Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.

História e patrimônio:
Os desafios da conservação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
Xênia de Castro Barbosa
Laura Borges Nogueira
Uílian Nogueira Lima

 

Resumo: A pesquisa “História e Patrimônio: os desafios da conservação do patrimônio cultural Estrada de Ferro Madeira-Mamoré frente à enchente do Rio Madeira de 2014”, está em desenvolvimento no Instituto Federal de Rondônia e compõe um dos subprojetos do macroprojeto institucional denominado “Banzeiro: uma análise sistêmica da enchente do Rio Madeira de 2014 e seus efeitos socioeconômicos e ambientais”. A pesquisa visa construir informações sobre os principais desafios enfrentados pelos gestores culturais na restauração e conservação daquele sítio no contexto da cheia que o impactou no primeiro trimestre desse ano, bem como sensibilizar, por meio de oficinas, estudantes do Ensino Médio integrado ao Técnico quanto aos significados e disputas em torno da obra. As análises aqui apresentadas são ainda de caráter parcial, uma vez que a pesquisa encontra-se em desenvolvimento.

Palavras-chave: História. Patrimônio. Educação.

Abstract: The research “History and Heritage: challenges to the conservation of the cultural heritage Madeira-Mamoré Railway in terms of the flood of the Madeira river in 2014”, is being developed in the Instituto Federal de Rondônia and is one of the subprojects of the major institutional Project called “Banzeiro: a systemic analysis of the flood in the Madeira river in 2014 and its socio-economic and environmental effects”. The research aims to generate information on the major challenges faced by the cultural managers in the restoration and conservation of that site in the flood context that had an impact during the first quarter of this year, as well as, through workshops, make Technical-integrated High School students aware of the meanings and disputes involving the railway. The analysis here presented is still partial, since this research is still being developed.

Key words: History. Heritage. Education.

 

 

Introdução

 

            Trem fantasma, ferrovia do diabo, caldeirão do inferno... Assim era chamada a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) e seu trecho encachoeirado na proximidade de Santo Antonio do Madeira. Se o nome sugere literatura de horror, a história da execução desse projeto confirma os piores pesadelos imaginados por imigrantes e indígenas que se viram envolvidos pelo empreendimento. Para os indígenas, que da noite para o dia viram seu território invadido por homens estranhos, transportando no calor da floresta objetos pesados, de um material que desconheciam, só restava resistir aos invasores. Para os trabalhadores das 50 etnias que vieram construir a linha férrea, o desafio de sobreviver a um ambiente hostil e a um projeto capitalista insensível aos direitos dos trabalhadores, que os demitia sem nenhuma assistência assim que manifestavam os primeiros calafrios da malária.

            A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré começou a ser construída em 1872, sob a administração da empresa estadunidense Madeira & Mamore Rail Company Limited. O projeto, colonialista e ambicioso para a época, visava à injeção de capitais ociosos em projetos potencialmente lucrativos nos países subdesenvolvidos e impor sua lógica sobre povos e espaços considerados inferiores e improdutivos. Para o Brasil, a obra significava possibilidade de integração dos territórios amazônicos ao restante do país, e maior agilidade no transporte do látex produzido nos seringais amazônicos, uma vez que a borracha era um dos principais produtos de exportação brasileira do período. Para seringueiros e comerciantes brasileiros e bolivianos do eixo Madeira-Mamoré, a construção da linha férrea representava a esperança de reduzir as mortes e os prejuízos causados pelo trecho encachoeirado do Rio.

            Por ser uma obra de porte vultoso, a ferrovia atraiu grande contingente de pessoas, que se substituíam umas às outras à proporção das doenças e das mortes; e a necessidade de se evitar prejuízos e novas interrupções levou à implantação, por parte da administração da empresa, de uma infraestrutura básica de saneamento e atenção à saúde, expresso no complexo hospitalar da Candelária – que englobava um hospital com enfermaria, uma farmácia e um laboratório. E pela força dessas ações, pelo crescimento da população que mensalmente era trazida à região ou pela força da própria vida, que insiste em prosseguir mesmo diante do absurdo, a população do entorno do pátio dessa ferrovia cresceu, dando origem a uma improvável cidade – Porto Velho.

            O núcleo urbano de Porto Velho formou-se nas adjacências do pátio da estrada de ferro. Ferroviários, mecânicos, lenhadores, comerciantes, pastores, padres, pescadores, indígenas, lavadeiras, cozinheiras, donas de casa e prostitutas foram os seus primeiros habitantes. Esses trabalhadores e trabalhadoras, em sua maioria estrangeira, indicam a formação de um mercado de mão de obra internacional, passível de migração em massa na busca por inserção social:


A forma de recrutamento desses exércitos proletários dependerá sobretudo das oscilações em seu valor. É do exército industrial de reserva, das franjas do sistema capitalista que sairão seus contingentes maciços, excetuados os artífices mecânicos e outros ofícios qualificados. Em geral com baixa qualificação técnica, a relativa escassez ou abundância de sua oferta no mercado internacional determinarão as regiões geográficas de suprimento. O caráter das relações de trabalho irá também variar numa escala que compreende desde o assalariado livre até formas compulsórias de exploração, incluindo modalidades servis e escravistas, todas elas comandadas pelo movimento do capital em sua forma mais moderna (HARDMAN, 2005, p. 149)

 

            O fato acima apresentado sugere ainda a vinculação entre capitalismo e escravismo moderno, uma vez que, em alguns casos, as condições de trabalho vivenciadas por esses trabalhadores nos países de capitalismo periférico reproduzem práticas de exploração compulsória, violências físicas e interdição de espaços. Os conflitos e as contradições sociais atravessaram o século sem medidas efetivas de mitigação.

            Em 1914, Porto Velho foi elevada à categoria de município (pertencente ao Território Federal do Amazonas), por meio da Lei 757, de 2 de outubro de 1914. A partir daquele ato, novas inscrições de poder foram realizados em seu território, evidenciando os conflitos entre urbanismo e urbanização, entre o planejamento e a vida em seu desenvolvimento (MEDEIROS, 2010).

            Seus limites territoriais, que se alteraram ao longo do tempo foram estabelecidos pela primeira vez pelo Decreto n. 1063, de 17 de março de 1914. De acordo com Matias (2013) este Decreto

[...] marca os limites do Termo Judiciário de Porto Velho”, com o seguinte traçado: ao norte o paralello que passar pela bocca do igarapé São Lourenço, a montante da praia do Tamanduá, até encontrar os limites com o município de Lábrea; a leste uma linha partindo do ponto fronteiro a bocca do igarapé São Lourenço, na margem direita do rio Madeira, vá encontrar o ponto em que o paralello de 8º 48’ sul corta o rio Candeias, em sua margem esquerda; ao sul o citado paralello, limite com o estado de Mato-Grosso, entre a margem esquerda do rio Candeias e margem direita do rio Madeira até a foz do Abunã; o rio Abunã até o limite com o território contestado do Acre e esse território; e a oeste, o município de Lábrea”. Portanto, antes de criar o município, o governo amazonense cuidou de delimitar seu espaço físico. Mas fez uma confusão geográfica por ignorar as terras do município de Canutama e invadir uma parte do estado do Mato Grosso, no município de Santo Antonio do Rio Madeira.

 
               
Em 1943, Porto Velho foi transformada em Capital do recém-criado Território Federal do Guaporé, que em 17 de fevereiro de 1956 passou a se chamar Território Federal de Rondônia, em homenagem ao sertanista Cândido Mariano Rondon. Em 04 janeiro de 1982 o Território Federal de Rondônia foi elevado à categoria de Estado de Rondônia.

            Do ponto de vista administrativo, estes eventos da vida política resultaram em uma nova dinâmica na relação da sociedade com o Estado, originado, principalmente um sistema burocrático e dando forma a aparelhos ideológicos e repressores, que remodelaram a paisagem e a cultura de Porto Velho.

            Porto Velho, capital de Rondônia, cresceu “dando as costas” para a ferrovia e para o Rio Madeira, que lhes permitiram as primeiras levas de povoadores Depois de formada, eventualmente olha para trás, na busca de tentar entender esses elementos com os quais se vincula, mesmo contra sua vontade ou além de seu entendimento. A ferrovia e o rio são para parte de sua população – a mais progressista – como parentes indesejados vindos do interior, representantes de um tempo e um tipo de experiência que se prefere esquecer. Já para outros, cultivadores da nostalgia, o pátio e o rio são elementos quase que sagrados que precisam ser preservados a qualquer custo, para a manutenção de uma identidade, que, como todas as outras, é forjada na dialética dos interesses.

            Tão problemático quanto o desejo de esquecimento é o culto de sua memória, quando desprovido de reflexão sistemática, pois leva à fetichização e ao esquecimento do significado histórico do símbolo – um símbolo da modernidade na selva – que se impôs violentamente, promovendo a dizimação de populações nativas e de trabalhadores pobres que para cá vieram.

            No ano de seu centenário, localizados entre esses dois polos, buscamos na história as ferramentas para produzir uma reflexão acerca dos desafios da conservação do patrimônio que o conjunto arquitetônico da EFMM representa. Somos favoráveis à sua conservação como monumento à lembrança dos impactos dos projetos coloniais modernos e como recurso pedagógico para o ensino da história e da cidadania. Somos favoráveis à problematização da tragédia que a obra ocasionou, para que a história não se repita como farsa em novos empreendimentos modernizantes que ferem a vida nesse ecossistema.

            A História é um campo do saber cujo objeto de estudo é as ações dos homens no tempo e no espaço (BLOCH, 2002). Ao concentrar-se nos vestígios materiais e imateriais que o passado legou o historiador ou o estudioso da história opera com dois tempos: o passado e o presente, na busca por construir uma narrativa esclarecedora e plausível da sociedade que produziu tais vestígios. Esta operação, sem dúvida carregada de idéias, interesses e crenças do presente não apenas lança luzes sobre um passado envolto em sombras, mas sobre o próprio presente.

            Cabe aos estudiosos da História, por seus métodos e técnicas trazer à cena pública o conhecimento do que é relevante para a vida em sociedade. Por outro lado, povos de todas as partes do mundo, embora possuidores de noções e regimes de historicidade diferenciados, desde os tempos mais antigos apresentam a preocupação de deixar registrados seus acontecimentos mais importantes, edificando-os por meio de documentos diversos. Nesse sentido, Le Goff (1990), chegou mesmo a discutir a equivalência do termo documento ao sentido da expressão “monumento”. Para ele documentos são monumentos, na perspectiva em que foram produzidos ou conservados com uma intenção: a de permanecer como sinal que conjura contra o esquecimento e a morte. Embora a noção de documento como monumento, como edificação intencional de um Poder já estivesse presente desde a Idade Média, o inverso praticamente não ocorria, ou seja, os historiadores preferiam adotar por fonte apenas documentos escritos, excluindo de suas análises uma infinidade de outros objetos culturais que também são registros expressivos de um tempo e de uma sociedade. Tal preferência pelos documentos escritos ditos oficiais encontra justificava em uma maior segurança quanto aos métodos clássicos da crítica documental: a heurística (crítica de ordem externa, principalmente quanto à autenticidade) e a hermenêutica (crítica interna, do conteúdo).

            A partir de 1929, com a instituição do movimento intelectual francês denominado Escola do Annales, a História passou por uma renovação profunda de métodos, problemáticas e perspectivas de abordagens. A noção de documento se ampliou e passou-se a considerar como fonte para as pesquisas historiográficas tudo o que produzido pelo homem ou tocado por ele deixou vestígios sobre sua vida; tudo o que, em alguma medida, o expressa. Nesse contexto, a ciência histórica abriu-se para o trabalho com documentos diferenciados, passou a valorizar as matemáticas sociais e a manifestar uma atenção especial quanto ao uso do patrimônio cultural como fonte histórica, assim como propor atividades para sua valorização e divulgação do conhecimento.

                        Somente a partir de 1929 foi possível, portanto, uma História engajada nas discussões sobre Patrimônio Cultural, seja como bem público e histórico a ser conservado, seja como elemento prenhe de significados que viabiliza a escrita da história.

            É relevante notar que o termo “patrimônio cultural” é substituto do termo “patrimônio histórico e artístico nacional”. A alteração, elaborada pela nova carta magna (BRASIL, 1988) não foi só de nomenclatura, como também de concepção e de representatividade, como podemos perceber ao compararmos o Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937 e a Constituição Federal de 1988:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 1937).

             O novo conceito, exposto no artigo 216 da Constituição Federal, exclui a ideia de “excepcional valor”, que é relativo e arbitrário, e inclui a ideia de referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira.

            No Brasil, portanto, o ordenamento constitucional optou pelo termo sintético “Patrimônio Cultural”, para envolver bens culturais diversos, como os bens culturais históricos, artísticos, arqueológicos, paleontológicos, etnográficos, folclóricos, paisagísticos, dentre outros. A lei opera com uma concepção ampliada de cultura, que abarcaria todas as produções humanas ou fenômenos com os quais tenhamos relação. Ainda do ponto de vista jurídico, o patrimônio cultural brasileiro é, segundo (SILVA, 2001), um modo de preservar os valores das tradições, da experiência histórica e da inventividade.

Conforme o Art. 216 da Constituição Federal,

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem (EC n. 42/2003)

I-              as formas de expressão;

II-            os modos de criar, fazer e viver;

III-         as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV-          as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V-            os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

                 Sem adentrar no mérito das discussões sobre as diversas formas de expressão desse patrimônio reconhece-se seu valor enquanto síntese de processos históricos e identitários variados, de memórias, crenças, lutas e visões de mundo, sendo uma obrigação individual e coletiva sua preservação, e uma obrigação do Estado sua promoção, preservação, valorização e facilitação do acesso à sociedade.

            Como vivemos em um tempo de rápidas transformações, em que os processos históricos tendem a ser esquecidos e em que as identidades são fluidas e cambiantes, o patrimônio cultural pode constituir-se em importante ferramenta de educação histórica, favorecendo as memórias e identidades coletivas dos grupos e a própria identidade nacional. Não se trata, desse modo,

[...] de imobilizar, em um tempo presente, um bem, um legado, uma tradição de nossa cultura, cujo suposto valor seja justamente a sua condição de ser anacrônico com o que se cria e o que se pensa e viva agora, ali onde aquilo está ou existe. Trata-se de buscar, na qualidade de uma sempre presente e diversa releitura daquilo que é tradicional, o feixe de relações que ele estabelece com a vida social e simbólica das pessoas de agora. O feixe de significados que a sua presença significante provoca e desafia (BRANDÃO, 1996, p.51).

             Para problematizar esse feixe de significados que o patrimônio cultural provoca é que se faz necessária a Educação Patrimonial, entendida como prática difusa na sociedade e nas instituições de ensino com vistas à compreensão, conservação ou ressignificação dos elementos que favorecem a memória e a identidade coletivas.

            De acordo com o IPHAN (2014) a Educação Patrimonial deve envolver toda a sociedade, bem como as instituições de ensino e pesquisa, embora se reconheça que os processos educacionais e formativos transcendam às atividades escolares. Para esse instituto, essa educação patrimonial deve ser feita de forma transversal e dialógica, valorizando as diferentes percepções dos diferentes atores territoriais.

            No Brasil, a educação patrimonial ainda não é uma prática suficientemente disseminada no território nacional, tanto em escolas quanto em entidades e movimentos sociais. Nos espaços escolares que operam com essa discussão e forma de educação tem-se constatado predominância de atividades voltadas à conscientização quanto à preservação patrimonial, com foco na conscientização quanto aos danos da depredação, do acúmulo de lixo e de outras ações irresponsáveis. Não restam dúvidas de que essas linhas de ações devem ser mantidas, no entanto, não são suficientes, tendo em vista que não incluem a responsabilidade do Estado e a divergência de interesses e disputas pela memória.

            Em Porto Velho, as discussões sobre a pertinência da educação ambiental e seus desafios têm ganhado destaque pelo fato de que seu patrimônio cultural mais conhecido foi fortemente atingido pela cheia do Rio Madeira, no primeiro trimestre de 2014. Preocupações por parte da sociedade das escolas e de organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil têm pressionado o município, o Estado e mesmo o Ministério Público a tomar providências quanto ao conjunto impactado. Os galpões que guardavam peças de maquinário e mobiliário da ferrovia Madeira-Mamoré foram inundados e após a estiagem ficaram cobertos de lama. Até o dia oito de novembro de 2014, os objetos no interior dos galpões-museus encontravam-se na mesma situação, embora o terreno externo já tenha recebido obras de limpeza e manutenção.

            Compreende-se que a restauração e mesmo a limpeza de peças de valor histórico, artístico ou cultural, como as do museu da ferrovia Madeira-Mamoré em Porto Velho não seja tarefa fácil. O trabalho de limpeza e restauro requer previamente estudos arqueológicos e históricos do bem e respeito à integridade estética do conjunto, bem como o registro das possíveis alterações sofridas pelo bem, sejam pelo impacto, seja pela ação de manutenção ou restauração. Importante que a avaliação dos danos e a manutenção ou restauração sejam feitas por profissionais capacitados com base na ABNT NBR 14653-1 e outras instruções técnicas pertinentes.

            Além dos desafios de ordem técnica presentes no processo há ainda os desafios de ordem política e econômica que remontam ao valor atribuído ao bem pelos gestores e pela sociedade e o quanto se pretende investir na obra.

            O complexo arquitetônico da EFMM é um patrimônio cultural que abrange um museu ferroviário, uma praça e as edificações de uma antiga estação central da centenária ferrovia. Esse conjunto, localizado à margem direita do Rio Madeira é um dos mais importantes lugares de memória da população de Porto Velho, mas há conflitos em relação a seus usos e significados.

            Depois de décadas abandonado pelo poder público e utilizado por criminosos, o espaço foi revitalizado e comemorou seu primeiro centenário em 2012. Desde 2005 esse conjunto arquitetônico e seus componentes foram tombados pelo IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e em 2008 o Ministério da Cultura, por meio da portaria ministerial 108 o sagrou Patrimônio Cultural Brasileiro.

            O fato de esse patrimônio ter sido afetado diretamente pela cheia do Rio Madeira em fevereiro de 2014, fez com que muitos bens específicos de seu acervo fossem resgatados e, tal como as pessoas, realojados em locais que não são os mais adequados para sua preservação, conservação e visitação pública, embora se reconheça o esforço dos gestores na tentativa de colocá-los a salvo da enchente, que ultrapassou quase 20 metros em relação ao nível normal do rio. Permaneceram nos galpões principalmente os objetos mais pesados, difíceis de serem manuseados.

            Nessa situação em particular, em que a ameaça ao patrimônio não veio da sociedade, com as tradicionais práticas de pichação e depredação do bem público, mas de fenômeno ambiental complexo, tem-se como necessário estudar o papel do Estado, enquanto gestor e salvaguarda do mesmo, sem negligenciar, contudo, as possibilidades democráticas da participação da sociedade civil. Uma estratégia sugerida para o enfrentamento do problema é o envolvimento de professores e estudantes da rede pública de educação nas discussões sobre a gestão desse patrimônio e no tratamento pedagógico de seus significados sociais, ao lado do corpus legal que rege a preservação de bens desse tipo.

Considera-se a Educação Patrimonial

[...] um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da auto-estima (sic) dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira compreendida como múltipla e plural (TEIXEIRA, 2008, p. 200).

             A Educação Patrimonial é um recurso indispensável para a compreensão da cultura, que na definição dada por Geertz (1989), constitui uma teia de relações socialmente construída e que perpassa todas as ações humanas, transcendendo, portanto, a ideia de objetos específicos e de categorizações impregnadas de juízo de valor, como as que separavam uma cultura dita erudita, de uma cultura dita popular, promovendo a valorização de algumas expressões e bens em detrimento de outros. Destaca-se que essa perspectiva de cultura com a qual trabalhamos está em acordo com o próprio ordenamento jurídico brasileiro (CF, 1988), que além de entendê-la como um direito assegura sua pluralidade e pluralismo de manifestações, nos limites da lei.

 

Referências

 

 ABNT. NBR 14653-1. 2001.

 

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “Cultura, educação e interação: observações sobre ritos de convivência e experiências que aspiram torná-las educativas” In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues et al. O difícil espelho: limites e possibilidades de uma experiência de cultura e educação. Rio de Janeiro: Iphan, 1996.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Editora do Senado, 1988.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2007.

_______. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Rio de Janeiro: Senado Federa, 1937.

FERREIRA, MANOEL RODRIGUES. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 2005.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

HARDMAN, F. F. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº. 9.394 1996), Brasília: 1996.

SILVA, José Afonso. Ordenação constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros Ed, 2001.

TEIXEIRA, Cláudia Adriana Rocha. “A Educação patrimonial no ensino de história”. Revista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação. Biblos, Rio Grande, 22 (1): 199-211, 2008 Disponível em: <http://www.seer.furg.br/biblos/article/view/868/347> . Acesso em 18/02/2014.


Recebido em 20/11/2014.
Aceito em 10/12/2014.