Zona de Impacto - ISSN 1982-9108. ANO 17, Volume 1 – janeiro/junho, 2015.



Resumo: Este ensaio proporciona o início de questionamentos levantados no campo acadêmico sobre a atuação do cientista social, tanto em âmbito técnico quanto em âmbito social. Assim, a escrita é aqui escolhida como o elemento principal que caracterize o papel deste cientista, a partir da qual pretende-se galgar investigações estritamente teóricas, afim, de entender como se legitima a escrita nas ciências sociais.
Palavras Chaves: escrita; papel do cientista social; legitimidade científica.
Abstrac: This assay provides the beginning of questions raised in the academic field on the role of the social scientist, both in the technical field as in the social sphere. Thus, writing is here chosen as the main element that characterizes the role of scientist, from which we intend to climb strictly theoretical investigations in order, to understand how legitimized writing in the social sciences.
 
Keywords: Writing; role of the social scientist; scientific legitimacy.

 

            As motivações que me levaram tecer essa rápida discussão se iniciaram após uma palestra de um antropólogo. O palestrante que compartilhava conosco suas experiências científicas, foi questionado sobre o seu posicionamento, enquanto cientista e etnólogo, a respeito do infanticídio em etnias indígenas. A resposta, não tão pouco me surpreendeu e intencionou uma problematização de questões acerca do papel de um pesquisador e cientista social diante das clivagens do contato com seu objeto de pesquisa. Não exatamente com essas palavras o palestrante argumentou que um pesquisador não pode se curvar diante das ações emergentes da cultura local de seu objeto de pesquisa, e que naquele momento dentro de uma etnia indígena o que se deve prevalecer é a neutralidade do pesquisador. Enfim, após a palestra busquei propor questões iniciais sobre de qual maneira um cientista social deve instrumentalizar sua atuação científica, de modo que a gênese de sua pesquisa não seja algo meramente objetivo e técnico, mas que contenham elementos políticos sobre a qual questão que ele irá levantar. Para isso, este artigo bebeu das ideias propostas por Max Weber ao criticar a objetividade total nas ciências humanas.

            Portanto, a tese principal deste ensaio foi trazer realces de como um cientista social pode atuar em sua escrita, uma vez que podemos supor que a escrita seria um dos maiores instrumentos que o pesquisador social detém.

            Escrever dentro e sobre uma área tão abrangente como a Ciências Sociais, além de não ser uma tarefa fácil e bastante amplificada, exige no mínimo qualidade de escrita e poder sintético. De modo geral esse campo de estudos instiga as mais diversas reflexões: estudo das origens, do desenvolvimento, da organização e do funcionamento das sociedades e culturas humanas. O cientista social pode se quiser estudar os fenômenos, as estruturas e as relações que caracterizam as organizações sociais e culturais, os movimentos e os conflitos populacionais, a construção e desconstrução de identidades e a formação das opiniões. Ele pode pesquisar os costumes e hábitos investigando as relações entre indivíduos, famílias, grupos e instituições. Desenvolve e utiliza um conjunto variado de técnicas e métodos de pesquisa tanto para o estudo das coletividades humanas quanto para metateoria. Assim ele pode interpretar os problemas da sociedade, da política e da cultura.

             Diante da proporção de possibilidades de estudos, o cientista social é considerado um pesquisador. Ele investiga, vai a campo e vivencia uma multiplicidade de realidades, de modo que depois do processo sistemático de investigação, o pesquisador, é claro, terá que expor seus resultados e a pertinência de seu trabalho. Afinal, estudar as organizações dialéticas dos homens é de extrema importância e, portanto, exige do estudioso dessa ciência uma intervenção escrita, pois é através dela que se legitimam os estudos nas ciências sociais – enquanto campo de pesquisa (CALDEIRA, 1988).

             O ideal das ciências sociais está em primeiro plano na sua capacidade de teorizar e, em outro plano, no ativismo crítico, isto é, questionar aquilo que é dado e complexificar tudo aquilo que parece elementar no social. Nesse sentido o cientista social deverá possuir uma verossimilhança no modo de agir, e usar seu atributo legítimo “a escrita[1]”, para exercer sua autonomia.

            Escrever não é apenas uma questão de profissionalismo, e nem pode se conjecturar somente no polo acadêmico. A escrita requer do autor um sentimento político, um histórico de vivências enquanto consciência crítica e não meramente uma reprodução. O cientista social no ato de sua escrita pode aparecer como uma figura intelectualizada, que ao expor os resultados de sua pesquisa tem a autonomia de exercer um caráter político e social e não apenas se prender nas técnicas profissionais. Este exercício de transitar entre uma escrita normativa e ao mesmo tempo crítica, com a problematização dos resultados de pesquisa, faz dele um intelectual, uma pessoa de caráter político e técnico. É neste contexto que se faz pertinente uma analogia entre a figura do intelectual e a instrumentalização da escrita. Said (1994) analisa a figura deste intelectual e discuti suas representações. Desse modo o autor contribui para o entendimento e proposição do que deve ou do que deveria fazer um cientista social em sua escrita.

Há o perigo de que a figura ou imagem do intelectual possa desaparecer num amontoado de detalhe, e que ele possa tornar-se apenas mais um profissional ou uma figura numa tendência social. O que vou discutir nestas conferencias tem como certas essas realidades do final do século XX, originalmente sugeridas por Gramsci, mas quero também insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro componente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e seus interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista (SAID, 1994: p. 25).

                Said reitera o verdadeiro papel do intelectual, não muito diferente disso é a atuação da escrita e consequentemente atuação do provedor desta. Não quero delinear aqui o arquétipo de um escritor nas ciências sociais, nem quero também montar um modelo de autor. Mas é de extrema importância e legitimidade que a escrita neste campo contenha elementos que desconstrua a extrema objetividade. Pois, o pesquisador e em seguida escritor, irá expor os resultados de suas pesquisas, resultados esses que, como já dizia Weber (1992), não estão ausentes dos valores dos fenômenos sociais. Essa escrita estará sempre em contato com estes fenômenos e por isso não deixará de lado as representações daquele espaço estudado. É neste momento que o sujeito conhecedor exerce sua autonomia, tanto de produtor de resultados de pesquisa quanto como ser político e social. A teorização ao ser estampada de significados desconstrói as fronteiras que a plena neutralidade impõe. As palavras filosóficas de Foucault (2001) nos ajudam a reforçar essa imagem do autor e cientista social que está sendo discutido neste texto.

Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se basta a si mesma, e, por conseqüência, não está obrigada à forma da interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; e também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer. (FOUCAULT, 1969: p.6).

                Seguindo essa linha de raciocínio, a escrita seria um “jogo de signos[2]” que contenha um conjunto de ralações entre o que propriamente está dizendo no corpo do texto, a personalidade do autor – sujeito de conhecimento – e a funcionalidade textual. A funcionalidade pode ser uma provocação ao próprio autor, uma crítica a algo externo ou os resultados de uma pesquisa. No entanto, o mais importante, precisaria ser algo além de resultados neutros de uma pesquisa empírica e não estar extremamente presa ao profissionalismo acadêmico (SAID, 2000). É importante destacar que a escrita não pode deixar totalmente de lado as regularidades, mas deve se sustentar em um campo libertário, de liberdade do autor e liberdade do leitor – seria algo bem politizado e ao mesmo tempo reconhecido pelo seu campo de atuação.

            O autor pode também utilizar da criação teórica para desconstruir certos conceitos que foram cristalizados por uma forma de conhecimento dominante. Assim, poderá dar abertura para novos lócus de conhecimento e reinventar a epistemologia a partir de conceitos e teorias que abram espaços às margens, que derrubem fronteiras entre povos e desmonte a linha crescente do saber evolucionista. Mignolo (2003) em sua metateoria argumenta que a teoria pode ser utilizada para dar uma nova versão à razão subalterna, podendo se manifestar um novo sujeito que pense o pós-colonialismo fora da epistemologia ocidental.


O que estou argumentando neste capítulo e no resto do livro é que deveríamos desvincular o conceito de teoria de sua versão epistemológica moderna (explicando ou fazendo sentido a partir de fatos ou dados isolados), ou de sua versão pós-moderna, a desconstrução de redes conceituais reificadas. Segundo entendo, um dos objetivos da teorização pós-colonial/colonial é reinscrever na história da humanidade o que foi reprimido pela razão moderna, em sua versão de missão civilizadora ou em sua versão de pensamento teórico negado aos não-civilizados (Gilroy, 1993). (MIGNOLO, 2003: p. 158).

            Este ensaio propõe o início de uma conversa que poderá provocar questionamentos e investigações futuras. Através desse início de discussão e com a contribuição de alguns autores, podemos apresentar elementos que devem compor a escrita nas ciências sociais. Mas é importante lembrar que não coube a este trabalho identificar e apontar os caminhos de uma escrita correta, mas sim levantar uma breve discussão sobre a construção da autonomia de um cientista social perante o objeto de materialização do seu trabalho. Procurei de forma sucinta, dialogar com as possibilidades que o autor nas ciências sociais tem para demarcar sua personalidade de pesquisador, de se sentir próximo do que ele é, do que ele fez e da pessoa externa – o leitor. Seja no formato que for, o autor, pesquisador e cientista seria uma figura dual no ato de sua escrita, isto é, levaria ao campo científico os resultados de um trabalho laboratorial e ao mesmo apresentaria sua identidade política, o ser social que ele é e que seus pesquisados também são. A escrita nas ciências sociais seria o instrumento que o tornaria um intelectual.

            Enfim, para conter esta discussão, podemos trazer a escritora e ativista Glória Anzaldúa, que ao dedicar uma carta as mulheres escritoras, expressou através do feminismo pós-colonial o conhecimento e o desejo de desconstruir as fronteiras que retrata a subalternidade. Anzaldúa (2000) utiliza a literatura feminista para debater a diferença dentro do próprio movimento e defender que as mulheres podem buscar sua autonomia através da escrita, fazendo surgir novas teorias.

O perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão. O que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras. O que importa são as relações significativas, seja com nós mesmas ou com os outros. Devemos usar o que achamos importante para chegarmos à escrita. Nenhum assunto é muito trivial. O perigo é ser muito universal e humanitária e invocar o eterno ao custo de sacrificar o particular, o feminino e o momento histórico específico. (ANZALDÚA, 2000: p. 233).

             Todos esses argumentos trazidos durante o texto tiveram como base de seguimento a linha de alguns autores antropólogos pós-modernistas que criticavam a teorização das experiências etnográficas da década de 1920. Esses autores lançam mão de uma abordagem que aponta a falta de senso crítico pelos antropólogos modernistas (CALDEIRA, 1988). Essas críticas também já haviam sido discutidas por Geertz em sua linha hermenêutica. Tereza Caldeira (1988), afirma a necessidade do caráter político de um escritor antropólogo. De acordo com a autora, não se deve ignorar o conhecimento que os antropólogos produzem no contato com as relações de poder e desigualdade, os antropólogos não podem ser ausentes em seus textos (CALDEIRA, 1988). Desse modo, as ideias de Caldeira (1988) fornecem vários elementos para reforçar a ideia deste texto, onde a figura do cientista social não deve ser extinta durante a escrita, seus conhecimentos políticos devem ser utilizados para debater e contestar essas relações de poder e subalternidade existentes dentro das relações humanas.

 Referências

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.

CALDEIRA, Tereza. P. do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade. In: Novos Estudos CEBRAP, n.21, 1988. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/indice/indice.asp?idEdicao=55#311.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _______ Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 264-298.

SAID, Edward W. Representações do intelectual. Lisboa: Edições Colibri, 2000.

MIGNOLO, Walter. D. A razão pós-ocidental. A crise do ocidentalismo e a emergência do pensamento liminar. In: História Locais/Projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UMFG, 2003.

WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In:______. Metodologia das ciências sociais. Parte I. São Paulo: Cortez, 1992 [1904].

 

Recebido: 11/11/2014
Aceito: 19/12/2014

Notas

[1] Palavra enfatizada pela autora.

[2] Expressão de Foucault em uma sessão aberta no College de France. Em O que é um autor? Página 6.