Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.


Ciência e Saúde na Amazônia:
Uma análise das expedições do Instituto Manguinhos ao vale do Madeira e ao vale do Amazonas

Xênia de Castro Barbosa
Maria Enísia Soares de Souza
Lucas Mariano Dias

Resumo: O texto propõe analisar, em breves linhas, alguns documentos-chave para a compreensão da História da Ciência na Amazônia no século XX: o texto “Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira”, o “Relatório sobre as condições médico-sanitarias do valle do Amazonas” e o dossiê Miloca (conjunto de cartas enviadas por Oswaldo Cruz a sua esposa). Os textos, de autoria do cientista Oswaldo Cruz e datados respectivamente de 1910, 1913 e as cartas de 1911 são consideradas fontes para o estudo dos desafios ambientais e de saúde pública representados pela Amazônia no início da vida republicana brasileira. A pesquisa pautou-se na Análise Documental e nos procedimentos de avaliação do contexto de produção dos documentos, identificação da posição política do autor e identificação do público ao qual o documento foi direcionado. O objetivo da pesquisa foi produzir uma síntese histórica sobre a visão do Instituto Manguinhos sobre a região amazônica, em especial Porto Velho, evidenciando a relevância das práticas e discursos dessa instituição de pesquisa para a “invenção da Amazônia”.

Palavras-chave: saúde; integração nacional; Amazônia.

ABSTRACT: The paper proposes to examine, briefly, some key documents for understanding the History of Science in the Amazon in the twentieth century: the text "General considerations on the sanitary conditions of the Madeira River," "A Report on the medical-sanitary conditions valley of the Amazon" and the dossier Miloca (set of letters sent by Oswaldo Cruz to his wife). The texts, written by the scientist Oswaldo Cruz and dated respectively 1910, 1913 and 1911, and the letters are considered sources for the study of environmental and public health challenges represented by the Amazon in the early Brazilian republican life. The research was based on Documental Analysis and assessment procedures of the documents production context, identification of the author´s politics position and the identification of the public to whom the document was directed to. The research objective was to produce a historical contextualization of the Manguinhos Institute view over the Amazon region, especially Porto Velho, highlighting the relevance of the practices and discourses of this research institution to the "invention of the Amazon."

Keywords: Health; National Integration; Amazon.

 

Introdução

 

            No despontar do século XX o Brasil viu nascer o Instituto Soroterápico Federal (mais conhecido como Instituto Manguinhos), inaugurado em 23 de julho de 1900. Esse instituto, cujo principal desafio era produzir vacina contra a peste bubônica, que assolava o Porto de Santos e aterrorizava os pensamentos de uma sociedade ainda predominantemente rural, desenvolveu um papel de destaque para o desenvolvimento nacional e para a própria construção do Estado brasileiro.

O Instituto Manguinhos, posteriormente denominado Instituto Oswaldo Cruz (1908) e Fundação Oswaldo Cruz (1974), assumiu o desafio de desenvolver pesquisas tanto em laboratório quanto em campo, revelando os fatores que contribuíam para os limites do desenvolvimento nacional. Graças a essas pesquisas foi possível superar os determinismos que prevaleciam nas análises sociais acerca do Brasil: o determinismo geográfico, que apregoava a inaptidão dos brasileiros para a vida produtiva, e o racial, que propunha o “embranquecimento” da população brasileira como meio para uma “depuração” genética, promovendo o preconceito racial contra afrodescendentes.

            Para a República que se formava, no limiar do século XX, era fundamental assegurar a soberania nacional, a manutenção da unidade territorial e o controle estatal das regiões e populações remotas, a fim de se construir uma nação e uma identidade nacional. A Amazônia era a vasta região que desafiava o Brasil republicano, seja por sua extensão territorial, seja pela complexidade da vida que se desenvolvia em seu espaço, na qual se incluíam as doenças tropicais. O enfrentamento desses desafios foi favorável não só à manutenção da República, quanto ao desenvolvimento da Medicina Tropical.

            Conforme Schweickardt (2001, p. 37),

As doenças tropicais que tiveram maior conjunto de pesquisas no país e na região amazônica foram a malária e a febre amarela. As pesquisas que trouxeram mudanças significativas no modo de ver essas doenças e no modo de combatê-las levaram à construção da categoria vetor e à identificação deste no processo de sua transmissão. A Amazônia representava o palco típico ideal para o estudo dessas doenças porque reunia as condições favoráveis à reprodução da doença, isto é, o clima, a temperatura e as condições de vida da população colaboravam para a presença permanente do vetor.

            Nesse trabalho de produção da nação, os intelectuais tiveram papel de destaque, produzindo análises de utilidade política sobre os mais diversos aspectos dos problemas brasileiros.

            As expedições do Instituto Manguinhos para os “sertões”, para o Brasil interiorano e desconhecido, revelaram uma vasta população em condições precárias de vida, condições essas que repercutiam diretamente em seus perfis de saúde e doença. Essas expedições significavam a presentificação da ciência e do progresso, sendo os médicos e cientistas tratados com cordialidade e respeito:

Não imaginas como essa gente me tem tratado: como um verdadeiro principe. Puzeram a minha disposição um navio da Cia e ás minhas ordens puzeram o Mordomo da Companhia, que depois de indagar ao Belizario da minha dieta etc. poz um cozinheiro pra meu regime e durante toda a viagem, nessas paragens onde não ha recursos fui alimentado a vegetaes, ovos, gallinhas, doces, aguas mineráes, enfim tudo quanto podia desejar. O navio trouxe um carregamento desses alimentos para aqui afim de que me não falte cousa alguma. Installámo-nos na casa do medico em chefe que abandonou seus commodos e tudo nos entregou. Temos criados chineses. Enfim todo o conforto possivel numa grande cidade tenho aqui nessas inhospitas passagens (CRUZ, 2010).

             Quase que reverenciado, até mesmo o médico-chefe do hospital da Candelária cedeu sua casa (possivelmente uma das melhores existentes à época), para o sanitarista se hospedar e desenvolver seu trabalho: clínico e de pesquisa.

            Oswaldo Cruz tinha como desafio, nessa primeira expedição, investigar as condições médicas e sanitárias do Rio Madeira, com ênfase para a região em que se concentravam as instalações da EFMM (o pátio da ferrovia e a vila dos operários).

            A expedição, liderada por Oswaldo Cruz e Belisário Penna ocorreu entre 16 de junho e 29 de agosto de 1910, financiada pela construtora da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), que sob a coordenação de Percival Farquhar, retomara o trabalho de construção da ferrovia.

            A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que deu origem à cidade de Porto Velho era uma obra de engenharia de grande porte, cujo objetivo principal consistia em facilitar o transporte da seringa extraída dos seringais amazônicos do Brasil e da Bolívia. A demanda internacional por borracha, matéria-prima para a fabricação de pneumáticos se acentuou a partir de 1890, intensificando a exploração desse recurso natural e produzindo uma nova Amazônia, com uma elite enriquecida e detentora de uma nova mentalidade, diferente das dos caboclos que exploravam recursos naturais para fins de subsistência ou de comércio em escala local. Para Weinstein, “a economia de exportação, resultante dessa confluência de forças econômicas e ambientais, gerou um crescimento demográfico sem precedentes na região e fez uma área esquecida e muito atrasada um dos mais promissores centros de comércio do Brasil” (1993, p. 15).

           A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi um empreendimento que visava a atender as demandas produtivas do momento, e essa primeira expedição de Oswaldo Cruz à Amazônia[1], custeada pela construtora da obra, intencionava colaborar com a indústria da Borracha, na medida em que fornecesse aos administradores do empreendimento, diagnósticos e recomendações científicas para a promoção da saúde dos trabalhadores e o contingenciamento das principais patologias tropicais da época, a malária e a febre amarela.

            Além do desafio técnico de superar terrenos acidentados e pantanosos para a construção de uma ferrovia no meio da selva amazônica, os trabalhadores enfrentavam um ambiente complexo, de uma diversidade biológica jamais vista, no qual circulavam diversos agentes patológicos, com destaque para os anofelíneos transmissores da Malária.

            Embora não haja consenso quanto ao número de trabalhadores mortos ou que tenham adoecido durante a empreitada, sabe-se que esses índices eram elevados, desafiando o poder público e a iniciativa privada, e é na esteira desses desafios que as expedições do Instituto Manguinhos à Amazônia devem ser pensados.

            Chegando a Porto Velho em 10 de julho de 1910, Oswaldo Cruz e Belizário Pena dedicaram-se a avaliar as condições sanitárias das margens do Rio Madeira, englobando o “canteiro da obra”, os alojamentos dos trabalhadores e a estrutura médico-hospitalar e de diagnóstico, fornecida pela construtora da Estrada de Ferro em Porto Velho, a Madeira-Mamoré Railway e Port of Pará.

Fiz hontem o percurso de toda a linha até a extremidade dos trilhos: cerca de 120 kilometros. Sahimos ás 7 h. am e viajamos, parando apenas para o almoço até 10 horas da noite. Fomos além do rio Jacy-Paraná. Estudei os acampamentos dos empregados e fiz as indagações que se me afiguraram de utilidade. A linha é admiravel, rasgada toda no meio da floresta virgem offerece offerece espectaculo grandioso, mostrando a riqueza consideravel deste verdadeiro El Dorado: É de lastimar que a tanta riqueza esteja associada a Morte: onde não reina exclusivamente o impaludismo de caracter pernicioso impera o beri-beri. Minha vida aqui tem sido de trabalho em que procuro afogar o caudal de saudade que me devora. Levo a examinar os numerosos doentes existentes no hospital, ao lado de que móro, trabalho no laboratorio, estudo embriagando o tempo afim de que não faça muito soffrer esta ausencia da família (CRUZ, 2010).

            Se nas cartas Oswaldo Cruz escreve em tom intimista, revelando detalhes do seu cotidiano e de seus sentimentos em relação à família, no documento “Considerações Gerais”, enviado ao diretor da Estrada de Ferra, seu tom é mais técnico, embora não deixe de registrar observações muito pessoais acerca de paisagens, culturas e acontecimentos políticos do período, como a greve dos foguistas do Acre. Um dos pontos mais marcantes desse documento diz respeito às medidas profiláticas que promoveu em relação à malária: a administração compulsória de quinino a todos os trabalhadores da EFMM. O quinino, conhecido desde o século XVII é uma substância eficaz no tratamento de malária, especialmente a causada pelo Plasmodium Falcíparum, mas devido a seu sabor extremamente amargo, a administração da droga, por via oral, causava desconforto nos pacientes e população residente na área, que também era obrigada a consumir diariamente o produto. O próprio Oswaldo Cruz fazia uso diário da quinina, conforme excerto da missiva do dia 13 de julho 1910: “Apresenta-se-me hoje a opportunidade de te mandar algumas noticias. De saúde vou admiravelmente fazendo uso diario de quinina”.

            Compreende-se que a intenção de Oswaldo Cruz fosse a de preservar vidas e contribuir para que os trabalhadores da ferrovia, com saúde, pudessem concluir a obra, todavia, sua atitude também pode ser lida como um exercício de biopoder, entendido como. “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 1977-1978, p.3). Esse controle sobre os corpos é instrumentalizado mediante estratégias e técnicas diversas, que “docilizam” os corpos com vistas a assegurar a propriedade e o direito.

            Ainda no que se refere á prática de Oswaldo Cruz, de administração compulsória de medicamento antimalárico, vale destacar que desde o início do século passado o cientista se mostrava favorável a esse tipo de intervenção sobre populações residentes em áreas de risco de doenças, como a população do Rio de Janeiro, em 1905. Oswaldo Cruz, ao propor para Pereira Passos a criação dos batalhões de “mata-mosquitos” e a vacinação obrigatória contribuiu para a ocorrência da Revolta da Vacina – um dos exemplos históricos mais contundentes sobre a necessidade de informações claras para a população e da gestão participativa dos programas e campanhas de saúde pública.

            A decisão do cientista de aplicar dose (s) diária (s) de quinino ao conjunto de trabalhadores da EFMM (cerca de 2000 ao todo), e só depois comunicar aos responsáveis pela empresa visava à profilaxia e combate da malária, e pode ser vista também como uma medida de emergência, sem prejuízo da leitura na perspectiva do biopoder. Isso porque, embora Oswaldo Cruz não estivesse diretamente a serviço do Estado, as atividades que desenvolveria lhe seriam úteis.

            A malária, no século XX matou entre 150 e 300 milhões de pessoas (RAMOS, 2007). Por ser uma doença que compromete órgãos internos, como o fígado e o baço, bem como os glóbulos vermelhos, causa grande debilidade física, tornando os enfermos indispostos para as atividades laborais. Como o protozoário permanece no sangue por longos anos, quando não é feito o tratamento correto, a população amazônica – área endêmica da doença -, passava praticamente a vida toda sem condições de se desenvolver plenamente. A ênfase que o texto confere à malária explica-se

 
[...] porque além de ser a questão mais grave na construção da ferrovia, era também o maior problema sanitário de toda a Amazônia e de outras regiões do Brasil. Interessava não somente como um entrave a uma obra determinada, mas como uma temática científica que animava a comunidade científica internacional na área de medicina tropical (SCHWEICKARDT; LIMA, 2007, p.27)

             O documento apresenta as condições sanitárias do Rio Madeira, considerando aspectos geográficos, econômicos, sociais e nosológicos, enfatizando a malária (impaludismo). Oswaldo Cruz evidenciou também, em suas considerações gerais, a qualidade dos serviços de saúde prestados pelo Hospital da Candelária, consonante com as orientações modernas da medicina e da enfermagem, mas também seus limites: não era possível atender a todos. O hospital, em sua política, tinha o intuito de atender, gratuitamente, qualquer pessoa que necessitasse, mesmo que não fosse empregada da Companhia ou seu familiar, no entanto, havia uma métrica desigual entre o número de leitos e profissionais disponíveis e a quantidade de pessoas necessitadas dos serviços de saúde. É relevante considerar que o referido hospital, diferente do que ocorre na maioria das regiões do país, não é um hospital de caridade, sustentado por irmandades religiosas, como as Santas Casas, e nem é público. A iniciativa privada tenta suprir, nesse rincão, a ausência do Estado, e constitui-se num exemplo de que, com planejamento e racionalidade, a vida e o trabalho tornam-se possíveis, mesmo em condições ambientais adversas.

            O autor apontou ainda para as contradições existentes na região de Porto Velho. A cidade, que brotava dos trilhos do pátio da ferrovia apresentava caráter moderno e multiétnico, com trabalhadores oriundos das diversas partes do mundo, com luz elétrica e conjunto habitacional com sistema de esgoto. Crescia com um mínimo de planejamento (embora as ocupações irregulares e insalubres não tardassem a aparecer). Nela havia serviços de saúde consideráveis: um hospital com cerca de 300 leitos, farmácia e serviços laboratoriais de microscopia. No entanto, muito próximo desse “enclave” modernista, estava Santo Antônio do Madeira, mais antiga que Porto Velho, mas sem infraestrutura de saúde e saneamento. Essa não contava com arruamento planejado e nem luz elétrica. Seu monumento mais conhecido são as ruínas de um presídio, em uma ilha do Rio Madeira, para onde eram levados presos políticos e outros criminosos. A população nativa (indígenas, ribeirinhos e seringueiros) que habitava o lugar tinha de conviver com degredados, forasteiros e pessoas consideradas “incômodas” ao governo da jovem República. Quiçá por ter se tornado um lócus privilegiado de castigos aplicados pelo Estado Brasileiro, não se tenham feito os investimentos necessários para que sua população, autóctone ou migrante, pudesse viver com dignidade.

            A comparação tecida por Oswaldo Cruz sobre as duas vilas é discreta, mas não o exime de registrar a impressão que Santo Antonio lhe causara:

Visitamos hontem a cidade de Sto Antonio. Não podes imaginar o que seja. Qualquer descripção por mais pessimista ficaria aquem da realidade. Basta que te diga que na cidade não ha um só habitante filho do lugar. Todas as crianças que ali nascem morrem infallivelmente e as poucas ahi nascidas estão de tal modo doentes que fatalmente morrerão breve. A immundicie é incrível. Para dar uma ideia pallida do que é ella basta que te diga que matam os bois nas ruas e ahi abandonam as visceras cabeça etc. que deixam apodrecer em plena rua, e o máo cheiro é de tal ordem que quase se fica suffocado. Estou horrorizado com tanta porcaria! (CRUZ, 2010).

            Para o cientista, fazia-se urgente implantar uma cultura da higiene em Santo Antonio e localidades próximas a Porto Velho, uma vez o conhecimento sobre a ecologia das doenças já lhe fazia supor a circulação de vírus e mosquitos, seres que não reconhecem fronteiras geográficas. Assim, não valeriam de muito as medidas profiláticas adotadas em Porto Velho se seu entorno permanecesse contaminado pela falta de controle sanitário.

            Na segunda expedição para a Amazônia, o foco das ações dos médicos-pesquisadores foi o chamado “Valle do Amazonas”, a região da bacia amazônica e das microbacias dos rios Purus, Acre, Abunã, dentre outros. Dessa feita, análises sobre o Rio Madeira e Porto Velho, em específico, não foram empreendidas, pelo fato de que, três anos antes, Oswaldo Cruz já tinha tecido suas considerações sobre aquele espaço. Informações construídas naquela ocasião, entretanto, são retomadas no novo texto, exemplificando-o ou atualizando-o com novos dados e leituras.

            Essa segunda expedição foi composta por Oswaldo Cruz, João Pedroso e Pacheco Leão e se estendeu pelos meses de outubro de 1912 a abril de 1913. O relatório que, registra os trabalhos do grupo foi apresentado ao Senhor Pedro de Toledo, Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio, em um contexto no qual a indústria da borracha iniciava sua crise, tanto devido à concorrência com a indústria asiática, quanto do ponto de vista da produtividade média realizada pelos seringueiros amazônicos, na qual influíam doenças tropicais e as dificuldades inerentes a exploração do recurso em um ambiente de floresta densa.

            Esse relatório foi encomendado pelo próprio ministro da Agricultura, Indústria e Comércio e os cientistas empenharam-se em descrever o cenário percorrido pela expedição, as condições de vida dos seringueiros e uma detalhada nosologia das principais enfermidades presentes na região.

            Um dos pontos que nos chamou a atenção foi a construção de “tipos” elaborada pelos autores, que se entendemos estereotipada e preconceituosa, também dialoga com as principais representações sociais sobre o caboclo daquele período. Segundo os autores, os que visitam a Amazônia – com exceção deles próprios -, são “aventureiros sem princípios ou sem lógica na vida, ou o cearense corajoso e tenaz, que fugindo da morte nas ardentias da secca sucumbem nos paúes amazônicos, victimas da cruel antithese da natureza” (CRUZ, 1972b).

            Para os cientistas, o esforço dos nordestinos que migraram para a Amazônia como retirantes da seca deve ser valorizado, e esse grupo étnico é considerado valoroso e trabalhador, contudo, terá de enfrentar a antítese da seca, que é a vida nas várzeas amazônicas.

            Os discursos dos cientistas do Instituto Manguinhos reproduzem um imaginário tecido por viajantes, cronistas e jornalistas, que interpreta a Amazônia como o “inferno verde”. Nesse espaço de natureza sobrepujante, o homem se vê em toda a sua fragilidade, no entanto, não é só a condição humana que está em jogo na dialética da natureza e da cultura, mas projetos políticos de colonização dos trópicos. Para Lima e Botelho (2013, p. 746)

 

As viagens à Amazônia e os relatos nela inspirados condensam uma complexa discussão sobre as possibilidades, os impasses e os sentidos próprios da construção da civilização nos trópicos. Feitos não apenas por cientistas e intelectuais estrangeiros, mas também brasileiros, os registros dos viajantes contribuíram para a composição de persuasivas representações que se tornaram, ao mesmo tempo, um ponto de partida para discussões mais amplas sobre a sociedade brasileira. Itinerários nos quais se deslocavam ideias, leituras e impressões sobre a natureza, a cultura, as populações locais e as relações entre região e nação, e mesmo entre o Brasil e o mundo, esses deslocamentos e seus correspondentes relatos permaneceram cruciais nas duas primeiras décadas do século XX.

 
            Nesse sentido, os cientistas criticaram ainda a falta de racionalidade na exploração da borracha, que segue as determinações da floresta em vez da lógica humana. Os prejuízos econômicos dessa falta de racionalidade são considerados prejudiciais ao florescimento da vida na Amazônia, e esses prejuízos se intensificam ainda mais na medida em aquele espaço é marcado por patologias tropicais que desafiam a saúde pública.

            A indústria gomífera é desafiada pelas doenças tropicais, que coloca os seringueiros em face do “espectro da morte”, representado principalmente pela malária. Em sua segunda parte o relatório (CRUZ, 1972b) apresenta diversas análises sobre as questões médico-sanitárias dos rios Solimões, Juruá e Tarauacá, indicando a sazonalidade das principais doenças constatadas. A terceira parte, denominada “notas sobre a epidemiologia no Valle do Amazonas” alerta para o fato de que o interior do vale do Amazonas é pouco conhecido e pouco estudado pela Medicina Experimental. Aquela porção do espaço foi descrita no texto como de precárias condições de vida e elevados índices de mortalidade. Para Oswaldo Cruz e sua equipe, contudo, esse quadro é passível de superação na medida em que as medidas profiláticas forem aceitas e adotadas pela população e seus governos.

            O texto é crítico quanto a determinismos geográficos que atribuem a causas meteorológicas ou ambientais a inadaptação do homem à vida naquele espaço e seu estado de constante enfermidade. Os cientistas representam uma visão moderna e positiva da ciência, mediante a qual as adversidades do meio físico podem ser superadas com medidas científicas, como a produção de vacinas, o controle de vetores, a proteção das residências com telas em suas portas e janelas, o uso de mosquiteiros e de medicação para restabelecimento da saúde.

            A profilaxia de doenças parece mais enfatizada do que a promoção da saúde, primeiro porque esse não era um conceito muito utilizado naquela época, e segundo porque poderia ser inconveniente, para cientistas que dependem dos recursos do Estado para desenvolver suas pesquisas, levantar todas as obras públicas necessárias para o saneamento da região. Embora os documentos analisados apresentem uma perspectiva bastante técnica, com descrições e medidas objetivas sugeridas aos gestores, é digna de nota a preocupação humanista dos cientistas do Instituto Manguinhos, que compreendem o sofrimento humano das populações amazônicas e o percebem como limite ao desenvolvimento econômico do país.

            Os documentos, brevemente analisados por essa pesquisa, possibilitaram o entendimento das vinculações entre ciência e saúde no espaço amazônico, nos primórdios da República, o lugar estratégico ocupado pela Amazônia para o Estado brasileiro e para o próprio desenvolvimento científico, além de favorecem o conhecimento sobre Porto Velho no início do século XX, antes mesmo de sua elevação à categoria de município. No caso de Porto Velho, em particular, considera-se que a expedição de Oswaldo Cruz de 1910 foi relevante para sua emancipação política, não só pelas medidas profiláticas adotadas após a vinda dos cientistas, que possibilitou melhorias nas condições de vida e saúde da população – especialmente da população ligada aos trabalhos da ferrovia Madeira-Mamoré, quanto por dar visibilidade ao lugar, que graças à recepção de cientistas de renome, se fez lembrar na mídia e na política nacional.

 

Referências

 

 

CHAGAS, Carlos. “Notas sobre a epidemiologia do Amazonas”, Brazil Médico, Rio de Janeiro, v.27, n.42, p.450-456. 1913.

CRUZ, Oswaldo. Considerações gerais sobre as condições sanitárias do rio Madeira. Rio de Janeiro. Papelaria Americana, 1910. In: Sobre o saneamento da Amazônia. Manaus, Philipe Daou, 1972.

_________, Oswaldo. Relatorio sobre as condições medico-sanitarias do valle do Amazonas apresentado a Sua Exa o Sr. Dr. Pedro de Toledo - Ministro da Agricultura, Industria e Commercio. In: OSWALDO Gonçalves Cruz: Opera omnia. Rio de Janeiro: Impr. Brasileira, 1972b. p.663-718.

_________, Oswaldo. Dossiê Miloca - 1910/1911 - Expedições científicas de Manguinhos. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: <http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=607&sid=7>. Acesso em 02/08/2014.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LIMA, Nísia Trindade; BOTELHO, André. “Malária como doença e perspectiva cultural nas viagens de Carlos Chagas e Mário de Andrade à Amazônia”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos , Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2013, p.745-763.

SCHWEICKARDT, Júlio Cesar. Ciência, Nação, Região: as doenças tropicais e o saneamento no estado do Amazonas, 1890-1930. Manaus, FAPEAM/FIOCRUZ, 2011.

SCHWEICKARDT, Júlio Cesar; LIMA, Nísia Trindade. “Os cientistas brasileiros visitam a Amazônia: as viagens científicas de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas (1910-1913)”. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.14 suppl.0 Rio de Janeiro Dec. 2007

 

 

Nota

[1] Embora se afirme que Oswaldo Cruz tenha estado na Amazônia pela primeira vez em 1905, não foi possível localizar documentos sobre essa sua estada, razão pela qual nos detemos na análise das expedições de 1910, ao Vale do Rio Madeira, e na de 1913, ao Vale do Amazonas.



Recebido em 20/11/2014.
Aceito em 10/12/2014.