foram privilegiadas nessa discussão não somente devido à sua onipresença nos sítios domésticos brasileiros do século XIX, mas sobretudo por atuarem como suportes no domínio das refeições, as quais constituíram-se em um dos campos mais propícios para ritualização do universo burguês, ajudando, assim, a definir e redefinir posições sociais bem como inclusão ou exclusão dentro de um determinado grupo (Lima, 1999:209; Lucas, 1994; Wall, 1994; apud Symanski,2002)

            No início do século XIX, o Brasil já começava a se tornar um mercado consumidor bastante atrativo para diversos produtos industrializados, numa tentativa de emular as elites europeias, um certo padrão de consumo e comportamento começa a se configurar nas famílias brasileiras mais abastadas, que ao se identificar com um modo de vida mais civilizado, cosmopolita e burguês europeu, busca se distinguir dos demais.

            Um exemplo do estabelecimento dessas mudanças que visavam estabelecer um padrão de civilidade pode ser visto no livro The Habits of Good Society, em que são enumeradas diversas maneiras de como usar o garfo e faca, como assoar o nariz, como sentar à mesa, em resumo, uma lista bastante extensa, que deveria ser seguida à risca, para afugentar a “barbárie” (Elias, 2011:127)

            Dessa maneira, a exuberância dos jantares e festas da aristocracia alagoana além tentar tornar visível seu poder e sua aparente riqueza refletida em sua mobília, procuravam também, demonstrar sua proximidade com os altos padrões estabelecidos na Europa, as louças nesse contexto, transparecem certamente poder econômico e social, mas também o alto nível de seus costumes.

            A escala proposta por Miller (1980 apud Barbosa, 2012), estabelece uma classificação das louças de acordo com seu valor econômico, onde as peças de cor branca e sem decoração eram as mais baratas, logo depois as de decoração simples e com pouca perícia, as louças pintadas a mão, em sua maioria com decorações floridas, geométricas ou paisagísticas e por fim viriam as mais caras, decalcadas na técnica de transfer printing.

Descrição: C:\Users\jarisson\Desktop\pinta a mao.jpg Descrição: C:\Users\jarisson\Desktop\transfer pinting.jpg(Figura 1: louça pintada a mão. Foto: Rute Barbosa) (Figura 2: louça transfer printing. Foto: Rute Barbosa)

            Os resultados obtidos através da análise do material distribuem as louças dos engenhos do Projeto Rota da seguinte maneira:

Engenhos

Branca

Pintada à Mão

Transfer-Print

Capiana

16

35

47

Estaleiro

25

29

13

Escurial

57

64

11

São Gonçalo

137

341

236

Cova da Onça

53

60

46

             Pela quantidade de artefatos de louça coletado em cada um dos engenhos e através da análise desse material, podemos perceber que foram encontradas louças do padrão decorativo transfer printing, as mais caras, nos engenhos que ainda faziam uso do sistema banguê, Capiana, Cova da Onça e São Gonçalo; o oposto se verifica nos engenhos a vapor, Estaleiro e Escurial, onde esses artefatos aparecem em menor quantidade.

            Mesmo numa conjuntura de crise do sistema banguê, é em certa medida curioso encontrarmos as peças mais caras em maior quantidade nestes engenhos, do que aqueles que acompanhavam o desenvolvimento da indústria a vapor. Num diálogo entre os materiais coletados e praxiologia estrutural de Bourdieu, é possível estabelecer uma discussão a respeito das transformações ocorridas no século XIX, que modificam as formas de comportamento da aristocracia alagoana.

 
 
Considerações Finais

 
           
Como apresentado, o número de fragmentos de louças transfer printing, as mais caras, foram encontrados em maior número nos engenhos que não foram capazes de se modernizar, já aqueles que aderiram ao sistema a vapor, foi constatado uma frequência menor desse tipo de material.

            A partir desse material cerâmico podemos perceber a estrutura que permeava na sociedade alagoana do século XIX. Rute Barbosa (2012), propõe pensar a utilização dessas louças como atividade estratégica dos senhores de engenho para manter seu prestígio social, que estava em queda vertiginosa devido à crise do sistema banguê.

            Os pressupostos teóricos de Bourdieu oferecem ferramentas importantes na interpretação desse contexto. Podemos pensar o consumo dessas louças na ótica de um mercado simbólico, em que das mesmas maneiras em que no mercado econômico também há uma relação de forças, há conflito. Os produtores de açúcar estavam não só em concorrência objetiva pelo comércio de açúcar, mas também em busca de cada vez mais títulos, mais honras que pudessem elevar seu prestígio. As imposições desse mercado são violentas, exercem um efeito de censura aos que não estão aptos a disputa.

            O sistema banguê em gradativa derrocada, que tinha na figura forte do senhor de engenho, chefe de sua casa, de sua família, de sua esposa e filhos, detentor de vários escravos, e de vastas propriedades de terra, era incapaz de acompanhar a produção açúcar dos engenhos a vapor. Porém mesmo assim, ainda em meados do século XIX, muitos desejavam se tornar donos de engenhos banguês, o prestígio que possuíam os donos dessas propriedades vinha acompanhado de um habitus “superior”.

            Ser dono do engenho não era suficiente, era preciso exercer essa função por meio de certos gostos e de algumas práticas e “para que haja gostos, é necessário que haja bens classificados, de ‘bom’ ou de ‘mau’ gosto, ‘distintos’ ou ‘vulgares’, classificados e no mesmo lance classificatórios, hierarquizados e hierarquizantes” (Bourdieu, 2003:169). Esse gosto se encontra a meio caminho do gosto individual e o de classe, um criando e recriando constantemente o outro.

            Dessa maneira, além da própria figura do senhor de engenho representar poder, seus costumes se adaptaram ao ritual burguês, como forma de continuar a exercer influência na sociedade.

O luxo consiste no grande número de peças das baixelas de prata. Quando se hospeda alguém, apresenta-se-lhe para abluções soberbos vasos de metal, de que são também as bandejas que vêm para a mesa, as bridas e os estribos dos cavalos, e o cabo dos punhais (...). Encontrei também belíssimos aparelhos de louças da Inglaterra. (ARQUIVO ERNANI. FICHA, 26836, apud BARBOSA, 2012:176)

 

            O ajustamento do habitus pode variar bastante de acordo com a situações impostas ou imprevistas, as louças na decoração de transfer printing, consideradas as mais caras, presentes nos engenhos banguês nos mostram isso. A sociedade alagoana passa a se organizar de maneira diferente a partir do século XIX, a riqueza que antes estava em segundo lugar como representação de poder - há de se lembrar o caso dos comerciantes ricos que não detinham tanto status quanto os proprietários de terra, como demonstrou Sheila Faria (1998) – passa a tomar conta dos espaços. Há então um elemento estruturador que produz costumes e comportamentos que são imbuídos nos indivíduos, bem como essas incorporações se refletem no meio social por meio da ação dos indivíduos, em um movimento estruturante, a reprodução dos gestos, dos gostos, das formas, do consumo, tende a ativamente contribuir para a reprodução da estrutura

            Mesmo em uma conjuntura de crise, a estrutura da sociedade banguê, da “nobreza da terra”, consegue ainda se arrastar por longa data, ainda que economicamente respirando com dificuldades, o consumo em favor de um habitus consegue sustentar até boa parte do século XX uma ordem que marchava a ruína. Podemos avaliar que esse caráter estratégico se faz enquanto prática, na medida em que há um habitus disposto nesses indivíduos e que opera em certos limites, o consumo de louças para preservar a notoriedade desses senhores, parece funcionar na defesa de interesses próprios, na mesma medida que defende uma “velha sociedade” e uma antiga hierarquia.

 

Referências

 

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Notas

[1] 1 A “lei” é para Bourdieu um termo extremamente perigoso de se tratar, que tende a se naturalizar, que defende a hierarquia de dominação, e que se perpetua enquanto útil àqueles a quem serve, sendo tarefa da sociologia esfacelar tais leis. (Boudieu, 2003:50)

[2] Trata-se de um desarranjo entre condições práticas e incorporações estruturadas, sendo estas, não mais adequadas como resposta a circunstâncias objetivas.

[3] De acordo com Bourdieu o ethos denota um sistema objetivo de dimensão ética, uma vez que nota-se que os indivíduos podem ser capazes de resolver questões práticas sem a necessidade de uma posição pautada de normas éticas estabelecida; essa noção é abarcada pelo conceito de habitus.

 

Recebido em 10/10/2014.
Aceito em 12/11/2014.