Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.
Migração e identidade do negro em Rondônia
        
Simeia de Oliveira Vaz Silva

 

RESUMO: O presente artigo tem a princípio algumas pretensões, sua proposta inicial é compreender como a população atual do estado de Rondônia foi formada com uma grande contribuição de negros, uma vez que Rondônia não faz parte da rota do Atlântico e não tem tradição no comércio de escravizados negros africanos, e assim entender a identidade negra rondoniense dentro desse processo migratório. A segunda pretensão do artigo ao começar a esboçar esse entendimento, é dar início à primeira parte do projeto O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto Velho-RO: a aplicação da Lei 10.639/2003[1]. Para compreender esse processo de formação da população local buscou vislumbrar mais detalhadamente importantes momentos históricos constituintes dessa identidade sendo o período de formação do Estado, a vinda dos afro-caribenhos e os momentos de intensa migração para o Estado. Esses períodos distintos podem nos ajudar a compreender a formação dessa população e como a identidade rondoniense foi se caracterizando ao longo desses processos. E assim, abordando a primeira parte do projeto de pesquisa acima citado ao dar contornos ao quadro local ao qual a Lei 10.639/2003 irá se permear; partindo do ponto de sancionamento da lei, aos seus antecedentes como os PCNs e ao lançamento da DCN - Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e a busca por uma identidade.

Palavras-chave: Rondônia – identidade- Lei 10.639/2003.

 

ABSTRACT: The present article has some claims at first, its initial proposal is to understand how the current population of Rondônia State was formed with a large contribution of blacks, once Rondônia is not part of the route of the Atlantic and has no tradition in trade in enslaved black Africans, and so understand the Black identity rondoniense within this migration process. The second claim of the article when you start sketching this understanding, is to begin the first part of the project the teaching of history and of Afro-Brazilian culture in Porto Velho-RO: law enforcement 10,639/2003. To understand this process of forming local population sought to glimpse more important historical moments constituents see this identity being the period of formation of the State, the advent of the Afro-Caribbean and moments of intense migration to the State. These distinct periods can help us understand the formation of this population and how the identity rondoniens.

Keywords: Rondônia-identity-Law 10,639/2003.

 

INTRODUÇÃO

 
            O presente artigo é resultado da proposta avaliativa do seminário sobre Migrações e Identidade ministrado pela Prof.ª Taís Campelo no curso de Mestrado em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em parceria com a Faculdade Católica de Rondônia. O projeto de pesquisa O ensino da História e da Cultura afro-brasileira em Porto Velho-RO: a aplicação da Lei 10.639/2003 nasce da vontade de entender como as escolas públicas de Porto Velho-RO se adaptaram ou não para atender à lei, uma vez que nosso Estado tem uma população negra imensa, e tentar entender isso é ver e analisar muitos pontos ainda não vistos, tentando dessa forma preencher algumas lacunas.

        É preciso analisar, por exemplo, que a história dos escravizados no Brasil foi marcada pelos maus tratos, trabalho forçado, pela violência e pela discriminação racial. Ao longo dos anos, mesmo após a abolição da escravatura, o negro foi colocado às margens da sociedade, a ponto de nosso ex-presidente, Luís Inácio da Silva e sancionador da Lei 10.639/2003, afirmar que o Brasil tem uma dívida histórica com os negros, o que gerou muitos protestos e críticas, segundo algumas opiniões nossa dívida como nação é com os indígenas, os negros deviam cobrar essa dívida dos europeus portugueses. Séculos de subjugação conduziram o negro, que foi escravizado, ou seus contemporâneos e descendentes a estarem  sempre um passo atrás do restante da sociedade, salvo as exceções. O que a referida lei busca, em sua intencionalidade é “resgatar” a contribuição do que a Lei chama de povo negro[2] nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil e para isso tornou obrigatório no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro) e o ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira, de maneira interdisciplinar e principalmente nas áreas de História, Educação Artística e Educação Física.

            A Diretriz Curricular Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira parte da concepção da obrigatoriedade do Estado em contribuir com políticas públicas afirmativas no combate à discriminação do negro. A escola é, portanto, o ponto de partida, é no cotidiano escolar, tendo como base o ensino das áreas de História, Educação Artística e Educação Física como determina a Diretriz, que novos princípios devem ser estabelecidos para nortear os pressupostos pedagógicos na construção dessas ações afirmativas.

 

MIGRAÇÃO E MOVIMENTO DO NEGRO

 

            É a partir de 1985, no período em que se convencionou chamar de pós-redemocratização, que o movimento negro ganhou força na sociedade brasileira e representatividade em força de lei com a aprovação de dois grandes documentos – os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), em 1996, que introduziram no ensino, em seus temas transversais os conteúdos de história africana e a DCN (Diretriz Curricular Nacional) para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira nas disciplinas já acima citadas. Esses documentos, embora resultantes de uma trajetória de movimentos negros apontam para lados opostos. Os PCNs, ao abordarem o tema da diversidade cultural, trabalham a ideia de construção de uma identidade nacional através da miscigenação das três raças, o branco, o negro e o índio que juntos formariam a nossa atual sociedade, uma vez que esses grupos se miscigenaram e formaram a nossa população e, portanto, buscam valorizar essa sociedade, valorizar isso é resgatar essa identidade nacional. Os Parâmetros então fazem parte da formação de um discurso sobre a origem da população brasileira, da construção de um discurso oficial sobre a nação[3]. O papel do negro ganha destaque a partir da gestão política de Getúlio Vargas que, no seu governo pós 1937, deu início a um projeto de formação de nação e foi buscar na cultura negra esse traço considerado genuinamente brasileiro, é assim, por exemplo, que se valoriza o samba. Entretanto, a Diretriz Curricular Nacional aponta para a valorização da história e cultura afro-brasileira, levando a entender então que, se há a necessidade do ensino, então não há valorização dessa cultura. É, portanto, o resultado de uma longa discussão política em torno das questões étnicas, discussões essas que ganharam espaço desde 1930.

Desde o final da década de 1990, as noções de cultura e diversidade cultural, assim como de identidades e relações étnico-raciais, começaram a se fazer presentes nas normatizações estabelecidas pelo MEC com o objetivo de regular o exercício do ensino fundamental e médio, especialmente na área de história (...) (ABREU e MATTOS, 2008, p. 2).

             Dessa forma, a Diretriz Curricular Nacional nasce nesse ensejo e dentro dessa perspectiva de discussão sobre etnia, e apresenta em seu seio avanços e retrocessos, que se manifestam em permanências e descontinuidades. Ela vem atender aos objetivos propostos pela Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96) e pela 10.639/00 que programavam no ensino básico o ensino da História e cultura afro-brasileira, cumprindo dessa maneira a legislação federal e muitas outras vozes[4]. Vozes essas que se tornam relevantes na construção dessa África e seus significados, e nesse sentido o Movimento Negro ganha destaque na busca por compreender e difundir essa África no Brasil, principalmente a partir de 1970. Por isso, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 é considerada para esses movimentos uma vitória e também o início de uma nova luta, dessa vez para sua implantação de modo efetivo: habilitando professores, produzindo material didático ou paradidático, enfim, viabilizando o cumprimento da Lei. E nessa busca de viabilização da Lei é que se encontra o objeto de pesquisa.

            Definido então o projeto de pesquisa e sua relevância, podemos compreender sua relação com o tema do atual artigo. Se há uma lei federal que nos atinge diretamente, não apenas porque se estabelece em nossas escolas, mas também porque busca resgatar o valor de uma população de número expressivo em nosso Estado, entender como essa parcela da sociedade rondoniense se formou é importante. Todavia, voltamos para a pergunta inicial: como entender a diáspora negra em Rondônia se esse território não fazia parte da rota do Atlântico? Porque pensar isso é pensar como se constitui essa identidade cultural em suas múltiplas complexidades,

De forma mais geral, esse debate torna-se um problema teórico a partir da modernidade quando a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações. Esse tema está relacionado (...) como nos constituímos, percebemo-nos, interpretamos e nos apresentamos para nós mesmos e para os outros (...) (ESCOTEGUY, 2001, p. 139).

          Entender, portanto, essa identidade negra é algo extremamente complexo é volátil, não é um conjunto de símbolos fechados. Como afirmou Hall,

é contraditório, portanto, sugerir uma relação sincrética, porque os elementos de igualdade são inscritos diferentemente pelas relações de poder, principalmente as de dependência e subordinação do colonialismo (HALL, 2011, p. 34).

             Passamos a perceber aí uma relação híbrida cuja migração tornou-a mais forte. A migração é um evento histórico mundial que colocou essas questões como raça, etnia, identidade entre outras à mostra para serem discutidas, analisadas e refletidas; e segundo Hall, tornou-se a própria experiência da diáspora. Entender essa identidade em Rondônia é uma pretensão que não alçamos voo pleno neste artigo, apenas discutiremos alguns conceitos teóricos, uma vez que para se pensar sobre isso era necessário entender a identidade rondoniense, que não é tarefa fácil, ao contrário é uma tarefa árdua e longínqua que este trabalho não tem como demarcar em absoluto o seu território, mas pode e irá no decorrer demarcar alguns pontos para posteriormente se definir algumas fronteiras e alguns limites. Isto é, vislumbrar pequenos voos. O Estado de Rondônia como tantos outros lugares é resultado de um intenso processo migratório e, portanto, diaspórico que torna quase que impossível identificar uma identidade própria. Somos o exemplo do hibridismo e da ambiguidade.

            O primeiro desse momento histórico está relacionado com a formação do estado. Rondônia que foi constituído com o desmembramento de terras pertencentes ao Mato Grosso e Amazonas, a partir do século XVII. Nesses lugares do vale do Guaporé, a colonização portuguesa não diferiu do restante do país, baseou-se no trabalho escravo, na exploração de riquezas, nesse caso a mineração de ouro, mas com um diferencial apenas: o fato de que a Amazônia serviria como ocupação militar para garantir as fronteiras portuguesas.  No início do século XVII, foi dada a ordem para construção de diversas fortificações na região:

São José de Macapá, na foz do rio amazonas; Tabatinga, no rio Solimões; Marabitanas, no rio Negro; São Joaquim, no rio Branco; Real Forte Príncipe da Beira, no rio Guaporé; Forte de Coimbra, no rio Paraguai (...) (PINTO, 2003, p. 66).

             É para essa região que vieram os escravos africanos que mesmo após o fracasso dessas empreitadas coloniais se mantiveram aqui. Emanuel Pontes Pinto[5], ao escrever sobre a capital da Capitania de Mato Grosso, Vila Bela da Santíssima Trindade de Mato Grosso em seu processo inicial, afirma que havia “(...) no povoado, nessa época, somente 80 homens brancos (...)” (PONTES PINTO, 2003, p. 47). A grande maioria era sem dúvidas de escravizados africanos, cujo trabalho fez andar a máquina colonial portuguesa no vale do Guaporé e cujos descendentes fixaram aqui sua residência após a falência da empresa mineradora quando foram abandonados por seus senhores ou, pelo fato de fugirem e constituírem comunidades quilombolas ao longo do rio Guaporé, algumas delas reconhecidas hoje como remanescentes quilombolas. É claro que, nesse grupo, nos deparamos com as marcas e tradições da colonização portuguesa como o catolicismo, por exemplo. Esse grupo se fez um pouco mais recluso, mas veio, portanto, a ser a primeira onda migratória negra para o Estado.

            Um segundo momento a ser observado é o da chegada dos primeiros afro-caribenhos, mais especificamente os que vieram de Barbados e que aqui foram carinhosamente chamados de barbadianos,

(...) Esse contingente de trabalhadores especializados foi deslocado para o vale do Madeira e do Mamoré a fim de atuar na construção da ferrovia e das cidades que surgiram em função da mesma (...) (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 1).

             Vieram, portanto, para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (1873-1912) e se tornaram um grupo ímpar na história de Porto Velho, uma vez que foram primordiais para áreas como a educação e a saúde. Ao palestrar sobre a diáspora caribenha para o Reino Unido, e como essas comunidades caribenhas visualizavam sua terra natal, Stuart Hall escreveu que para os caribenhos a identidade é uma questão histórica, a noção de Caribe nasce pela violência gerada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, tutela colonial, mas que nem por isso os caribenhos deixaram de procurar sua terra prometida, que pode nunca ser encontrada. Talvez isso explique porque muito barbadianos retornaram a sua terra e outros permaneceram. É o que Benedict Anderson chama de comunidade imaginada.

            Depois desse momento, tivemos outros momentos de migração caribenha no Estado,

De fato, para além deste período de construção da EFMM, também foi assistida a migração de negros denominados “barbadianos”, “antilhanos” ou “West-indians”, como eram identificados os procedentes da América Central, em diversas regiões da Amazônia, notadamente nas áreas em que o fenômeno da urbanização se fazia sentir, como eram os casos de Belém, Manaus e Porto Velho. Portanto, ao longo da primeira metade do século XX, ainda por conta da ação de empresas estrangeiras que mantinham forte presença em toda a Amazônia, a entrada de afro-caribenhos, denominados “barbadianos” foi um processo relativamente comum na região, estando sujeita às oscilações dos investimentos e da produção da economia urbana em questão (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 8).

             Os autores acima citados destacam o isolamento social desse grupo que embora ocupando cargos de destaque e sofrendo discriminação formaram grupos fechados, parcialmente isolados, contudo isso não parece ser característica exclusiva de Rondônia uma vez que em outros países o mesmo aconteceu com comunidades caribenhas, é o caso do Reino Unido. “Lá esse processo migratório se dá em 1948, e em 1998 quando Hall proferiu a palestra esse ainda era um sentimento forte, tão forte que afirmou o pensamento de Lamina, de que a sua geração tornou-se “caribenha”, não no Caribe, mas, em Londres”. O oposto, o contraditório, o diferente a fez se afirmar dentro de uma identidade comum ao ponto de formarem comunidade de no Reino Unido. É o que Hall chama de “identificação associativa”. Onde dá primeira até a terceira geração buscava elos de associação para se identificarem, para formar uma identidade, portanto, a “formação de novas formas de identidade está ligada ao recontar o passado através da memória e à afirmação da diferença.” (HALL, 1996, p. 140). E mesmo quando o local de origem não é mais a única fonte de identificação outros fatores ou pontos serão levantados, buscando o que Hall chama de elo umbilical, buscar aquela “comunidade imaginada” que Benedict Anderson cita, onde sentimentos de pertencimento, de reconhecimento e de identidade podem ser encontrados.

            E por fim, chegamos à última leva de migração. Esse grupo constitui-se num grupo muito variado e chegou em momentos diferentes, mas todos ligados a grandes ciclos de exploração do Estado, importantes em sua formação,

O terceiro segmento populacional negro de Rondônia é muito mais difuso e variado. Constitui-se de afrodescendentes provenientes de diversas regiões do Brasil que migraram para as terras que hoje formam o Estado de Rondônia em diferentes momentos a partir do Ciclo da Borracha (1870/1945), das minerações de cassiterita, pedras preciosas e ouro (1950/1990) e para as frentes de colonização agropastoril (1960/1990) (TEIXEIRA, FONSECA, MORATTO, 2011, p. 9).

             Logo esse grupo encontrou seu espaço como seringueiros, soldados da borracha, mineradores e agricultores. Este último, em sua maioria nos projetos de colonização do Estado que nos remete aos projetos nacionais de integração desse espaço ao espaço nacional, onde a máquina pública foi utilizada para atrair ao Estado gente no sentido de encaminhar a “vocação agrícola” de Rondônia e ocupar esse território e assim garantir a soberania nacional. Como resultados desses projetos, muitas cidades do interior do estado surgiram. Esse foi um processo muito difícil e que marginalizou essas populações. Quando o ciclo da borracha ou da mineração, por exemplo, faliu, não houve uma organização por parte do Estado para acolher essa população, muitos ficaram aqui por não ter condições de retornarem. Muitos vieram enganados por propagandas inverídicas de uma terra extremamente fértil de um eldorado amazônico, que na prática não correspondia exatamente ao prometido, fazendo nascer em pouco tempo uma população expulsa do campo, de sua pequena propriedade por um pecuarista dotado de muito mais recursos tendo que ir para a cidade.

            Acredito que por causa dessa migração tão intensa no Estado de Rondônia, a implicação na identidade também foi forte e emblemática. Há uma recíproca relação entre migração e identidade. “A globalização tem implicações com a identidade” (Hall, 2011, p. 34),

Portanto, é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. Como outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias afrouxaram os laços entre a cultura e o “lugar”. Disjunturas patentes de tempo e espaço são abruptamente convocadas, sem obliterar seus ritmos e tempos diferenciais. As culturas, é claro, têm seus “locais”. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam (...)” (HALL, 2001, p. 36).

             Se a globalização em seu caráter migratório torna a identidade algo híbrido e ambíguo, essa complexidade torna-se ainda mais explícita quando percorremos a definição de Hall de que essa identidade é afirmada ou reafirmada se contando o passado e afirmando as diferenças. Isso é o que Stuart chama de “Mito Fundador”[6]. Esse mito fundador levaria a uma noção exclusiva de pátria (aquele sentimento de pertencimento de um lugar) e assim criaria um paradoxo, porque a globalização em seus efeitos é desterritorializante, ela faz uma disjuntura da cultura em seu tempo e espaço, tornando assim, a cultura uma produção daquilo que fazemos com nossas tradições que, como muito bem descreveu Hobsbawn e Ranger, são inventadas e construídas para dar sentido aos símbolos do nacionalismo e a construção da nação.

            Todavia, nesse sentido a memória torna-se o fio condutor dessa história. Como então, ver essa memória construtiva dessa identidade social? Acredito que as reflexões de Michael Pollack sobre Memória e Identidade Social vêm nos fornecer uma lente para essa análise,

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwaschs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também ou, sobretudo, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (POLLACK, 1992, p. 202).

            Então, a memória individual é também uma memória coletiva, e logo faz parte de uma identidade social que pode ser construída e reconstruída e dessa forma a identidade pode ir se transformando em meios a esses fluxos. Sendo assim, como encontrar então algo que possa ser entendido como um marco? Para Pollack isso é perfeitamente possível. Não é porque a memória sofre variações, que não podemos encontrar marcos, pontos invariáveis. Assim sendo essa memória,

(...) individual ou coletiva, pode ser flutuante, e mutável, mas, pode apresentar pontos invariáveis e imutáveis que são percebidos numa entrevista em momentos que mesmo perdendo-se na fala sempre volta a um (s) determinado (s) ponto(s) (POLLAK, 1992, p. 203).

            Logo, existem elementos que são constitutivos dessa memória individual ou coletiva, que são os acontecimentos vivenciados pessoalmente e os acontecimentos que foram vivenciados através dos outros. Além disso, as pessoas, os personagens, os lugares físicos bem como os lugares de apoio da memória como as comemorações são elementos que constroem essa memória coletiva que pode ser projetada e transferida. Essa memória tem características como a seletividade, ela é seletiva, porque escolhe os fatos a serem armazenados; é algo herdado e construído quer seja na esfera do individual quer seja do social, mas em função de preocupações pessoais e políticas.

            Vale perceber que as flutuações da memória não a diminuem, mas nos chamam a atenção ao dito e não dito da história, se toda pesquisa historiográfica se articula com lugar de produção socioeconômico, político e cultural, a escolha desse lugar ou a sua não escolha é tão significativo quanto, logo este lugar deixado em branco ou escondido pela análise (...) é uma instituição do saber (CERTEAU, 1982, p. 68).

            E essa instituição da memória como afirmou Cartroga, será sempre axiológica, fundacional, socializadora, reatualizadora de um passado que tende a fundir no presente, a subjetividade com a objetividade (CARTROGA, 2001, p. 40). E nesse caso o trabalho quase científico do historiador é que vai separar memória e historiografia. Nesse ponto, Paul Ricouer nos traz luz ao identificar que em seus próprios campos a memória e a historiografia se encontram na consciência da dúvida, consciência essa que é o princípio de um trabalho científico. Estabelecer esses limites é uma tarefa complexa, que se torna ainda mais tênue quando nos lembramos de que para Paul Veyner de certa forma a história é filha da memória, uma vez que a historiografia é legitimadora da memória, todavia o oposto também é verdade: a história é um produto da memória. A grande diferença é que enquanto a memória julga a historiografia pretende explicar e compreender os fatos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            A identidade é algo construído dentro de uma memória coletiva e social que se utiliza de valores como uma unidade física que nos dá o valor de pertencer a um lugar; a ideia de continuidade dentro de um período de tempo seja ele físico, moral ou psicológico e o valor de unidade e identificação entre as pessoas. Isso é trabalho da memória. Uma vez que,

(...) A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admisissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros (...) (POLLAK, 1992, p. 204).

 

            Foi nesse sentido então de aceitabilidade, de se passar uma imagem de si para ou outros e para nós mesmos que essa identidade social foi sendo forjada no emblemático fluxo migratório rondoniense. Dessa maneira, a aplicabilidade da lei 10.639/2003 e sua efetividade no estado de Rondônia corresponderiam à intenção da lei? Iriam ao encontro das disparidades de identidade desse Estado? Esses são questionamentos ainda em abertos que nos convidam à reflexão.

 

 

Referências

 

ABREU, Marta e MATTO, Hebe. Em torno das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana: uma conversa com historiadores. Estudos históricos. v.21, nº 41 (janeiro-junho de 2008), p. 5-20. Rio de Janeiro.

ABREU, Marta e SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. organização. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009

CATROGA, Fernando. História, memoria e historiografía. Coimbra: Quarteto, 2001. 

CHARTEU, Michel de. A escrita da história. Rio de janeiro: Forence Universitária,1982. (esp. Cap. 2: “A operação Historiográfica”, p. 65-119)

DCN - Educação das Relações Etnico-raciais e para o enino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. MEC. Brasília- DF: 2004

Escosteguy, Ana Carolina. "Identidades culturais: uma discussão em andamento". In: Cartografias dos estudos culturais: uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 139-185 e p. 217-219 (notas)

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org.:Liv Sovick. 1. ed. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2009.

Hobsbawn, Eric; Ranger, Terence. Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 271-316

Oliven, Ruben. "Cultura brasileira e Identidade Nacional (O Eterno Retorno)". In: Miceli, Sérgio (org). O que ler na ciência social brasileira? 1970-2002. V. 4 São Paulo: Sumaré: 2002. p. 15-43

Verdery, Katherine. "Para onde vão a 'nação' e o 'nacionalismo"?". In: Balakrishnan, Gopal (org). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. p. 239-247

VERENE, Alberti e PEREIRA, Amilear Araujo. Qual África? Significados da África para o movimento negro no Brasil. Estudos Históricos, nº 39, (janeiro-junho de 2007), p. 25-56. Rio de Janeiro.

 

 Notas



[1] O projeto visa compreender a como se dá o processo de migração do negro para o Estado de Rondônia, para analisar o impacto da aplicabilidade da Lei 10.639/2003 nas escolas públicas de Porto Velho. O problema a ser analisado é se os conteúdos apresentados nos livros didáticos adotados pelo Estado de Rondônia possibilitam a aplicabilidade da Lei 10.639/2003 ou não. Se a visão da História e Cultura Afro-brasileira apresentada na Lei é oportunizada pelo livro didático, que é a ferramenta imediata da implantação da Lei.

[2] Entendemos aqui a problemática do conceito. Povo negro é um conceito que indica a uniformidade de uma nação, de um povo que se identifica como negro, que tem uma história, uma identidade. A Lei não leva aqui em consideração as múltiplas etnias e cultura africana, nem suas afinidades. Todavia, usamos o termo aqui, porque fazemos menção a trechos da Lei.

[3] SANSONE. Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX.

[4] A DCN atende aos propósitos do CNE/CP6, buscando cumprir a Constituição Federal nos seus Art. 5º, I; Art.210; Art. 206, I, §1º do Art. 242; Art. 215; Art. 216; e os Art. 26, 26A e 79B da Lei 9.394/96. Além disso, responde a Constituição Estadual da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de Janeiro (Art. 306) e Alagoas (Art. 306); as Leis Orgânicas de Recife (Art. 138), Belo horizonte (Art.182, IV) e Rio de Janeiro (Art. 321, VIII); as Leis Ordinárias de Belém (Lei Municipal nº 7.685, de 17/01/94), de Aracaju (Lei Municipal nº 2.251, de 30/11/94) e a de São Paulo (Lei Municipal nº 11.973 de 04/01/96). Atende também ao Estatuto da Criança e do adolescente (Lei 8.096, 13/06/90), do Plano nacional de Educação (Lei 10.172 de 09/01/01) e as reivindicações e propostas do Movimento Negro.

[5] Professor mestre em história pela UFRJ, autor de vários livros sobre a História de Rondônia.

[6] Para Stuart Hall, o mito fundador é uma concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria. Essa identidade seria imutável e atemporal, isso seria tradição.

Recebido em 20/11/2014.
Aceito em 10/12/2014.