Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 20 Vol. 2 - 2018 - julho/dezembro



Itália, o Mundo, o Brasil: Uma Jornada

Para uma Ego-História Oral

 

Riccardo Canesi

 

Resumo: Um trabalho de Ego-História Oral onde se seguiu a metodologia da Cápsula narrativa na busca de uma interpretação feita pelo próprio narrador. Resumo da história de uma vida vivida em dois mundos diferentes e os desdobramentos destas experiências.

Palavras-chave: História; História Oral; Ego-História Oral; Vidas Menores; Migrantes.

Abstract: A work of Oral Ego-History where the methodology of the narrative Capsule was followed in the search of an interpretation made by the narrator himself. A compendious of the story of a life lived in two different worlds and the unfolding of these experiences.

Keywords: History; Oral History; Oral Ego-History; Minor Lives; Migrants.

 

Para uma Ego-História Oral

 

            Uma ego-história, ligada a vida acadêmica de um historiador, onde ele desenvolve sua vida e linha de pesquisa, onde o historiador é seu “objeto de estudo”, abre, para a história oral (cápsula narrativa) uma possibilidade onde um “narrador pleno” possa, além de criar sua narrativa, comentar, explicar, desenvolver, rearticular num além da sua cápsula, além da sua matriz narrativa, criando não só uma cápsula simples, mas uma cápsula que traz também seu enfrentamento, sua auto consciência enquanto “narrativa separada” do dizer, do viver do narrador, numa reduplicação da própria cápsula narrativa (caldas: 1999a, 1999b). Os narradores plenos “são hipertextos que exigem estrutura, forma e interpretação próprias que consigam perseguir sua polidimensionalidade” (Caldas, 2013: 93). O narrador pleno é aquele que consegue escapar ao mero contar, ao mero dizer, ao mero falar: mas sim dá à sua vida uma narrativa própria, densa, específica, um link que se articula com o mais vasto, o leito do viver comunitário. Não mais um documento, uma entrevista, mas uma matéria de contato com o presente, com o contexto, um complemento vivo do contexto, agora texto.

            Como a ideia de uma história oral “cápsula narrativa” se funda sobre a prioridade ética e plena da narrativa do narrador (sua temporalidade, sua ordem, sua perspectiva – sem pergunta-resposta, mas um dizer que se faz e se aceita livre em busca da experiência do narrador), uma ego-história oral se propõe a dar mais um passo quando o narrador é quem faz sua primeira leitura/interpretação ao ler, ao ouvir sua narrativa como um todo exteriorizado, ao tornar, num segundo momento, sua interpretação também texto, suas articulações com o “contexto”, a “história” abrindo margem para se tornar um momento histórico plasmado, dito. Ele, além de narrador, se torna seu oralista, seu interprete, seu historiador, sendo o oralista, o historiador, o antropólogo, o sociólogo apenas seu “ajudante”, seu interlocutor, não o que corrige, mas aquele que segue o caminho aberto pelo narrador, podendo, em outra hora, retomar o conjunto constituído para criar uma avaliação, uma análise, uma hermenêutica a parte. Mas é o narrador quem constrói o círculo que depois poderá ser “usado” como núcleo de estudo e pesquisa.

            A ideia de uma ego-história oral nasceu da possibilidade da utilização da história oral em psicologia (Caldas, 1998), possibilitando uma exteriorização escrita do dito pelo “paciente” e enfrentado, cristalizado num texto, sua construção narrativa. Dessa forma o dito não se perderia no som da voz, o desestruturado do dizer, na pura oralidade, mas seria enfrentado enquanto uma textura material, o escrito, o construído pelo dito. Isso dentro da metodologia de cápsula narrativa.

 

Narrativa

 

Meu nome é Riccardo Canesi, sou italiano de nacita, de nascimento e vivo no Brasil faz 25 anos. Hoje tenho 73 anos. E este fato de ter 73 anos é que, na minha visão, me qualifica suficientemente para tentar falar de uma vida que considero bastante plena, não é limitada a um período curto, no sentido geral do que se considera de uma vita, de uma vida, como poderia ser um rapaz de 20 anos que ainda está na fase inicial da sua vida.

A primeira coisa que me veio em mente, quando me foi falada de fazer um trabalho assim, me reporta a um momento na Itália onde eu tinha um amigo, com o qual a gente se encontrava e conversava aquela filosofia de botequim. Eu me considero verborrágico. Eu gosto de falar e ele também. Então a gente tinha dificuldade na nossa conversa, porque muitas vezes a vontade de intervir na fala do outro criava problemas nesse sentido. Aí um dia ele chegou com um pacotinho e disse: “Eu trouxe um presente pra nós” – “Que que é isso?”. Aí ele me deu uma clessidra. Em italiano é assim, aqui a tradução é uma ampulheta.  Então ele falou: “A partir de hoje você inicia e eu fico calado enquanto a areia não cair. Quando cair, é a minha vez e você fica calado”.  Então encontramos essa coisa. Então, este fato de poder falar à vontade sem ter a preocupação de ter que o ouvinte possa interferir na minha fala, me entusiasmou bastante. Porque, eu repito, eu gosto de falar.

Bom, iniciei dizendo que tenho 73 anos, uma vida. E, pensando nisso, me encontrei, já outras vezes, a pensar nisso – que um dos sonhos da humanidade seria encontrar a imortalidade. Só que falando de imortalidade, obviamente me vem, imediatamente, algumas dúvidas do tipo: Imortal pra sempre, obviamente. Isto queria dizer que eu teria que suportar todas as perdas, porque eu sou imortal e os outros não, então muitas neste decorrer enorme e infinito de tempo. Eu perderia companheiras, amigos, filhos... Então, não sei se seria uma coisa positiva. Num primeiro momento você topa: “ah... gostaria de ser imortal!” Mas, depois de um certo tempo, acho que isto poderia ser um fardo extremamente pesado. Estes são meus pensamentos filosóficos. E outra é que: como é que se estabelece o momento no qual você quer parar? Porque você é imortal com 10 anos e não cresce? Fica com 10 anos, criança? Ou você fica com 20, com 30? Ou imortal com 70? Porque eu não gostaria que alguém me desse a imortalidade hoje com 73 anos. Porque a idade já é extremamente limitativa. Então, se pudesse escolher, poderia ter escolhido que a minha imortalidade se fosse quando tinha, sei lá, 30 anos. Que tinha uma maturidade, mas ainda o meu físico era um físico juvenil. Estas são as elucubrações, sabe, que me vêm na cabeça.

Mas, de qualquer forma, sendo que, em um pensamento metafísico, a gente sabe perfeitamente que a imortalidade não existe. Mas, eu faço parte de um grupo restrito, acredito com certeza, de pessoas que tiveram a possibilidade de viver pelo menos duas vidas. Por quê digo isso? Porque eu nasci na Itália, e vivi na Itália até aos 48 anos. E nestes 48 anos, eu tive uma vida plena. Tou dizendo: casei, divorciei, fiquei viúvo, estudei, fiz amigos, tive experiências de qualquer tipo, que depois mais pra frente a gente pode tentar relembrar. E, a partir dali, com 48 anos, eu vim pro Brasil. Aonde encontrei a minha atual esposa, com a qual convivo, sou casado, faz 25 anos. Então, aqui eu fiz de novo casamento, tenho um filho de 16 anos, frequentei universidade, fiz novos amigos completamente.... com ideias completamente diferentes daquelas que foram meus amigos. Porque a cultura Italiana é uma cultura diferente da cultura brasileira. Sem dizer se uma é melhor ou pior da outra. É que o esquema de vida do Brasil é diferente do esquema de vida italiano. Então a vida, as experiências, as coisas que eu vivi aqui, são completamente diferentes. Eu, obviamente, não sou a única pessoa no mundo que tive este tipo de experiência. Mas, não é comum. As pessoas, normalmente, nascem, vivem e morrem dentro de um país. A não ser que possam fazer uma viagem, como eu fiz pelo mundo inteiro, mas depois se voltam ao casulo original, não é? Então pra mim foi.... E vou te dizer mais, 25 anos trás, praticamente não existia a tecnologia atual. Então, os meus contatos com a Itália, eram limitados economicamente, pelo telefone, que custava muito caro fazer uma ligação. A carta, a lettra, era vincunlante ao tempo, porque demorava 20 dias pra ir, uma semana pro cara pensar no que eu tinha falado, mais 20 dias pra me responder.... se eu tivesse feito uma pergunta, quando chegava uma resposta, a pergunta já tinha perdido completamente o valor. Hoje, graças a Deus, tem internet, tem toda essa tecnologia que permite um contato imediato. Mas digo isso por quê? Eu, contrariamente a outros italianos que conheço, que mantiveram um contato com o país indo um ano sim, um ano não pra Itália, ao menos. Eu passei 25 anos sem voltar pra Itália. Fui no ano passado. Voltei depois de 25 anos. Então, eu fiz até me expresso assim, uma viagem no tempo. Porque você imagina uma menina de 6 anos que eu deixei lá, reencontrei como mulher de 31. Os meus amigos que tinham 25, e era um grupo de.... como se diz?.... de.... de boêmios de 25 anos , hoje são pessoas casadas, com filhos. Então foi assim extremamente chocante, eu diria. Uma coisa que me chamou atenção foi aquelas mulheres lindas da minha época, que eu não tive nem coragem de procurar revê-las, porque quando revi uma ou duas pensei: “pucha! Não quero rever como é que ficou aquela lá”, entendeu?  Porque é assim, porque é muito grande a distância de 25 anos, acontecem muitas coisas. Não tou falando nem daqueles que morreram, ou este tipo de coisa. As pessoas normais, entende? O cara que tinha o cabelo fantástico e hoje é careca. O cara que tinha um físico atlético e hoje tem uma barriga de chopp, e coisas assim. Então, mexeu muito comigo este meu retorno à Itália.

Bom, a partir daí eu acho que precisaria contar um pouco o que foi a minha vida lá e aqui. E, nesses dias enquanto me preparava para esta entrevista, tentei analisar o que foi a minha vida. E me dei conta que foi uma vida normal. Porque o que se entende por vida normal? Nós estamos acostumados a ler biografias de pessoas que fizeram atos heroicos, que contribuíram com seus movimentos, pra criar situações que passaram pra história. Óbvio que não é o meu caso. Apesar que eu tenho uma ideia que dentro de cada um de nós tem um pouquinho de herói. O que é um herói? O herói é um cara que se comporta em um determinado momento de uma determinada maneira. Só que isso se deu porque ele estava naquele momento, naquela situação. Então, provavelmente, pessoas normais se se encontrassem na situação que se encontraram os heróis, estas pessoas normais poderiam ter um comportamento até mais heroico do que o cara. Ou vice e versa. Sabe? Quando a gente pensa em personagens tipo o Churchill. O que seria do Churchill se não tivesse nascido naquele momento? Se tivesse nascido 50 anos antes ou 50 anos depois, provavelmente era um funcionário público, aposentado, sem.... Ele viveu naquele momento, vivenciou.... Óbvio, tem uma questão caracterial, tá... Mas.... É.... Sabe aquela palavrinha? O “Se” com o poder condicionante desta palavrinha, pode muito bem mudar a história de qualquer um e de qualquer situação. Não estou falando de uma hipótese do tipo: “Se Hitler tivesse ganho a guerra”. Tá. Não é isso. Tou dizendo: Como é que você reagiu naquele momento? Tá... Você reagiu naquele momento porque a situação na qual você se encontrou estava dentro de um contexto maior. Se você vive numa cidade com 500 moradores, provavelmente a tua reação é diferente da de um cara que vive a mesma situação, mas sendo morador de uma cidade de um milhão de moradores. Então, assim, se você vive determinadas experiências em época de paz ou de guerra, as reações desses indivíduos são completamente diferentes.

Falo isso, e vou iniciar um pouco por aqui a contar a minha história, porque eu nasci em 1943. Plena Segunda Guerra Mundial. Obviamente, de guerra eu não posso dizer nada. Porque eu era extremamente infante. Não poderia falar de guerra, a não ser por sentido dizer. Mas, eu tenho uma noção bastante clara do que foi no meu país o pós-guerra. Isto em todos os sentidos. E faço um primeiro exemplo: armas. Acabou a guerra em 1945, e nos primeiros anos.... 47.... 48.... Não sei nem se foi uma lei promulgada ou se foi um instinto das pessoas quando perceberam que a guerra tinha acabado, o desejo de se livrar de armas que poderiam ter tido um uso de sei lá o que naquele outro momento. Só que esta coisa não era feita de forma oficial. As pessoas não iam no quartel e devolviam as armas. As pessoas largavam na calada da noite, na esquina, largavam bombas, revolveres, fuzis, metralhadoras coisas assim. E, de manhã, passava uma caminhonete e recolhia estas armas. Só que nós, meninos daquela época, sabendo isso, antes que passasse a caminhonete, pegávamos as armas. Perdi, obviamente, alguns amigos. Tinha rapaz que até algum, um pouquinho até maior do que eu, que chegavam a desmontar até armas e bombas pra recuperar metais que, na época, eram considerados valiosos, do tipo cobre, latão, entende? Coisas assim. Então, nesta situação, estes meninos faziam este trabalho de desmanche com um profissionalismo impressionante, prum menino de 10/12 anos. Óbvio que de vez em quando alguma coisa dava errado, e algum voava no ar. Ou, estes meninos.... Meninos é o termo usado, mas são meninos daquela época. Tem um fato que gostaria de contar, porque é bastante significativo. Eu já tinha uns 16/17 anos e estava num bar reunido com os amigos. E a gente tava falando de artes maciais, de judô, de luta, de boxe. E tinha um rapaz que morava no bairro e eu conhecia de vista. E ele era alto, magro só que tinha uma dificuldade de andar no sentido de que andava sempre extremamente rígido. Ele tava tomando um café e escutando por alto a nossa conversa. E ele se intrometeu na nossa conversa e disse: “Olhem. Vocês tão falando de violência, de luta, ao menos.... Queria contar pra vocês a minha experiência de vida. Quando eu tinha mais ou menos a idade de vocês, em plena guerra, eu cruzei com um menino de 10 anos. E percebi que este menino tinha aquele revólver alemão Luger, tem um cano.... um revólver lindo. Então me apaixonei pelo revólver. E, usando o fato de eu ser bem maior que o menino, não tive dúvidas – me apossei do revólver do menino. E dei as costas pra ele e me encaminhei, feliz da vida por ter, através da minha força bruta, ter conseguido este objeto de desejo. Só que aquele menino de 10 anos, não era um menino de 10 anos dos dias atuais. Era um menino daquela época. Então ele revidou simplesmente puxando do bolso uma bomba, tirou a segura, e me jogou a bomba nas costas. E eu estou vivo, mas tou andando com dificuldade ainda hoje por causa dos estilhaços dessa bomba. Então, pensem bem antes de usar da violência contra os outros”. Este é um fato que me parece bastante significativo.

Posso dizer também que vivi, pessoalmente, o momento político, mesmo sem entender o que estava acontecendo. Mas a Itália se encontrou dividida profundamente entre forças de esquerda que recolhiam entre si ex-combatentes, trabalhadores de fábrica, ao menos, que tinham uma ideia um pouco mais à esquerda do que era a realidade do momento. E eu lembro assim que o envolvimento destas pessoas de forma política, se dava, por exemplo, na tentativa de vender o jornal da esquerda italiana da época, que se chamava L’Unitá. E as pessoas iam de porta em porta, voluntários, entende? Pra vender este jornal. Porque a venda maior deste jornal dava um caixa pro partido. Então, tinha este envolvimento, por parte da população que era de esquerda por pertencer a determinadas categorias. Não necessariamente por está extremamente politizado. Assim como entre os meninos a Igreja tentava acolher os meninos dentro das filas do.... não sei.... na Itália se chama boy scout, aqui são.... aquele menino que anda na floresta, que ficam vestidos de.... não sei qual é a terminologia que se usa, depois a gente pode ver [obs.: aqui são chamados de “escoteiros”]. E por contra, o partido comunista tentava fazer uma coisa bem parecida. Não lembro bem como fosse, mas vamos dizer assim: Os meninos de 10/12 anos se dividiam entre aqueles que iam mais pra igreja, ao menos, e frequentavam a turma dos boy scout, e os outros frequentavam a célula do partido comunista que tentava criar jovens comunistas através desta coisa. E sempre desta época, uma coisa que lembro, e que uns Padres Salesianos davam cinema de graça pra população. Só que pra entrar e assistir ao filme, precisava primeiro ir na Igreja e assistir à missa. Saindo da missa, tinha uma porta que sai da igreja e dava comunicação direta com a sala de cinema. Só que tinha um padre que botava um carimbo na mão. Então quem tinha assistido a missa botava a mão, levava o carimbo e podia assistir ao cinema de graça.  Então são essas coisas que hoje podem não fazer sentido, mas que fazem parte das minhas lembranças da minha época, sabe? São lembranças boas, sabe? Me levaram a ser o que eu sou hoje. Porque, acho que faz parte deste nosso trabalho, todo mundo é o resultado da vida que viveu. Ninguém nasce com a cabeça de soldado, de cientista ou.... É a experiência de vida que transforma aquele ser que nasceu, dependendo dos cuidados, da vivência que ele teve, naquele ser mais adulto que tem um pensamento, ao menos. Quando a gente fala, no curso de História, que não existe a possibilidade de ser imparcial, porque por tanto que você tente ser imparcial no julgamento de qualquer situação, você leva a bagagem da tua vida, dos teus ensinamentos recebidos, das tuas experiências. Então você vai julgar, mesmo tentando ser imparcial, dentro do que é a balança do teu sentimento, do que criou, do que plasmou o teu ser até aquele momento que faz a análise. Sem levar em consideração eventuais remunerações do cara que faz a análise. Afinal de contas, a História é sempre contada pelo vencedor. Então, já daí a imparcialidade cai completamente. Mas, mesmo o historiador que se diz, que tenta ser imparcial ao máximo, de qualquer forma não foge a esta regra de ser aquele cara que vivenciou uma experiência. Quem nasceu no Quênia ou quem nasceu em Nova Iorque não pode ter a mesma mentalidade em relação as coisas.

Voltando a falar de herói, eu acho que, nos tempos atuais, heróis são verdadeiramente as pessoas, entre aspas, normais. Porque ser herói é trabalhar trinta anos em uma empresa, ser herói é juntar o almoço com a janta, aguentar as dificuldades que todas as famílias passam. Nem por isso são reconhecidas. Ser pais, ser pai e mãe, eu acho que é tentar passar pros filhos determinados valores nos quais você acredita. E tentar dar um suporte, dentro das tuas possibilidades, pra isso não ir muito além. A escolha da profissão do filho por parte do pai, a interferência na religião, a interferência na escolha da companheira, acho um absurdo. Então, acho que ser herói é conseguir passear entre esses contextos que são verdadeiras armadilhas que se apresentam aos pais. Porque ninguém faz o curso de pai. É como se fosse um acidente de percurso. Independentemente que seja voluntário ou não, esta escolha de ficar pai, eu acho que a maioria das pessoas não estão preparadas pra esta enorme tarefa que é passar pra um filho educação, valores... É completamente complicado. E, vou te dizer mais, eu digo isso porque meu filho é adotado, então, eu adotei meu filho com 58 anos. Então, vamos voltar ao fato de ser uma pessoa que já tinha uma bagagem de vivência nas costas. Coisa que normalmente um rapaz de 22/23 anos que, por acaso, se torne pai ainda é um jovem em formação. Ele ter que passar estes valores, estas que são extremamente complexas. As pessoas não estão preparadas pra isso.

Instintivamente é muito fácil ensinar pro teu filho não roubar, não matar. Isto é aquele básico que é... hoje, alguém que sabe ler e escrever continua sendo praticamente um analfabeto. Ontem, quem sabia ler e escrever era um letrado. Hoje estamos nesta situação. Eu acho muito complexo ter o papel de educador quando você ainda precisa ser educado, quando você ainda não tem maturidade, quando você ainda não passou por determinadas experiências. Eu sempre digo pra meu filho quando ele me pede alguma coisa, eu digo: “Olha, se é pra te dizer ‘sim’, eu não preciso te explicar. Porque o ‘sim’ não se explica. Agora você sabe que quando te digo ‘não’, estou pronto pra defender o meu ‘não’. Eu não te digo ‘não’ porque sou pai patrão. Eu te digo ‘não’ por isso... por isso... por isso. Eu estou preparado. Então eu te permito, quero que você sustente a tua opinião, o teu desejo me fornecendo argumentos. Se você me convence, eu mudo de ideia e te deixo fazer aquela coisa que, inicialmente, te disse ‘não’. Mas você sabe que eu estou pronto pra defender o meu ‘não’”. O “não” tem que ser justificado. O “sim”, não. “Eu posso ir?”, “Pode”. Pronto. “Posso comprar isso?”, “Compra”. Não tem problema. Agora se te digo “não”, eu tenho mil argumentos pra defender esse “não”, porque, antes de dizer “não”, eu fiquei pensando na coisa.

E tem mais: Os nossos heróis são heróis de coisas verdadeiras. Vamos ver o herói do passado: Ulysses. A gente sabe que Ulysses enfrentou os cíclopes – não existe cíclopes. Ulysses enfrentou as sereias – não existe sereias. Então se eu quero me transformar, nesta entrevista, em um herói, é fácil – eu posso inventar. Já que não tenho que provar nada pra ninguém, eu poderia contar da minha vida coisas fantásticas e transformar esta entrevista em um livro que faria um sucesso enorme. Porque, como a gente já disse antes, a História é escrita pelos vencedores. Se eu quero contar uma mentira, porque muitas vezes a História é uma mentira contada por quem venceu, é fácil. Quem nos garante que aquelas pessoas que nós consideramos heróis, que nós consideramos exemplos de retidão, não fizeram algo extremamente vergonhoso? É óbvio que a História não vai passar essas páginas. Só de vez em quando que aparecem algumas coisas de alguém que, por um determinado tempo, foi cultuado como uma pessoa que tinha milhares de qualidades e, ao invés, descobrimos que era um canalha, pra usar este tipo de expressão.

E vou te dizer mais: Eu, por exemplo, vivi, pela época, batendo e apanhando. E entrei em muitas brigas quando eu era garotão, sem problema algum.  Normalmente, mais apanhando que batendo, pelo físico que não é grande coisa. Mas, tenho na minha memória, um momento específico. Porque considero uma vergonha pessoal. Que vou contar aqui, mas, normalmente, não conto. Eu tinha 16/17 anos, estava em uma festa popular na minha cidade. De repente entrei em discussão com um grupo de arruaceiros e eles me empurraram pra dentro de um portão, a entrada de um prédio. Só que um amigo meu, bem mais forte do que eu, viu a cena e interveio em minha defesa. Só que este grupo de arruaceiros, pra chamá-los com este nome, pegaram este meu amigo, um segurando de um lado, outro segurando do outro, um terceiro batendo nele. Eu lembro que fiquei aterrorizado, fiquei petrificado. Ele tinha vindo pra me ajudar e eu não tive coragem de entrar na briga, que fosse apanhando, ao menos pra defendê-lo. Eu achei absurdo o que estava acontecendo e este terror que se apossou de mim eu carrego ainda hoje, entende?, como a minha pior vergonha. Gostaria de apanhar agora, friamente, tudo aquilo que não apanhei naquele dia. Não foi uma escolha, foi um momento, um vacilo, uma fraqueza minha que carrego como uma culpa. Então, acredito que isto pode ter acontecido com muita gente que, em outro momento, pularam pra fora da trincheira, fazendo um ato heroico e passando pra História como pessoas extremamente corajosas. Tudo é relativo, relacionado ao momento, à vivência, à situação. Não existe o cara que é sempre corajoso. Não existe o cara que é sempre covarde. Existem momentos de vida. Esta é a figura do herói como eu vejo. Repito: Pra mim, herói é viver uma vida normal, encarar esta normalidade, de uma forma heroica, vamos dizer assim.

Bom, eu tive esta infância vivida em uma época, como já disse, específica. Porque só quem viveu em territórios que passaram por uma guerra, como foi a Segunda Guerra Mundial, pode ter noções disto. Passou a guerra e eu vivi aquela vida de toda criança normal: fui pra escola, me dava bem na escola até o início do segundo grau, porque naquele momento eu entrei em contato com o universo feminino e os meus interesses escolásticos passaram completamente em segunda, terceira e quarta ordem. Eu sou de família de marinheiros: todos os membros da minha família – meu pai, meus tios, meu avô, meu bisavô todos foram sempre marinheiros. Então, quando decidi largar a escola, queria ser marinheiro. Fiz até um curso específico de motorista naval. Só que, na época, eu era, obviamente, de menor e pra ter a carteira de trabalho de marinheiro precisava da autorização do meu pai. E meu pai se recusou. Pela experiência de vida difícil que é a vida do marinheiro dele, ele disse: “Você vai ser marinheiro quando fizer 21 anos, que você pode escolher. Enquanto depender de mim, você vai fazer o que você quiser, mas marinheiro você não vai ser”.

Resumindo, a partir dali entrei como funcionário público no Correio. Trabalhei 20 anos no Correio. Galguei os postos mais altos que me era permitido dentro da minha qualificação. Desfrutando de uma brecha na legislação, com 39 anos me aposentei. Falo de brecha na legislação porque na época foi chamado de escândalo nacional, ao menos. Pra você ter uma ideia, eu me aposentei dia primeiro de dezembro e dia primeiro de janeiro mudou a legislação pra não permitir que pessoas que estavam na minha condição pudessem se aposentar. Óbvio que com 39 anos eu não parei de trabalhar. Eu só me aposentei do Correio e tentei a vida de outra forma. Mas, sendo que eu tinha passado 20 anos no Correio, eu praticamente não sabia fazer nada das profissões tradicionais. Então, aposentado com 40 anos, eu percebi que não podia trabalhar em lugar nenhum porque não tinha qualificação nenhuma. Então, inventei os meus trabalhos. Pra você ter uma ideia, eu fui o primeiro e único criador de bichos dos quais se faz casaco de pele, na minha região. Fui a primeira agência de casamento. Abri um bar... Botei dentro do bar uma série daquelas máquinas eletrônicas, joguinhos eletrônicos que hoje todo mundo usa em computador, ao menos. Na época, cada joguinho tinha uma máquina e no meu estabelecimento comercial, que tinha um banco-bar no meio, em volta tinha 30/35 destas máquinas. E esta coisa virou point de encontro da juventude. Como precursor na época, botei um telão onde transmitia vídeos, musicais com o Duran Duran e este tipo de coisa. E foi um momento interessante. Isto pra dizer: Sabe? Eu não poderia ser açougueiro, não poderia ser pedreiro, porque não sabia fazer nada. Eu sabia tudo de Correio. Fora do Correio, eu não sabia nada. Então, eu inventei as profissões.

Chegando em torno dos 48 anos, a minha primeira mulher, da qual eu já estava divorciado, mas tinha mantido com ela um ótimo relacionamento, ela pereceu em um acidente de avião. E esta coisa mexeu muito comigo no sentido de perceber o quanto a vida era tênue, o quanto não adiantava fazer projetos de longa distância, porquê de um dia pra outro a vida mudava completamente. Em concomitância com isso, um outro amigo adoeceu de uma doença terminal – câncer. Então, esse tipo de coisa me levou à decisão de querer mudar completamente, dar uma guinada de 180 graus na minha vida e decidi vir pro Brasil. Vim uma primeira vez, e aqui não vou me delongar, senão precisaria de 25 sessões. Vim uma vez, gostei. Voltei pra ficar 6 meses, nesses 6 meses conheci a minha atual esposa, em 4 meses a gente estava casado e, a partir dali, iniciou esta minha segunda vida, esta minha segunda experiência de vida, no Brasil. De acordo com ela, a gente já estava numa idade – eu 48, ela 35 – a gente estava com vontade de ter um filho, mas a gente já tinha passado da idade normal, vamos chamar assim. Então, partimos pra adoção. E foi, acredito hoje, a coisa mais gostosa que eu fiz, porque hoje meu filho representa pra mim tudo o que me mantem interessado em continuar vivendo. Mesmo que não seja pela imortalidade.

Bom... O que é que posso dizer dessa minha vida no Brasil? Foi uma experiência fantástica. Encontrei um país cheio de contradições. Mas com um clima maravilhoso, pra mim que adoro calor. Tanto é que minha esposa é paulista e eu falei: “Eu caso, mas em São Paulo eu não fico, porque São Paulo parece estar na Itália”. Então, eu quero viver no Nordeste. Então casamos e viemos morar em Maceió. Em Maceió fiquei olhando à minha volta o que estava acontecendo. Tive algumas experiências... Sendo que o último trabalho que tinha feito na Itália era relacionado à arte, trabalhando como homem de confiança de um proprietário de uma galeria d’arte. Me interessei por um escultor de pedra. Tentei lançá-lo no mercado. Seria muito complexo aqui contar a coisa, mas esta coisa não funcionou como eu imaginava. Abri, em sociedade com um brasileiro, uma escola de capoeira. Que, no final de semana, funcionava como boate. Tivemos ali também algumas problemáticas com barulho, polícia, permissão e coisa assim e acabei fechando esta boate. E me transferi pro Pontal da Barra. O Pontal da Barra, pra quem não conhece, é um bairro que vive praticamente de pesca, por parte dos homens, e de artesanato por parte das mulheres. Depois de alguns anos que eu vivi aqui, fui picado por essa paixão pelo artesanato, ao menos, e abri uma primeira loja de artesanato. E, contrariamente às lojas que existem faz 100 anos, ao menos, eu trouxe alguns conceitos práticos de comércio. Tipo: Fornecer, aos meus funcionários, dinheiro trocado pra poder dar o troco quando alguém comprava uma peça que custava 30 e o cara queria pagar com 50. Muitas lojas aqui hoje ainda perdem a venda por que não têm... início de jornada, início do dia... porque não têm o troco pra dar. Coloquei as minhas funcionárias de farda pra que pudesse ser reconhecidas entre a turma que entrava dentro da loja. Coloquei sacolas personalizadas pra serem vistas nas mãos dos turistas que andavam pela rua. Coloquei etiqueta com um preço, porque percebi que o preço da mercadoria variava da interpretação do vendedor: “Este cara tem cara de estrangeiro, então custa 100. Este cara tem cara de alagoano, então custa 50”. Então eu falei: Eu não quero nada disto. Então eu coloquei etiqueta... uma série de pequenas coisas, nada que fosse excepcional, que mostrava o meu tino pra negócio. Só que pra mim eram coisas básicas, elementares. Mas que, ainda hoje, as pessoas têm dificuldade em aceitar este tipo de coisa. Bom... isto pra dizer que iniciei com uma loja e em pouco tempo, no arco de 4/5 anos, abria a segunda, a terceira, a quarta, a quinta loja. Um sucesso estrondoso. 30 funcionários. Aí, início de temporada, com lojas abarrotadas de mercadoria, com o pessoal treinado: foi interditada a Ponte Divaldo Suruagy. Agora, qualquer turista que vem pra Maceió, ouviu falar, quer conhecer a Praia do Francês. E a prática aqui é a seguinte: as agências de turismo recolhem com o ônibus os turistas nos vários hotéis, passam pela Ponte Divaldo Suruagy, vão no Francês, quando dá 3h30 da tarde voltam do Francês e param no Pontal da Barra pros turistas descer e fazer compras. Naquele momento, início de temporada, a ponte ficou interditada, eu teria que ter tido a coragem, a visão, chama como você quiser, comercial de fechar as lojas, dispensar funcionários e esperar que a situação passasse. Ao invés disto, eu tentei manter as lojas abertas, porque considerava que os meus funcionários eram pais e mães de família sustento arrimo da família. Então me enrolei com a administração e fui à falência, vamos dizer desta forma. E acabou por ali a minha intervenção no mercado artesanal do Pontal.

Então, a princípio, claro que de forma extremamente resumida, esta é a história da minha vida até hoje. Podemos, obviamente, através de flashes, lembrar de episódios que marcaram seja a minha vida na Itália, seja a minha vida no Brasil. Depende se a gente quer partir pra um viés mais humorístico, pra um viés mais trágico, entende? Obvio, minha vida, como já disse, não tem fatos heroicos, entende? Não tem coisa extremamente diferente da vida de uma pessoa normal. Eu sou uma pessoa normal, uma pessoa comum.

Como galho da mesma árvore. Eu vou contar agora algumas coisas que lembro das minhas viagens. Sempre gostei muito de viajar, de conhecer culturas diferentes. Sempre fui atraído mais pela natureza do que pela tecnologia. Portanto, nunca fui atraído por uma viagem aos Estados Unidos. Por contra, fui cinco vezes na África do Norte e três vezes no Quênia. Que representava, pra mim, apesar de ser bastante perto da Itália – perto, vamos dizer, em termos de voo de avião – representava, efetivamente, uma diferença em respeito ao meu modo de vida. Porque eu viajei por toda a Itália, viajei e conheço praticamente toda a Europa. Mas, com poucas diferenças, se você tá na Itália ou tá na Espanha, na França ou na Alemanha, respeitando algumas características típicas do país, as coisas são bem parecidas. Agora, quando você vai pra África, estou falando de Tunísia, Argélia, Marrocos, você chega em outro mundo mesmo. Não estou falando tanto do clima... claro, um clima de verão, cheio, com muito calor, tudo mais... mas a maioria das pessoas já não anda de calça e camiseta, usa aquelas vestimentas que a gente vê nos filmes, entendeu? As mulheres com o véu, bichos, camelos... o meio de transporte não é um cavalo, o meio de transporte normal é um camelo. E, na Europa, você não vê camelos e esse tipo de coisa. Cheio de palmeiras, que não são palmeiras de cocos, são palmeiras de tâmaras. Então, efetivamente, é uma cultura diferente, religião, basicamente, mulçumana.

Alguns acontecimentos que acho bastante interessantes foi, por exemplo, no momento em que me aventurei por um pedaço... porque, claramente, não atravessei o deserto do Saara, fiz um percurso de uma centena de quilômetros na borda do deserto. Mas, já encarei temperaturas elevadas, falta de encontro com pessoas... não tem, como aqui, que em cada 10 quilômetros tem um povoado. Lá você anda por 50 quilômetros e não encontra alma viva, você é o único carro que passa na pista. Então, de repente, depois de uma hora de viagem, com aquele calor sufocante, encontrei um povoado – e, quando digo povoado, entendo por povoado mesmo porque não passava de uma dúzia de casas, seis do lado direito, seis do lado esquerdo da pista e pronto. Parando neste povoado, encontrei um chafariz. Só que o chafariz estava fechado com um cadeado. Ai uma turma de meninos cercou imediatamente o meu carro, me comunicando em francês, que eu estudei na escola, e lá é a segunda língua oficial, além do árabe, e pedi pra que me fosse indicado, pra que me fosse chamado o dono do chafariz, aquele que tinha a chave deste cadeado. Os meninos foram, chamaram uma mulher, que veio e, extremamente gentil, abriu o cadeado, encheu um jarro de água e me deu pra beber e matar minhas sede – coisa q eu fiz. Só que o jarro da mulher continha um litro e meio de água, e depois de ter tomado meio litro, tava satisfeito. O meu primeiro instinto era de jogar a água que tinha sobrado, porque, obviamente, eu tinha bebido colocando os meus lábios no jarro... então minha mentalidade europeia não era de: “Ah! Isto você leva pra casa”. “Bebi, isto é água, tá sobrando, jogo fora”. Mas, graças a Deus, que me veio um espírito de consciência que me fez entender, ou perceber, avaliar, quanto esta água, naquele lugar, era importante. Então, o quanto seria ruim, o quanto seria desprestigiante este meu gesto de jogar fora a água. E isto até pensando em um futuro viajante que parasse e pedisse água, como eu fiz, se a mulher lembrasse do quanto eu fui desrespeitoso poderia até negar essa água pra um próximo viajante. Então, eu engoli o restante da água com muito esforço, mas consegui acabar com a água da jarra, agradeci e sai desse lugar achando que tinha feito a coisa certa.

Outra coisa que acho interessante: no Quênia, na primeira vez, eu fui fazer um “safari” – safari fotográfico, porque não passaria pela minha cabeça de matar bicho. Mas eu fiz o safari com tudo que tem dentro dos padrões. Acompanhado com um guia, com uma máquina... com um carro próprio pra isso, com tração nas quatro rodas, com um guia que conhecia perfeitamente a região. Só que você tem que entender o que é safari num parque na África. Quando a gente pensa, aqui, num parque, a gente pensa numa coisa extremamente limitada: um território cercado, ao menos, que tenha mil metros por mil. Na África, um parque, por exemplo, do que eu estou falando é o Parque do Tsavo, assim chamado, é tão grande quanto Alagoas. Então você entra no parque e é uma coisa maluca. E não tem só uma entrada: tem 10 entradas e 10 saídas. Então, você entra, de manhã, por um lugar, dirige o dia todo no meio deste parque, passa a noite num hotel que existe dentro do parque e, no dia depois, você sai por uma outra saída. Eu não sei, pelos padrões africanos, eu acredito, quase com certeza, que não é gravada a entrada deste carro no dia tal e a hora tal, com previsão de saída... nada disso. Você entrou? Entrou. Vai sair quando você quiser.

Digo isto por quê? Em uma outra oportunidade, um ano ou dois depois, eu voltei pro Quênia e quis, me sentindo já superesperto, quis fazer de novo esta experiência, sem ter que pagar tudo o que era o correto pagar. Então, sendo que, na realidade, as estradas dentro do parque são estradas, não é asfalto, mas estradas normais, de terra batida, estamos falando da época que não tem chuva, ao menos, então você pode ir com um carro normal, não precisa ser um carro com tração nas quatro rodas. Então eu me aventurei, sem guia, sem nada e fui. Achando que tava poupando um dinheirão. Me embrenhei, fui rodando do jeito que... pensei: “Ah! Vou até encontrar uma saída”. Só que num determinado momento, a pista iniciou... tinha um declive muito íngreme. E eu falei: “Tudo bem. Tenho este carro, um carro normal, um carro de passeio”. Sem problema nenhum, eu fui. Só que este declive, extremamente íngreme, quando chegou no fim, ao invés de dar pra um determinado lugar, fazia uma volta e a saída era pela mesma descida. Só que descer, qualquer carro desce; subir, o meu carro, que era um carro de passeio, iniciou as rodas a patinar. Bom... eu consegui, com a ajuda de Deus, usando toda a minha habilidade de motorista, sair desta situação. Mas, estou contando pra você que foi uma experiência extremamente assustadora. Porque se o carro tivesse ficado naquele lugar, provavelmente passaria um mês antes que alguém passasse por ali e percebesse que eu tinha passado. Se você sai do carro, você encontra serpente, encontra leão, encontra tudo. Porque o leão da África não é alguém que come porque chega alguém que dá a comidinha pra ele. O leão da África come porque mata a zebra, mata o gnu, então é assim mesmo: a lei da África é uma lei completamente diferente do nosso conceito. A vida e a morte, na África, têm valores completamente diferentes dos nossos. Então, independentemente de qualquer outra situação, eu teria ficado à mercê de bichos, sem alimentos, sem água, sem nada. Então, provavelmente eu não estaria aqui pra contar esta história. Esta é a minha dica pra quem vai.

Contando coisas mais corriqueiras, quando fui pra Londres eu percebi que os ingleses têm um sentido de liberdade individual que não encontrei em nenhum outro povo. Eu acredito que se Hitler, antes de tentar invadir a Inglaterra, tivesse passado um período de férias na Inglaterra, ele teria percebido que os ingleses iriam morrer todos, mas não iriam se render, não iam se sujeitar a serem feitos prisioneiros. O senso de liberdade, de direito individual dos ingleses é fora do comum. Me chamou a atenção em mil oportunidades, mas numa coisa específica: na época, na Itália, coincidiu com a primeira grande crise de petróleo mundial. Então, na Europa toda, tinha uma tendência a poupar energia. Então os edifícios públicos ficavam com as luzes apagas e a população aceitava, bem ou mal, porque era legislação, dizia: “A partir de hoje as luzes deste lugar serão apagadas”. Em uma rua importantíssima de Londres me chamou a atenção o fato de encontrar as vitrines das lojas todas apagadas, com cartaz na vitrine que pedia desculpa pra clientela pelo fato de não ser agradável de ver, mas que isto fazia parte de um esforço feito pelo governo. Só que em contraste com a maioria das lojas que aceitavam o conselho, vamos dizer assim, do governo, tinha um cara... digo não um... a cada 20 lojas fechadas, tinha uma que achava que não era por aí e continuava com a luz completamente iluminada, entendeu? E todo mundo aceitava essa coisa, porque o respeito da opinião alheia, entendeu?, é muito forte. Nós ficamos chocados, eu tou falando de 40 anos atrás, ao menos, de ver pessoas se beijando na rua, que fossem do mesmo sexo ou vice e versa, e inglês não liga a mínima, entendeu? A liberdade individual e o respeito pela opinião, pela liberdade do outro, pro povo inglês é extremamente chocante porque pra quem vem de um país Itália, católico, tradicional, conservador, entendeu? Essas coisas me chamaram muita atenção.

Na Iugoslávia me chamou atenção um grupo de trabalhadores detentos que estavam trabalhando na construção... na reconstrução de uma estrada. E eu, que sou curioso como um macaco, conversei com o guarda e disse: “O que é que estão fazendo? ”. E ele me contou que eram detentos, condenados a trabalhos forçados. E eu falei: “Mas tem muitos?”. E ele falou: “Não. O problema é que aqui temos muitas estradas pra fazer e temos poucos presos”. Na cabeça dele, se tivesse mais delinquentes seria bom porque conseguiriam fazer mais estradas.

De novo no Quênia, eu estava hospedado num hotel, podemos dizer, de luxo. Tanto é que no mesmo hotel estava hospedado o presidente do Quênia, na época, que era o Jomo Kenyatta. E me chamou a atenção que do lado do hotel uma plantação de girassóis, pra extrair o óleo, e quem trabalhava nesta plantação era um homem com um macacão marrom com um “P” pintado nas costas. E, de novo, eu vou perguntar pros guardas, ao menos, e ele me explicou que efetivamente estes eram presos. Eu achei muito esquisito, porque do lado do hotel, hotel de luxo, com o presidente hospedado, tem o detento ali trabalhando. Aí ele me explicou que, obviamente, estes eram presos de baixa periculosidade, eles tinham cometidos crimes não considerados extremamente graves. Ele frisou também o fato que se eles se comportassem bem, eles iam cumprir a pena trabalhando desta forma, agora se ele tentasse fuga ou coisa diferente eles pagariam a pena em condições bem menos humanas, vamos dizer assim.

São flashs que me vêm, entende? A Iugoslávia é um exemplo clássico, sabe? Porque... Eu estou falando de momentos, então eu fui na Iugoslávia quando o presidente era Tito, que foi aquele que conseguiu unificar todas as várias tribos, todas as várias etnias e criar esta Iugoslávia unificada. E, pra mim, foi uma experiência muito interessante, não tive problema nenhum. Sofri, assim, quando vi na televisão os massacres que aconteceram depois, quando uma etnia se revoltou contra outra. Então passei por momentos diferentes em diferentes momentos. Na Tunísia, Bourguiba, que é considerado o pai da pátria. No Quênia, os rapazes com os quais me relacionava, diziam que eles se livraram do julgo dos ingleses, e conseguiram a independência, mas o comércio tinha ficado praticamente todo na mão de indianos, que tinham vindo atrás das tropas inglesas, ao menos. E o africaninho ali que estava conversando comigo dizia: “Bom... num determinado momento a gente se livrou dos ingleses, um dia ou outro vamos nos livrar, também, dos indianos”.

Foram experiências prazerosas e diferentes. Por isto estou dizendo: “Isto sou eu”. Porque quando eu fazia este tipo de experiência, as pessoas frequentavam aqueles lugares típicos da Itália, não saiam daquele mundinho.

Deslizando pra outro galho da mesma árvore, poderia falar um pouco da minha experiência com jogo de azar. Estou falando legal, dentro de casa de jogos, cassinos. Esta é uma coisa extremamente interessante, ao meu ver, neste sentido: quem não tem experiência deste tipo de situação acha que os cassinos são falsificados, que é impossível ganhar... E não é nada disto. Eu repito: estou falando de cassinos legais. Aonde tem controles rigidíssimos, e aonde o cassino sabe que ele sempre ganha no sentido que por um que ganha, tem cem que perde. Então, ele sempre sai ganhando. Mas você, com todas as possibilidades do mundo, pode ser o cara que ganha. E isto você só percebe na primeira vez que vai no cassino e ganha. Porque todas as pessoas que conheço que foram num cassino e perderam, nunca mais voltaram a jogar. Aquele que, como eu, tiveram a sorte, ou azar, de ganhar, na primeira vez que entraram, perceberam que era possível ganhar. Era possível o inacreditável de acertar aquela cor, ou, mais complicado ainda, aquele número, ao menos, e ganhar um dinheiro bom. Eu tenho frequentado todos os cassinos do mundo europeu, vamos dizer assim.

A grande verdade é que pra uma pessoa rica, o cassino é perigoso. Porque você pode, dentro de um cassino, se transformar de um rico num pobre. Agora se você já é pobre, você só pode ganhar. Porque o máximo que você pode perder, são aqueles duzentos/trezentos reais, vamos dizer assim, que você tá no bolso. Você não tem condição de ir num cassino e perder dez mil, cinquenta mil. Você não tem cinquenta mil pra perder, entendeu?

Tudo bem, me aconteceu coisas assim: eu, por exemplo, com a minha primeira esposa, fomos no cassino com a intenção de jogar, vamos dizer, quinhentos reais e, por acaso, a gente estava no bolso com mil reais, cuja finalidade era fazer a instalação do implante de calefação, porque o inverno italiano é rígido. Então queria fazer a calefação dentro de casa. Só que entramos na onda e perdemos os quinhentos que a gente tinha programado perder, e mais os mil do implante de calefação. E nós passamos o inverno agarrados um no outro pra nos esquentar na época de frio.

Ou, posso dizer, na Grécia fomos com dois casais de amigos, obviamente, ida e volta paga, hospedagem tudo pago, desde a saída da Itália, e a gente tinha um X pra passar estes quinze dias. Na primeira noite, fomos no cassino de Atenas e a gente tinha reservado jantar com direito a espetáculo dentro do cassino. Nós chegamos com meia hora de antecedência do horário que tinha marcado o jantar e o espetáculo. E, obviamente, o que eu faço nesta meia hora que espero? Entrei no cassino e comecei a ganhar. Qualquer coisa que eu apostasse, dava certo. Então, com muito esforço, com muita fadiga, meus amigos me convenceram a largar a mesa de jogo e ir fazer o jantar com eles, assistir ao espetáculo. Mas minha cabeça queria só voltar. Eu fui, assisti sem curtir nada do espetáculo, sem curtir nada do jantar, voltei. Quando voltei, a minha maré de sorte tinha virado, e eu perdi tudo que tinha ganho, tudo que tinha programado, mais todo o dinheiro que eu tinha programado pra passar quinze dias de férias. Eu fiquei liso completamente. Só sobrevivi nestes quinze dias porque os dois amigos se cotizaram, e cada um renunciou uma parte do dinheiro que eles tinham pra gastar e me emprestaram este dinheiro pra sobreviver.

Posso contar que, no cassino de Túnis, eu estava hospedado em um hotel, peguei um táxi, e fui no cassino. Quando cheguei, eu estava vestido com um terno de linho branco, e minha esposa com um hábito de gala comprido, e fomos recepcionados no jardim que dá acesso ao cassino, por um mâitre, que foi extremamente gentil, extremamente cordial, me convidou pra sentar em uma mesa, ali neste jardim. E continuava chegando pessoas, todas elegantemente vestidas, e sentavam nas várias mesas, e passavam os garçons, serviam canapé, serviam drinks, ao menos, e eu que já tinha uma experiência de cassinos, falei: “Puts! Nunca vi um cassino que trata tão bem seus hóspedes, seus jogadores!” Imaginando que abrissem a sala de jogos um pouquinho mais tarde, que esta fosse a recepção. Bom, resumindo, depois de uma hora, depois de ter tomado drinks e canapé, descobri que o que estava acontecendo era um casamento dum casal que tinha alugado este espaço do cassino, a parte externa, pra fazer a recepção do casamento. E o mâitre, quando me viu chegar elegantemente vestido, achou que eu fosse um dos convidados. Como eu não sabia de nada, sentei lá e bebi à vontade. Então foi uma experiência... Assim, assisti ao casamento, foi muito lindo, sabe? Uma experiência que, vamos dizer, tem a ver com cassino neste sentido.

Outra coisa que acho que pode ser digna de nota, foi no cassino de Monte Carlo, com um casal de amigos, fomos jogar em uma noite de azar. A gente não tava conseguindo nada, perdemos tudo o que a gente tinha programado perder. Só que a gente estava com muita vontade de continuar jogando. Só que, como disse, a gente não tinha mais dinheiro. Só que, embaixo do cassino de Monte Carlo, o antigo, o tradicional, não é o novo, aquele que tem roletas americanas. Aquele tradicional, embaixo, tem uma casa de penhora. Então nós, como jogadores que somos, inveterados, recolhemos relógios, alianças, correntinhas, ao menos, que a gente tinha e pegamos um dinheiro. “Daqui a uma semana, daqui a um mês a gente volta e resgata o nosso ouro, nossos bens”. E conseguimos este dinheiro, voltamos pra dentro do cassino. E iniciamos a jogar e o azar perdurou. Perdemos, de novo, praticamente tudo o que a gente tinha conseguido. Em um determinado momento, o meu amigo, cansado de perder, veio do meu lado e me disse: “E ai, como é que estão andando as coisas?” E eu disse: “Eu estou perdendo tudo”. E ele disse: “E eu também. Deixa pra lá! Vamos tomar um whisky lá no bar!” Aí eu me afastei e nem me toquei, naquele momento, que tinha feito uma aposta. Aí eu fui, tomei um whisky, conversei, passaram uns cinco/dez minutos, um tempo assim, quando voltei vi que o chefe me fazia sinais desesperados e eu fui lá e vi que a minha aposta tinha ganho. E, se você não retira a aposta, ela continua valendo pra próxima aposta. E eu fiquei dez minutos lá e, por dez minutos, esta aposta continuou ganhando. E eu cheguei lá e tinha um montão de dinheiro lá em cima, com o qual recuperamos tudo o que a gente tinha perdido e foi uma festa fantástica, graças a Deus. Não sei se foi uma festa porque voltei a tempo, ou se era melhor eu ter ficado mais dez minutos. Eu sei que, na hora, retirei esta bolada e ficou gravado na memória como um acontecimento específico. Teria muitas outras pra contar, mas daí falaríamos só de cassinos.

Eu não tenho amigos comum entre a primeira vida e a segunda vida. Os amigos da Itália são relegados aos 48 anos que eu vivi lá. E os amigos brasileiros são os amigos que eu fiz nestes 25 anos que vivo aqui. As minhas experiências gerais de vida que eu passei na Itália, não tem quase, praticamente, nenhuma afinidade com o que eu vivi nesta segunda desta vida única aqui, não é? Porque se faz a junção. Então, por exemplo, já falamos de viagem, já falamos de experiências pessoais, assim. Mas, uma característica que determina a vida de um indivíduo é o trabalho. E nesta situação posso te dizer assim: Eu iniciei a trabalhar quando decidi, porque foi uma decisão, parar de estudar. Aqui abro um pequeno parêntese: Eu sou filho de marinheiro, neto de marinheiro, sobrinho de marinheiros, a minha família toda, meus primos todos foram marinheiros. Se perde nas gerações passadas essa ligação, essa paixão pelo mar. Só que, segundo a visão do meu pai, essa era uma visão romântica da vida. Ele que viveu a vida toda como marinheiro, ele sabia, por experiência própria, que passada aquela visão romântica de juventude, o fato de ser marinheiro queria dizer viver longe de família, longe de mulher, longe de filhos, longe de afetos. Particularmente, estamos falando do que era a Marinha e o trabalho de marinheiro trinta anos atrás. Faço um exemplo, hoje os trajetos são mais rápidos, mas, de qualquer forma, ainda hoje, precisam entre Europa e Estados Unidos ou América em geral é uma navegação de 20/25 dias. Você chegando no destino, não vai conhecer o país. Você no máximo de 24 horas descarrega o navio, carrega o navio e você volta. Então você passa 50 dias, entende?, em navegação circunscrita em um ambiente limitadíssimo. Longe de qualquer situação. Em caso de emergência você não pode pegar um avião e volver. Nada. Você tá lá e são 25 dias, porque normalmente é travessia direta. Vamos dizer assim: Meu pai era contrário à ideia que eu fosse marinheiro. Só que esta era a visão dele. Então eu tinha feito 2 anos de segundo grau, não é?, e sem o conhecimento da minha mãe, retirei o dinheiro da inscrição do ano escolar do segundo grau, e usei este dinheiro pra fazer a inscrição na escola de marinheiros na cidade de Génova. Fiz um curso de motorista naval, que durou 6 meses. Quando minha mãe descobriu, já tinha iniciado o período escolar, então não podia fazer nada e pra não me deixar no meio da rua me deixou fazer este curso e me disse: “Quando o seu pai vem”, porque tava fazendo uma viagem mais longa, “você se entende com ele”. Dito e feito. Eu fiz o curso, passei. Mas, meu pai, quando voltou, segundo a legislação vigente da época, meu pai me disse: “Enquanto você viver comigo, você só vai narregar quando você completar 21 anos. Até lá, você vai fazer qualquer coisa, menos navegar”. E aí acabou o meu sonho e a minha experiência como marinheiro. E, hoje, acho, com a maturidade, que o meu pai tava mais do que certo.

Bom, a partir dali eu decidi que não queria mais estudar. Se não podia fazer o que eu queria fazer, vou trabalhar de qualquer coisa. Saí de casa, na época era, afortunadamente, melhor do que é hoje e eu saí de casa, fiz 1 quilômetro de caminho e encontrei uma agência... vamos dizer uma espécie de correio. Era um correio particular. Porque o Correio Nacional se entra através de concurso ou coisa assim. Bom, na época tinha esse correio particular. Entrei, fui contratado, e trabalhei, agora não me lembro mais, uns 2 anos, me parece, neste correio particular. A partir dali a visão relacionada ao correio ficou mais clara e consegui entrar no Correio Nacional, aonde trabalhei por 19 anos, seis meses e um dia. Por que? Porque, desde o primeiro dia, eu percebi que a situação não era exatamente muito excitante. Não tou falando de carteiro, tou falando de correio de um modo geral. Eu trabalhei no setor interno, em todos os setores internos do Correio. Mas, em brevíssimo tempo, percebi que não era uma coisa que ia me dar muito prazer, muita satisfação. Mas era uma garantia, porque, de qualquer forma, trabalho pelo governo, é um trabalho seguro, você recebe, não tem crise, não tem nada. E eu perguntei e me falaram: “Como funcionário público, você tem direito a aposentadoria imediatamente”. Não como se faz na indústria particular que você, mesmo com direito à aposentadoria, você vai receber a aposentadoria quando você completar seu sexagésimo ano de idade. No funcionalismo público, se você, o mínimo, na época, era 19 anos, 6 meses e um dia, e um dia depois você inicia a receber a aposentadoria. Então eu entrei no Correio com 20 anos, com 39 anos eu me aposentei. Foi o melhor negócio que eu fiz na vida. Porque tenho 73 e trabalhei 19 anos, 6 meses e um dia e já são 30 anos que recebo a aposentadoria.

Quando me aposentei, acho que já conversamos sobre isto, a problemática é que quem trabalho no Correio, quando sai do Correio, não tem uma profissão específica. Então, a alternativa era inventar uma profissão pra mim. Porque, saindo do Correio, vou fazer o que? Porque não tenho físico pra ser pedreiro, não tenho habilidade manual pra fazer qualquer coisa, não aprendi a fazer nada que não fosse inerente ao Correio. E também era jovem demais, com 39 anos, pra pensar em viver de aposentadoria, independentemente do valor da aposentadoria. Então iniciei a inventar. E quando digo inventar, já tinha começado a inventar. Porque, em contemporâneo com o serviço no Correio, eu criei uma criação de bichos para a confecção de casacos de pele. Na época, não tinha ainda esta persecução aos trabalhadores do setor, né? Não tinha esta consciência ecológica, ao menos, então ninguém mexeu comigo neste sentido. E foi uma experiência extremamente interessante. Porque a criação, em si, pressupõe diversos momentos, diversos setores. Tou falando assim – você é criador, então tem que entender um pouquinho, estudar um pouquinho de genética. Porque você tem que saber que se você cria acasala irmão com irmão, mãe com filho, pode ter este tipo de problema. Então, a consanguinidade tem que ser evitada. Ao mesmo tempo, você vê as características físicas do animal: Aquele que é maior, aquele que a fêmea te der mais número de filhotes. Então você tem que fazer todo um estudo específico. Além disto, você tem que estudar alimentação: o vison é um carnívoro, então você que tem providenciar alimentação pra ele; só que a alimentação tem que ser uma alimentação que você tem que manter dentro de um custo, então você tem que procurar peixe barato, carne barata, vamos dizer, o resto do frango, as cabeças, as pernas, entendeu?; você compra peixe no momento de maior oferta no mercado, aquele peixe que já perdeu a beleza pra ser apresentado, por um motivo qualquer, então você compra; óbvio que tudo isso pressupõe um trabalho de preparação, de trituração, de congelamento pra poder manter este alimento por 1 semana, 15 dias, vamos dizer, você compra hoje e vai precisar... Então, tem todo um discurso. Com a expansão do negócio, você precisa fazer ninhos de madeira, gaiolas de redes metálicas, e essas gaiolas e esses ninhos não existem prontos no mercado. Então você tem que aprender a fazer, entendeu?, a copiar de um outro criador. Você tira a foto, tira a medida, depois vai lá e quebra a cabeça: você faz um ninho e diz: “É esse! Então vou fazer 50 destes”. Compra a madeira, corta, cerra, prega e faz. Idem com a gaiola. Então é toda uma série de coisas. Além disto, depois tem a parte final que é matar. Não vamos esquecer disto. Estes animais têm que ser matados e tirar a pele deles. A carcaça não é comestível, então a carcaça serve como adubo pra o cultivo de outras coisas, vamos dizer, de árvores... não tanto de alfaces e coisas assim. Mas como adubo pra árvore e a pele você leva em indústrias especializadas e fazem... não sei como se diz em português. Em italiano é concia. Não sei, depois vamos procurar como é. Faz esta coisa. E eles te devolvem, devolvem pra você as peles prontas e separadas em quantias necessárias pra confecção de um casaco de pele. Normalmente, pra confecção de um casaco feito com machos são necessárias 30 peles. Pra um casaco confeccionado com pele de fêmea, que é menor, é necessário 40/45 peles. E, apesar de estarmos falando de animais da mesma coloração, eles têm pequenos nuances, pequenas diferenças. Então a mesma indústria que faz a curtume, tem funcionários especializados que juntam essas nuances. Porque existem várias colorações. Quando digo vison, aqui vocês não conhecem, pode procurar no dicionário ou no Google, a palavra em inglês é “mink” e você pode ter esta coisa. E estou falando, existe vison branco, preto, marrom, cinza, entendeu?, são vários tipos. Só que dentro do cinza, dentro do marrom, ao menos, tem colorações diferentes e você não pode fazer um casaco de cores diferentes. Então tem que ser 30 marrons da mesma tonalidade de marrom, sabe? E, depois disto, você tem que vender pra lojas de costura de peles. É um trabalho que vai de uma coisa pra outra.

Falei da situação de mata-los. Pode ser interpretado de várias formas. Mas, pra entender o que eu vou dizer, tem que pensar nisto: o vison não é um animal domesticável. Então, se você cria galinhas, se você cria coelhos, e você é uma pessoa sensível, você chega a um momento que não tem coragem de matar a galinha que você pegou como pintinho, faz carinho nela... O vison, quando você chega perto, ele morde – sempre! E a mordida dele é extremamente dura, extremamente dolorosa. Na natureza, é um predador selvagem, mata pelo prazer de matar, não só pra se alimentar, mas pelo prazer puro de matar. Tanto é que se ele entra em um galinheiro, contrariamente a uma raposa que mata 4/5 galinhas, porque, ao invés dela encher o bucho, ela chupa o sangue, que é a coisa mais nutriente, o vison não: Ele mata! Ele entra no galinheiro e tem 200 galinhas, ele mata as 200 galinhas, independentemente de depois ele comer alguma coisa. Mas a satisfação maior dele é a matança. O acasalamento é feito por estupro: O macho, usando o fato de ser de tamanho bem maior do que a fêmea... Óbvio que você sabe quem mais coisa. A fêmea consegue fazer o acasalamento porque ela está no cio. E você descobres este cio a partir do momento que a mãe dela entrou no cio. Complicado de saber. Mas vamos dizer assim: o cio dura 5 dias. Bom, as fêmeas cuja as mães entraram no cio no dia 4 de março, ficaram, então, no cio, de 4 a 9, as filhas delas entrarão no cio de 4 a 9. Então, se você bota a fêmea pra ser acasalada no dia 2 ou no dia 12, não tem conversa, então o macho acaba matando a fêmea. Então você tem que ter registrado com cartãozinho e toda esta coisa, saber que aquela fêmea, a mãe dela, foi acasalada no dia 4, no dia 5, no dia 6, então nestes dias, as filhas delas, você vai botar pro macho tentar cobri-las. Você vai aprender qual é o momento de você intervir. Se você ver que o acasalamento não está dando certo, que o macho está sendo violento demais, você tem que intervir, porque, senão, mata. É um discurso complexo. Mas, isto eu tou dizendo porque, contrariamente, como dizia antes, a outros tipos de criações, você pega amor ao conjunto da obra. Você se apaixona pelo fato de ser um criador deste tipo de bicho. Mas você não cria vínculos com nenhum destes bichos. Se você criou um vínculo, é contrário, é de ódio. Porque quando ele consegue te morder, você diz: “Vou te pegar! Você vai ser o primeiro a morrer!”. Porque ele te morde desde que é... Quando nasce ele tem uns 5/6 centímetros e quando tem 15/20 centímetros ele já te morde. E pra você entender o que a mordida de um vison imagine isso: A gente manuseia ele com pele de alce americano, que é um couro grosso. Mesmo assim, este couro serve a evitar que o dente, que é fino, mais ou menos, como o dente de um gatinho, então, quando ele dá uma mordida, a grossura, a espessura da luva evita q ele atinja o teu dedo. Mas, a força da mordida, é a mesma coisa. Você pode imaginar: Botando a mão dentro de uma luva, e depois dando uma martelada em um dedo. Pra você ter uma noção, eu brincava dando um lápis, botava na boca e ele, com uma mordida, quebrava o lápis em 2. Isto pra entender a força mandibular. Então, feita esta justificativa moral, eu aprendi com outros criadores de outras regiões, que o melhor método de matança pra esses bichos, pra esses animais pra poder tirar a pele era através de câmara a gás. Quando digo câmara a gás entendo uma caixa de madeira, de mais ou menos 1 metro e meio por 50 centímetros nas laterais, a parte de cima num vidro, pra poder enxergar o que está acontecendo, uma abertura pra poder enfiar os animais dentro, e tem uma entrada com um cano de plástico que é ligado de um lado ao cano do escapamento de um carro. Então você pega, com as luvas, os bichos, enfia dentro desta caixa, enfia 5/6/7 de uma vez, eles iniciam a se debater lá dentro, e, mais rápido possível, pra evitar que eles se machuquem um ao outro, conecta com o carro, liga o carro, óxido de carbono – mata. Pega ele imediatamente, engancha uma pata num ganchinho como gancho de açougueiro, e com um bisturi de cirurgião você faz. Então você percebe que tem toda uma série de trabalhos específicos quando você diz: “Vou ser criador de bichos”.

Bom, de qualquer forma, como estava dizendo, eu fiz este trabalho em contemporâneo ao momento em que trabalhava no Correio. Porque o meu empenho no Correio era de 7 horas por dia. Então, se eu trabalhava de 7h às 2h, na parte da tarde ia na criação. Se trabalhava de tarde, de manhã ia na criação. Eu tinha um sócio pelo menos por um determinado período de tempo pra este trabalho. Então conseguia fazer as duas coisas. O que foi uma característica da minha vida: Sempre tentei, quando era mais jovem, ocupar o meu tempo e deixá-lo o mais lucrativo possível. Então, quando me aposentei do Correio, já tinha acabado esta experiência. Que foi uma experiência, como expliquei, bastante construtiva pra minha vida, bastante interessante, ganhei dinheiro, perdi dinheiro, agora não é o caso de mexer nisto. Mas estou querendo dizer que esta profissão, esta atividade já tinha acabado quando me aposentei do Correio. Então o que é que eu fiz quando me aposentei? Era época que estavam nascendo os primeiros joguinhos eletrônicos. Vamos dizer: Todo mundo conhece os fliperamas. Isto já fazia muito tempo que existia. Eu estou falando dos primeiros videogames. Só que, na época, o computador ainda era um sonho de consumo só pros americanos. Na Europa, ainda, quase ninguém tinha computador, então não existia nada disto. Só que existia, vamos dizer, tipo fliperama só que ao invés de jogar com uma bolinha, era um jogo de coisa. E o que estava acontecendo é que em todos os bares, em todos os lugares, tinha uma ou duas destas maquininhas. E os rapazes iam, botavam a ficha, não é?, dentro, jogavam aqueles 10 minutos/15 minutos. Aquele cara que era mais habilidoso conseguia passar de fase, durar mais tempo com uma ficha. E aquele que era menos habilidoso em 2 minutos perdia a ficha e tinha que comprar outra ficha. Bom, eu vi esta coisa, via a febre que estava dando nesta coisa, entrei em contato com pessoas do ramo, e tive a ideia de juntar, num único lugar, várias destas máquinas. Ao invés de ser uma máquina que tem um único tipo de jogo num bar, eu aluguei um espaço e botei, não me lembro, 30/40 máquinas dentro deste espaço. Além disto, dentro deste espaço, botei um bar, com serviço pra lanchonete, coisas deste tipo. Mais pra frente botei um telão grande de 3/4 metros. Passavam os DVDs musicais. Na época o Duran Duran, o Michael Jackson. E consegui, com isto, transformar este lugar em point de encontro. Então, a juventude da minha cidade vinha ali pra jogar, passava o tempo tomando refrigerante e comendo sanduíches, fazendo amizade com os meninos e com as meninas que estavam jogando, e virou point de encontro: Eu abria 1h da tarde e ficava até 10h/11h da noite, entendeu?, pra não dizer mais tarde ainda. Esta foi, vamos dizer, pra mim, uma experiência além de trabalho, ao menos, porque me ensinou a conviver com pessoas bem mais jovens do que eu. Porque, apesar de ter uma faixa etária bastante eclética, a princípio, o grosso dos clientes eram rapazinhos de 15 anos/16 anos. E eu já tinha 39, então já tinha destaque. Mas eu consegui me entender com este mundo de juventude, interagir com eles. Tanto é quando saí da Itália com 48 anos os amigos mais chegados que eu deixei eram aqueles que eu tinha feito nesta aventura. Deixei lá rapazes de 25 anos que tinham passado os últimos 10 anos trabalhando comigo. Bom, esta é uma das coisas.

Mas não foi só isso. Tive a ideia de abrir uma agência de casamento. Porque, contrariamente ao Brasil aonde tem mais mulheres do que homens, na Itália, eu acho que é em toda a Europa, mas vou falar especificamente da Itália, tem muito mais homem do que mulher. Faço um exemplo, se você entra em uma discoteca, uma discomusic, dentro você encontra 50 mulheres e 100 homens. Se você entra em discoteca aqui no Brasil, você encontra 100 mulheres e 40 homens. Destes 40 homens tira aqueles que não gostam de mulher, então você vê que a porcentagem é interessante. Bom, isto me abriu um outro nicho de mercado, isto me mostrou que existia esta possibilidade. Abri esta agência de casamento, agora não vou me delongar, mas foi um discreto sucesso também esta empreitada.

Deixei esta outra empreitada, porque um amigo que era um profissional no campo da arte, ele trabalhava com pinturas específicas do período 800 italianos, os grandes mestres da pintura italiana do século XIX. E ele me chamou pra trabalhar com ele, apesar de eu não ter nenhuma experiência no campo, sobretudo como homem de confiança dele. Então, partindo deste pressuposto, comecei a entender um pouco da atividade. Depois de um certo tempo, eu cuidava, sobretudo, das exposições que eram fora da nossa cidade. Ele tinha uma galeria de arte fora da nossa cidade, e ele cuidava da galeria. Mas a gente fazia exposições em outras cidades. Eu ia, instalava as exposições, montava o box, já tinha toda uma listagem de preço, até onde podia chegar, ao menos. E ele que era o expert da situação, vinha no final de semana. Eu ficava nesta cidade, Bolonha, Florença, ao menos, onde tinha exposição, sozinho, de segunda a quinta, na sexta ele chegava e ficava sexta, sábado e domingo comigo. Então, quando se tratava de fechar negócios menores eu fechava, tinha a liberdade de fechar. Quando se tratava de altas obras de alto valor, eu marcava um horário e dizia: “Olha, no fim de semana, vem o proprietário e você combina com ele, vocês se entendem com o preço”. Fora isso, às vezes, eu ia entregar obras... Bom, aqui as distâncias são completamente diferentes. Mas pela visão italiana 500 quilômetros/800 quilômetros é uma viagem que só se pensa de fazer com avião. Então, eu pegava um avião e ia entregar uma obra que ele tinha vendido pra um cliente, recebia em dinheiro vivo, pra evitar problema de fiscalização e de imposto, esse tipo de coisa assim. Dentro da legalidade, mas aquela legalidade no fio da navalha. Pra evitar a declaração de imposto, ao menos, de um lado e do outro, as vezes era interessante que não resultasse esta declaração. Então eu entregava a obra, recebia o dinheiro e cada um ficava feliz. Só que o meu empresário confiava em mim pelo fato de eu estar longe, pegar dinheiro... Mas esta é outra coisa.

Bom, de tudo isto, pra retornar a nossa fala inicial, quando vim pro Brasil, por n motivos, não pude trazer nada destas experiências. Vamos dizer assim: Criação de bichos, lá funcionava porque o inverno europeu é um inverno rígido que faz com que animais que tenham uma pelagem forte, funcione. Mas aqui, clima tropical, os animais não sobreviveriam e não tem consumo porque não tem ninguém que está interessado neste tipo de coisa. Como disse, a inversão de número de papel entre homem e mulher entre a Itália e o Brasil faz com que uma agência de casamento aqui não interesse a ninguém. Então, você entende que tudo o que aprendi lá, aqui não servia. Bom, chegando aqui, só como resquício desta minha imersão no mundo das artes, encontrei um rapaz que estava trabalhando como escultor em pedras-sabão. E eu tive uma visão, gostei muito do trabalho deste cara, que era uma pessoa extremamente simples. Então ofereci pra ele de ser o marchand dele. Então, a partir de hoje você não vende mais nada pra ninguém você tem liberdade criativa, faz o que você sabe fazer, cria as suas esculturas e guarda ali. Eu te pago, na época, vamos dizer assim, um salário mínimo, você tem a garantia de ter o teu salário e o que você faz, você dá pra mim, e eu comercializo esta coisa. Interessante pra ele, porque era uma pessoa extremamente simples, e interessante pra mim, que tive uma visão de negócio, vamos dizer assim. Iniciei a fazer isto, ele criou 30/40 esculturas, eu organizei, aqui em Maceió, uma primeira exposição, que foi um sucesso, foram vendidas várias peças. Não sei se é o caso, se posso citar, na galeria Karandash, que aqui é conhecida. E aproveitando que, na época, estava passando na Globo uma novela que era “Mulheres de Areia”, e sendo que essas pedras são feitas... eu disse pedra-sabão, mas não é, é pedra-arenito. Então, eu fiz a exposição chamada “Mulheres de Areia”. A minha ideia básica era fazer várias exposições pelo Brasil, recolher os recortes de jornais locais que falavam destas exposições, pra criar, vamos dizer, um currículo profissional deste escultor que eu estava cuidando da imagem dele. Com esta bagagem de exposições, eu queria, depois, encher um container de esculturas, levá-lo pra Europa e fazer exposições na Europa. Porque os valores de uma obra de arte na Europa, é bem maior. Pra você ter uma ideia, eu estou falando de 1992, aproximadamente. Em 92, eu estava vendendo estas peças a 100 dólares, 1992, 100 dólares cada obra. Na Europa, uma peça desta, não sairia por menos de 1000 dólares. Ninguém considera obra de arte, qualquer coisa que possa ser considerada obra de arte... Não estou falando de nada excepcional, não é um Picasso, não é uma coisa assim. Mas, qualquer coisa, que seja uma obra de arte e não artesanato, não sairia por menos de 1000 dólares. Então, retornando, fiz esta exposição, devido ao sucesso desta iniciei a programar uma exposição no Recife. Contratei um lugar pra fazer uma nova exposição, contratei pessoas lá pra montar... Bom, resumindo, quando estava quase tudo pronto, por um cataclisma, uma ventania ou sei lá. Caiu o teto do lugar que eu tinha programado pra fazer a exposição. Isto me deu um enorme prejuízo econômico e, sobretudo, moral, entendeu? Então eu perdi um pouco a coisa. Não consegui entrar em contato, na Itália, com alguém que pudesse assumir este papel. Porque a minha ideia era: eu cuido da parte brasileira, faço este trabalho, reúno recorte de jornais, reúno as obras de escultura, boto num container e mando pra Itália. Aí lá alguém tinha que se preocupar em desembarcar as obras, organizar as exposições, fazer as vendas lá. Não queria fazer tudo, entendeu? Bom, moral da história: não vingou mais do que tanto isto. Só pra dizer aqui as experiências.

Um dia, uma amiga, uma conhecida me chamou pra ir pra casa dela aonde um mestre de capoeira tava dando aula pra ela. Tinha tido uma amizade com um rapaz italiano que escreveu uma carta pra ele. Só que o cara escreveu em italiano e ele não entendia. Então ele pediu pra essa minha conhecida se eu podia traduzir esta carta pra ele. Aí eu fui na casa dela, assisti esta aula de capoeira e fiz a tradução da carta, coisa extremamente fácil. Só que fiquei entusiasmado com esta aula de capoeira. Porque capoeira, na Itália, mesmo que exista é uma coisa completamente... Não é como judô, jiu-jitsu, caratê que são artes maciais mais conhecidas. A capoeira é específica do Brasil. Então eu nunca tinha visto esta coisa e me chamou muita atenção. Eu vi que o cara era muito bom no trabalho dele, tinha uma boa dialética de metodologia de ensino, além de ser um mestre de capoeira. E conversa vai, conversa vem e eu morava, na época, em Cruz das Almas, tinha uma casa grande, com um espaço e um quintal muito grande... Moral da história: Convidei o cara pra vir na minha casa, no meu quintal, a fazer aula e a coisa iniciou a crescer: um, dois, três, quatro, cinco, dez alunos. Só que isto me criou outro tipo de problemática, porque os alunos faziam as aulas e depois precisavam de banheiro, precisavam de um copo d’água e a coisa ficou... Entendeu? As funcionárias da minha casa trabalham pela academia que eu estava dando de graça completamente. Bom, na minha visão de negócio, vi que podia ser interessante. Então, em frente à minha casa tinha um terreno cercado por um muro, com uma casa – tive uma visão. Resumindo, fiz sociedade com ele e montei uma escola de capoeira: Escola de Capoeira Pôr-do-Sol dos Palmares, em Cruz das Almas. Sucesso mais uma vez. Só que... Porque sempre tem um “mas”. Eu percebi que a escola de capoeira funcionava muito bem de segunda a quinta. Na sexta-feira, sábado e domingo, obviamente, as pessoas não vinham pra escola de capoeira e saiam pra noite, saíam pra boate, saíam pras coisas. E eu percebi que de segunda a quinta gastava um copo d’água. E que sexta a domingo iam pra noite e gastavam dinheiro. Então eu percebi que tinha uma estrutura montada, entendeu? linda... Mas que me dava pouca lucratividade. Então entendi que o espaço funcionava como escola de capoeira de segunda a quinta e sexta, sábado e domingo virava boate, virava casa de show, vamos dizer assim. Aí contratei todos os cantores de Maceió: O Maclen, a Vilma... Agora eu não lembro. Mas todos eles vieram se apresentar na minha casa de shows. Fiz shows de rock... Fiz... Mas eu vi que o que mais dava retorno, o que as pessoas gostavam era pagode. Então fiz casa de pagode. Iniciamos em uma noite que se festejava aqui o dia dos namorados. Porque na Europa e nos Estados Unidos é 14 de fevereiro, aqui é 12 de junho. Então, na primeira vez, inaugurei a primeira noite de pagode e, a partir dali todo fim de semana tinha pagode. Agora, aqui, vou ser extremamente conciso porque é também uma lembrança que é meio que antipática. Vamos dizer assim: Quando você mistura música, mulher e bebida – se não é na segunda, é na terceira; se não é na terceira, é na quarta; mas um ou outro vai dar confusão. E dito e feito. Uma noite, dentro do meu estabelecimento, teve uma confusão entre um policial militar e um dos meus seguranças, tiroteio, coisas deste tipo. Eu passei uma na cadeia. Agora, aqui, vou resumir porque senão vou demorar 3 dias pra contar toda esta história. Bom, ali acabou a minha experiência como empresário da noite. E fiquei tão revoltado que, no entretanto, eu tinha comprado um terreninho aqui no Pontal da Barra, onde estava construindo uma casinha pra fim de semana. Chamei a arquiteta, modifiquei a planta desta casa e decidi fazer uma casa onde morar mesmo. Então sai de Cruz das Almas que me lembrava de toda esta história, e vim morar no Pontal.

No Pontal, fiquei 1 ano/1 ano e meio, mais ou menos, olhando em volta o que acontecia. Vi que este bairro vivia de artesanato e decidi, mais uma vez, dar a cara a bater. Aluguei uma loja, usei a minha experiência de vida... Porque de artesanato eu não entendo nada. Mas tenho uma experiência comercial, uma experiência de vida, ao menos. No tempo de 3 ou 4 anos: 1 loja virou 2, 2 virou 3, 3 virou 4, 4 virou 5. Com 5 lojas, sendo 4 alugadas, a 5 foi de propriedade. Comprei o terreno e construí a loja. Então, 4 lojas alugadas e uma 5 de propriedade. Tinha, na época, aproximadamente 30 funcionários. E, no início de temporada, então com as lojas abarrotadas de mercadorias preparadas pra temporada, pessoal altamente qualificado, altamente treinado, início de temporada – quebrou a ponte Divaldo Suruagy, foi interditado o trânsito. Aí o que acontece? Todo turista que vem pra Maceió, vem querendo conhecer a Praia do Francês. E, a organização turística de Maceió é baseada neste sentido: os ônibus de turistas pegam os turistas nos hotéis, levam pro Francês passando pela ponte Divaldo Suruagy, passam o dia no Francês, Gunga, Barra de São Miguel... Na volta, lá pelas 3h30 da tarde param no Pontal da Barra, descem, o pessoal desce deste ônibus, que são 10/11, na alta temporada, 15/20 ônibus descem pela rua do Pontal, porque é uma rua especificadamente, que são mais ou menos 100 lojas. Naquela época, com o bloqueio da ponte Divaldo Suruagy, o que foi que aconteceu? Eles não podiam eliminar este point turístico do Francês do roteiro. Então, fizeram um caminho diferente. Passaram... não sei... Como é que se chega ao Francês? Por cima! Eu não sei te dizer. Mas tem outro caminho pra chegar no Francês, eliminando a rota da ponte. Só que isto deixou o Pontal fora, completamente, do circuito dos ônibus de turismo. E isto durou praticamente uma temporada. Acho que foram uns 5 meses de interrupção desta ponte. E isto me quebrou. Eu poderia, deveria ter despedido, pelo menos, 25 funcionários. Devia que ter entregue, no mínimo, as 4 lojas que eram de aluguel, e ter ficado só com a minha loja, a última, que era de propriedade. Mas seria muito complexo explicar tudo isto, reverter o... A vida não é feita de “se” e de “mas”. Não fiz, fui à falência. E acabou esta história.

A partir dali eu já tinha passado dos 60, né? E decidi dar um tempo com os negócios. Fiquei vendo televisão, fiquei contando os dedos das mãos. Até que percebi que uma coisa que estava me incomodando, era que, quando conversava com alguém as pessoas, percebendo que a minha dialética era decente, me perguntavam qual era a minha formação. E eu estava incomodado com o fato de dizer que não tinha nem o segundo grau. Foi aí que me apareceu uma publicidade daquele curso de “Faça o segundo grau em 3 meses”, me interessei pela coisa, fui no Marcelo Cursos, me inscrevi, fiz aquela coisa, fiz o exame. Graças a Deus, passei nesta coisa. A partir dali um amigo meu muito querido, disse: “Agora você fez 30, agora faz 31! Agora vai pra universidade!”. Então falei: “Mas como vou pra universidade?”. E ele disse: “Não... Vai! Agora que pegou o boi pelo chifre, vai pra frente!”. Aí fiz outro cursinho, de novo. Dei a cara a bater. Fiz o exame pra UFAL, pra História. E decidi entrar pra esta nova aventura com 66 anos. E acho que, bem ou mal, me dei bem.

Me lembrei de um episódio que acredito que seja bastante particular, bastante único. E que poderia botar como título da coisa: “A confissão de um crime”. Faço uma pausa. Só que antes de contar este episódio, queria estabelecer um conceito, meu, do que é honestidade. Pra mim, existe a “honestidade relativa” e a “honestidade total”. Eu me considero uma pessoa honesta, dentro de um conceito de “honestidade relativa”. Eu vou explicar qual é o meu pensamento. Faço um exemplo: Se eu encontro uma carteira com dinheiro e documentos, eu não tenho dúvidas que devolvo. E isto, pra mim, é honestidade relativa. Se eu encontro uma nota de 50 reais, eu boto a nota no bolso. Por que digo isto? Porque na minha vida tive um amigo, e um dia fizemos uma hipótese deste tipo e ele foi categórico em dizer que se ele encontrasse uma carteira com documentos, ele devolveria; se ele encontrasse uma nota de 50 reais, ele ia entregar pra o primeiro posto de gasolina, loja que estivesse nas redondezas pra ser devolvida, de qualquer forma, à pessoa que tinha perdido esta nota. Obviamente, no meio de nosso grupo, teve uma série de gargalhadas e todo mundo gozou da cara dele, dizendo que ele estava entregando esta nota e que, naturalmente, a pessoa pra qual ele entregasse ficaria com a nota. E ele defendeu a sua posição dizendo: “A minha consciência não me permitiria de ficar com esta nota, porque eu sei, perfeitamente, que esta nota não é minha. Só que, entregando esta nota pra uma outra pessoa, eu não quero saber qual é a atitude que esta pessoa vai tomar. Se ele fica com a nota ou se ele expõe em um cartaz na loja avisando que foi encontrada... Isto é um problema dele”, ele diz, “A minha consciência não me permite ficar com a nota, porque esta nota não é minha”. Isto, pra mim, é um exemplo de “honestidade total”. Eu não conheço praticamente ninguém que corresponda, além deste amigo, nunca conheci ninguém que tivesse esta característica. Mas, vou aceitar e tirar o chapéu diante da atitude de alguém que se comporte desta forma. Agora, vamos voltar ao crime: o meu foi um crime legal. No sentido que fiz um ato que era sujeito a pena, foi um infringimento de legislação. Então, se eu tivesse sido pego fazendo o ato, eu teria sido julgado pela lei, condenado pela lei, porque estava fazendo uma coisa ilegal. Mas, agora vou contar... Na realidade, eu estou contando até porque já se passaram 40 anos e acredito que o crime já prescreveu, pela legislação, além do fato de ter sido cometido em um outro país. Vamos lá, vou contar o fato.

A gente tem que voltar no tempo, aproximadamente em 1980. Nesta época, na Itália, era bastante comum, em época de natal ou em ocasiões especiais, fazer competições de carteado ou de sinuca, ao menos. E muitas vezes o prêmio pras duplas vencedoras, ao menos, era moedas de ouro. Mas ouro verdadeiro. Isto porque, naquela época, é fácil recuperar os dados via internet, ao menos, o valor do ouro era baixo. Então, vamos dizer assim, não sei hoje quantificar, mas dava pro organizador da competição entregar como prêmio uma moeda de ouro. Esta coisa fez com que muitas pessoas, ou pelo menos algumas pessoas, iniciassem a fazer coleções de moedas de ouro, medalhas de ouro, ao menos, como forma de poupança. Ao invés de guardar dinheiro, as pessoas ganhavam dos tios, avós, ao menos, 5 reais/10 reais, juntava 50 reais e comprava uma moeda de ouro e guardava esta moeda de ouro, na esperança que o valor do ouro aumentasse. E eu fui uma dessas pessoas. Um pouco porque tinha ganho alguma competição, e outra como forma exatamente de poupança: Ao invés de botar o dinheiro num porquinho, comprava moedas de ouro. O que acontece que eu sempre gostei de ler, desde gibi a livros de informática, sempre tive uma paixão pra ler. E jornais de todo tipo: isto porque, trabalhando no Correio, tinha acesso a todos os jornais em primeira mão. Iniciei a me informar quais eram as cotações do ouro e estas coisas.

Agora vamos explicar um fato: Na Itália, quem vende moedas de ouro e quem compra moedas de ouro são lojas especializadas, normalmente em filatelia e numismática. E, nestas lojas, a moeda de ouro pode ser avaliada de duas formas: Uma, pelo valor do ouro; outra, pela raridade numismática. Tou dizendo assim: Vamos pegar a Libra Esterlina, tem Libra Esterlina de várias épocas, tem Libra Esterlina com várias esfinges. Por exemplo: No momento em que os árabes ficaram donos do mundo com a história do petróleo, por uma coisa curiosa, eles pagavam alguma coisa a mais por moedas de ouro com a imagem do rei, e não queriam, ou pagavam menos, pras moedas de ouro com a imagem da rainha. Por uma questão de machismo, entendeu? Isto é uma curiosidade. Porque, na realidade, basicamente o valor era determinado pelo peso da moeda. A não ser que fosse estragada, pequenos defeitos, pequenas imperfeições, davam um valor médio à moeda. Só que este fato de dar um valor médio, fazia assim: Em uma cidade normal, vamos dizer Maceió, havia mais do que uma loja. Se você tem uma moeda de ouro pra comprar ou pra vender, você fazia uma pesquisa de mercado, não é? Você ia em uma loja e perguntava: “Eu tenho esta moeda e quero vender, quanto você dá?”. Um oferecia 100, outro oferecia 95 e outro oferecia 105. E você comprava no lugar que era mais barato ou vendia no lugar que pagava mais. Mediamente, o preço era bem parecido entre uma e outra.

Agora vamos contar outro fato: Nesta época, na França, estava acontecendo um fato político importante – enquanto, no poder, era, no momento, o Valéry Giscard d’Estaing, que representava a direita, vamos dizer assim, o centro-direita, o status-quo, pra melhor dizer. E, como opoente, tinha o François Mitterrand, que representava a esquerda, eu acredito, de poder dizer, que era comunismo mesmo, não socialismo – comunismo mesmo. Então, este fato, da possibilidade de o Mitterrand ganhar a eleição e governar a França, criou uma onda de pânico entre as pessoas que moravam na França e tinham muito dinheiro. Isso porque eles tinham medo que o Mitterrand, eventualmente chegando ao governo, pudesse decretar alguma lei estrambólica do tipo confisco das poupanças, taxação enorme em cima das poupanças. Então as pessoas tiraram dinheiro vivo das contas de banco e foram comprar moedas de ouro. Que, em italiano, é chamado de “bene rifugio”, no sentido de que em qualquer situação, se você tem um saquinho com moedas de ouro, você bota no bolso e foge e você tem uma quantia relevante. Coisas que, às vezes, não dá tempo de você sacar dinheiro, o dinheiro se desvaloriza em função de uma queda de um governo, não vale mais nada, tem toda uma bibliografia, por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, na Primeira Guerra Mundial os alemães andando com carrocinhas de mão cheias de dinheiro pra comprar um quilo de pão, porque a moeda teve uma desvalorização enorme. Aqui no Brasil quando cheguei aqui, em 91, ainda tinha uma inflação maluca que corroía completamente o valor da moeda papel. Então, as pessoas, neste caso, sobretudo por medo das incertezas do futuro, incorreram neste estratagema de trocar as suas poupanças em moedas de ouro. Só que a gente não pode esquecer que na economia mundial tem uma lei básica que a da demanda e oferta. Então, a partir do momento que muita gente foi atrás de moedas de ouro, o valor da moeda de ouro cresceu de forma vertiginosa. As pessoas que tinham moedas de ouro, se encontravam na necessidade de vender ou se achavam que valia a pena vender, estavam vendendo ao preço máximo que conseguiam. E as pessoas que tinham dinheiro de papel, se encontraram dispostas a pagar qualquer preço pra ter na mão um valor diferente que não fosse declarado que não fosse possível rastrear. Isto até porque, depois vamos ver, a legislação francesa, assim como a legislação italiana, não necessitava absolutamente que este comércio, esta troca fosse registrada. Então, qualquer um podia comprar ou vender sem se identificar.

O que acontece? Eu percebi estas coisas, além das cotações nos jornais, ao menos... Só que uma diferença básica: na França, a cotação da moeda de ouro não é estabelecida pelo dono da loja, mas é estabelecida pelo valor da bolsa de valores todos os dias, além de dar a cotação dos títulos, dá também a cotação das moedas de ouro identificando cada moeda e dando o seu valor pra compra e pra venda. Então, você não dependia do humor do comprador ou da ganância ou da capacidade de traquejo em fazer a operação. Você quer comprar? É “X”! Você quer vender? É “Y”! Isto não se discute. A não ser que você vá no sentido de mismática. Quando você diz: “Esta moeda, além do valor áureo, tem um valor porque é de um ano específico, um amoeda rara”, aí é outro papo. Eu estou falando de moedas correntes. E vou falar, especificadamente, dos 50 pesos mexicanos, porque é a moeda, que depois vou explicar melhor, com a qual eu trabalhava. É uma moeda grande, é uma que pesa uns 30 gramas, não sei precisamente, mas uns 31/32 gramas, é uma moeda bonita, é uma moeda com circulação bastante recente, motivo pelo qual se encontra com facilidade e tem sempre uma boa apresentação, ninguém vai questionar se tem um riquinho, ao menos, é aceita pelo valor do ouro.

Então, como é que acontecia esta coisa? Eu ia compra na minha cidade moedas de ouro em uma loja especializada, como eu disse, neste tipo de operação. Até este momento, eu não estava cometendo nenhum crime, porque eu ia comprar em uma loja especializada, autorizada a vender sem problema nenhum, pagava regularmente, pegava as minhas moedas de ouro. O que acontece? Eu pegava a minha moeda de ouro, botava no bolso, pegava o meu carro, atravessava a fronteira – não vamos esquecer que a minha cidade ficava a 90 quilômetros da fronteira e 120 quilômetros de Nice, onde eu fazia o trabalho. Eu, naturalmente, no momento em que passava pela fronteira, não declarava que estava em posse desta moeda de ouro, nem de uma, nem de dez. Eu não declarava este valor que estava passando. Então, eu estava cometendo um crime. Porque eu estava fazendo contrabando de ouro. Porque eu teria que ter declarado, chegando na fronteira, que eu tinha um valor de ouro que eu estava tirando da Itália e que eu estava levando pra França. Então, se eu fosse pego, neste momento, eu estaria sujeito a gravíssimas penalidades, não é? vamos ver depois. Mas, eu passando a fronteira, automaticamente, de novo, eu entrava na plena legalidade. Tanto é que eu vendia as minhas moedas de ouro para um banco. Não vou citar o nome do banco, mas este banco, pelo qual eu não era obrigado a me identificar, e pra evitar problemas do tipo de denúncias anônimas, ao menos, eu era conhecido neste banco através de um codinome, eu era conhecido como Monsieur Rossignol. Quando eu chegava lá, me relacionava com um funcionário de alto escalão específico, vamos dizer assim, que me levava em uma salinha escondida da vista das pessoas, eu botava na mesa as minhas moedas, ele contava, me dava um recibo e eu ia passear, ia num restaurante, na praia, dependendo do momento, e esperava o fechamento da bolsa. No fechamento da bolsa, vinha estabelecido a cotação, e ele me pagava pelo valor da cotação. Aí o que acontece? Ele estava me pagando em Francos franceses. Então eu pegava estes Francos franceses e, sem declará-los, de novo, eu passava pela fronteira e entrava na Itália. Digo que era sem declará-los porque, na realidade, eu não queria, sobretudo, chamar atenção sobre esta passagem de dinheiro. Mas, neste caso específico, eu não estava cometendo um crime. Ou, vamos dizer assim, era muito menos problemática a coisa porque eu poderia afirmar que tinha ganho dinheiro jogando no cassino. E os ganhos de cassino não são declaráveis, não tem nenhuma obrigação, muita gente perde, muita gente ganha e não para na fronteira pra dizer: “Hoje ganhei 1000. Hoje ganhei 2000”. Provavelmente, uma soma mais alta poderia ter que colocar isto em discussão. Mas, era o menos preocupante porque, no mínimo, não existia o crime de contrabando. Poderia existir o crime de não declaração de passagem de divisas. Mas o grosso, a problemática grave, era o contrabando de ouro. E isto só acontecia quando eu passava da Itália pra França. Posso dizer que esta passagem, ainda hoje, pode ser feita por várias passagens. Tem a ponte São Louis, a ponte Ludovico, tem a ferrovia e a autopista. Então, eu não passava sempre no mesmo horário, não passava sempre no mesmo dia, possivelmente, às vezes, pegava um carro emprestado de um amigo, entendeu? Um dia passava pela São Louis, um dia pelo autopista, um dia ia pela ferrovia, um dia chagava de manhã, um dia chegava de noite. Óbvio que, quando chegava de noite, tinha que dormir em uma pousada e esperar o horário de abertura do banco. Às vezes chegava na segunda e fazia a operação de venda na terça de manhã, né? no horário de venda. Só que a grande a grande sacada, o que me deixava entusiasmado e o que, ainda hoje, me permite de enfrentar este julgamento, de uma certa forma, é que eu sempre mexia, trabalhava, me relacionava com pessoas de bem. Tou dizendo: Se você organiza um assalto a um banco, se você faz contrabando de cocaína, ao menos, você sempre se relaciona com marginais, com pessoas que são infratoras da lei em todos os aspectos. Eu estava comprando de lojista e vendendo a funcionário de banco. Então, os meus contatos.... Eu não tinha medo nenhum de, de repente, alguém puxar o revólver e pegar o dinheiro ou coisa deste tipo. Eu era tratado como Monsieur, Senhor, de um lado e do outro, entendeu? Um era feliz por me vender, o outro era feliz por me comprar, porque eles tinham a comissão deles relacionada a isto sem problema nenhum. Agora, vamos voltar à operação: Eu recebia Francos franceses, precisava transformar estes Francos franceses em Liras italianas. Então eu tinha um conhecido que era funcionário de banco o qual me disse: “Riccardo, se você se apresenta, duas vezes por semana, levando altas quantias, você vai chamar a atenção da polícia que vai querer saber de onde você pega este dinheiro e porque você está fazendo este tráfego. Então, eu te aconselho a fazer uma operação, vamos dizer, de meia fachada”. Ele me oferecia declarações de vendas de moedas, eu preenchia estas relações com nomes e endereços fictícios. Então, vamos dizer, eu botava “Jean-Louis Godard, Rue de la Paix, Paris”, que trocava 10000 francos. Ninguém ia verificar a veracidade destas coisas, não chamava, minimamente, a atenção, porque a minha cidade é uma cidade turística, recebe centenas de turistas italianos, franceses, alemães, os quais fazem continuamente este tipo de operação. Então, apesar de, de novo, cometer uma ilegalidade, porque eu preenchia um documento que não era o meu, mas pela legislação atual, com a conivência, óbvio, do funcionário do banco, passava batido. Eu apresentava 10 folhinhas e ele me dava o correspondente em Liras italianas. Eu pegava este correspondente em Liras italianas, ia comprar, de novo, moedas de lojistas italianos, as vezes não encontrava na minha cidade, ia na cidade vizinha, Génova, 40 quilômetros, comprava lá, entendeu? Porque eu precisava abastecer este fluxo.

Pra você ter uma noção prática do tipo de business, vamos dizer assim, em valores atuais, aproximadamente, eu poderia dizer que eu comprava uma moeda de 50 Pesos por 500 Reais e vendia, na França, por 800 Reais. Então, eu ganhava 300 Reais por cada moeda. Então, se você multiplica o número de moedas que eu conseguia juntar, eu cheguei, nos melhores dias, a ganhar 10 mil Reais por dia. E isto, tá entendendo? sem machucar ninguém, sem ameaçar ninguém, sem está preocupado se aquela pessoa que comprou a droga vai morrer, sabe? eu não tinha este escrúpulo. Por isto que estou te dizendo: Eu sou consciente que estava fazendo uma coisa contrária à lei, mas não me sentia culpado quase que de nada. Não tinha vergonha de fazer, assim como não tenho vergonha, hoje, de contar esta coisa. Apesar de que stricto sensu, em termos legais, eu estava cometendo um crime, sim: Contrabando. Mas vá... Nada aconteceu.

Agora, posso dizer mais: Que, na realidade, tem uma coisa que muitas vezes me encontrei pensando, que se tem um arrependimento, é de não ter feito a coisa em escala maior. O que quer dizer o que? Eu sempre apliquei neste negócio todas as minhas economias, tudo o que eu conseguia pegando dinheiro emprestado de um amigo, ao menos, tudo o que eu conseguia. E foi o que eu consegui fazer. Nunca me passou pela cabeça, e me questiono ainda hoje, de não ter recorrido ao uso de agiota, que existe na Itália também. É claro que, tratando de uma operação legal, de uma compra de um estabelecimento, de uma viagem, ou seja, lá o que você quiser fazer, usar dinheiro de agiota é sempre desaconselhável. Porque o juro do agiota é astronômico e você já tá mexendo com pessoas mais ou menos. Então você pode ter uma situação negativa. Mas, no meu caso, os meus lucros eram tão altos que teriam me permitido, tranquilamente, de pagar o juro do agiota sem ter problema nenhum. E, eventualmente, se tivesse dado algo errado, eu era funcionário público do Correio, então se eu tivesse sido pego na fronteira, ia ser condenado, ia pra cadeia, perdia com o sequestro do carro porque era que estava fazendo o contrabando, provavelmente teria sido dispensado, teria perdido os anos que já tinha feito no Correio.... Então teria sido uma ruína enorme. Então, frente a estas possibilidades, o problema de não poder pagar o agiota teria sido o último dos meus problemas. Agora, se eu tivesse tido esta ideia, eu poderia ter multiplicado por 10 o meu lucro. E, posso dizer aqui, que foi muito dinheiro, muito dinheiro que eu ganhei. Vou te dizer mais: Passei esta informação a dois amigos íntimos, então triplicamos a operação, diminuímos o risco porque, na realidade, um dia passava eu, outro dia passava o meu amigo. Então, vamos dizer, aquele policial que me viu passar hoje, a possibilidade de, mesmo que ele não foi com a minha cara, que ficou cismado por alguma coisa, provavelmente tinha chance de passar 2 meses antes de me ver de novo. Porque ele estava de serviço toda segunda, e eu passava uma vez na segunda, depois passava 3 meses antes que passasse de novo pela segunda. Ele estava de serviço de manhã, e eu passava de tarde. Aí ele esperava que passasse eu com o meu carro, e passa o Geovanne com outro carro, entendeu? Então era muito difícil. Por parte do banco francês, ele não poderia avisar à fronteira que eu estava passando porque ele não sabia quando era que eu chegava, qual a hora que eu chegava, de qual fronteira eu estava passando. Então, não se justificava. Era o só o puro acaso que podia me ferrar a operação.

Mas, voltando ao assunto inicial, eu te digo: Eu tou confessando um crime, mas, na minha visão, é um crime bem, bem pequenininho. Mas, pela moral comum, eu acho que poderia ser absolvido. Agora, pela moral rígida, eu sou consciente do fato de que estava cometendo um crime. Bem, acho que com esta pérola específica, porque não é todo mundo, graças a Deus, que comete crime, menos ainda comum é uma pessoa que cometeu um crime confesse que tenha cometido um crime. Então, acredito que possa ser juntado à minha história de uma forma, vamos dizer assim, como a cereja em cima do bolo.

 

Pré-leitura

 

Ego-história. O que é isso? Uma autobiografia? Um conto onde verdade e ficção se entrelaçam para dar vida a uma espécie de narrativa que transforma a estória de uma existência comum em algo digno de ser contado e merecedor da atenção alheia? É o ápice do Egoísmo, em querer falar do Eu, ou, uma forma de altruísmo em dividir, compartilhar, confessar experiências pessoais com quem possa se interessar em prestar ouvido a estória da minha vida. E mais, a estória da minha vida pode ser considerada como um fato isolado ou fazer parte da estória de uma geração, de um período histórico, de uma experiência coletiva que a transforma em um testemunho oral de uma época, colocando-a, portanto, de fato e de direito, no contexto da História Oral, como forma reconhecida de estudo? Eu sei que na frente do oralista as imagens que se formavam na minha mente não tinham perdido a cor e a força com o passar dos anos, muito pelo contrário, voltavam trazendo até perfumes esquecidos. E cada vez que eu, feito feiticeiro, colocava no caldeirão um novo ingrediente me transformava em um consumidor voraz do meu próprio feitiço, não conseguindo me conter e querendo mais. No caleidoscópio de imagens, no turbilhão de emoções despertadas pelas lembranças me reencontrava com meu Eu mais íntimo. Me reconhecia no jovem faminto de aventuras que não aceitava passar as férias no balneário tradicional e se aventurava nas escaldantes areias do Deserto Africano. Do jovem pobre que ousava calcar o verde e mágico tapete das roulettes dos cassinos de toda a Europa! A minha fome de viver a vida era tamanha que não podia me contentar em ler os livros das aventuras dos outros. Paguei o preço dessa minha ansiedade de várias formas, mas não me arrependo de nada que fiz, só daquilo que não consegui fazer.

 

Leitura

 

Meu nome é Riccardo Canesi. Esta declaração vai muito além de uma simples apresentação, no nome, e sobretudo no sobrenome, está incluído não um dado anagráfico, mas é marca de unicidade, é sinônimo de uma carta de qualificação para indicar a regionalidade, a estória de uma família, a saga de um clã, mesmo que na nossa cultura, não seja acompanhada de brasão e cores específicas, que poderiam indicar algum grau de pertencimento à nobreza. Quando falo de regionalidade, me refiro ao fato que a Liguria é terra de navegadores, e a minha família é a prova disso. Meu pai, meus tios, meu avô, bisavô e outros antepassados pertenceram aos quadros da Marinha Mercante ou Militar. A minha geração interrompeu esta tradição, e se dedicou a outras atividades, apesar de ter ainda um primo, capitão de navio, mas, o amor pelo mar, a paixão pela busca de outras terras, culturas e povos está no nosso D.N.A. Não estou aqui querendo contar esses feitos, mas gostaria de frisar a importância de carregar um nome. Para tanto, acho interessante sinalizar o trecho do livro "Raízes Negras" que dá uma ideia mais contundente dessa importância em determinadas culturas.

 

Os pensamentos seguintes de Kunta, de pé ao lado da cama, concentraram-se na busca de um nome apropriado para a filha. Sabia que não poderia pedir ao massa oito dias de folga para pensar no nome da filha, como qualquer pai faria na África. Mesmo assim, sabia que tinha de pensar muito no assunto, pois o nome escolhido teria grande influência no que a criança se tornaria. Mas Kunta lembrou-se de repente de que, qualquer que fosse o nome que escolhesse para a filha, ela seria também chamada pelo último nome da massa. Isso deixou-o tão enfurecido que jurou a si mesmo que a filha cresceria sabendo seu verdadeiro nome....

Já era quase meia noite quando Kunta ronou a sair da cabana, levando a filha recémnascida, em volta numa manta. Afastou-se o suficiente para ter certeza de que ninguém iria interferir no que estava para acontecer. Sob a lua e as estrelas, Kunta ergueu a filha para o céu e depois virou-a, a fim de que o ouvido direito da menina ficasse encostado em seus lábios. E depois, bem devagar, falando com toda clareza, em mandinga, sussurrou três vezes: -Seu nome é Kizzy. Seu nome é Kizzy. Seu npme é Kizzy. Estava feito, como fora feito com todos os ancestrais Kintes, como fora feito com ele próprio, como teria sido feito com aquela menina recémnascida se tivesse nascido na terra de seus ancestrais. Ela tinha sido a prieira pessoa a saber quem era. (Haley: 1979, 262 - 264).

 

Sou Italiano de náscita, de nascimento. O orgulho com o qual declaro minha nacionalidade, vem não só do fato de ser a terra que deu origem a um dos maiores impérios que o mundo conheceu, império que proporcionou à humanidade inventos que mudaram a história e contribuíram ao desenvolvimento da raça humana, como também, esse orgulho, que considero justificado, deve-se a direta participação de meu bisavô à expedição dos famosos "mil' que com sua luta deram origem ao nascimento do Reino D'Italia.

Mas, muito além dessa origem ancestral, sentir-se italiano é declarar o amor pela vida, pelo mar, pelo sol, pela música e, por que não, pelo futebol. Claro que essas paixões não são prerrogativas únicas dos Italianos, muitos outros povos compartilham esses sentimentos, mas tem uma que se destaca e forja a "italianidade": a cozinha. Não estou falando da cozinha sofisticada, dos grandes chefes, e das receitas extremamente elaboradas, onde encontraríamos nos Franceses rivais à altura. Estou aqui me referindo à base da nossa alimentação: a massa. Contrariamente ao Brasil e à China, onde essa base é o arroz, para os Italianos falar de massa, caseira ou industrializada, é motivo de orgulho e de tradição. Muitas vezes isso foi tema de intermináveis e acaloradas conversas com meus amigos Brasileiros.

Alguns sustentam a semelhança entre o hábito de comer massa todos os dias com a rotina costumeira do arroz e feijão (aquele feijão, insuperável, feito pela mãe ou pela avó). Aí, inicia o atrito. Sem querer desmerecer o sabor maravilhoso daquele feijão, eu contesto que se trata, de qualquer forma, da repetição cansativa de um único sabor. Por contra a cozinha italiana, além de oferecer uma grande variedade de tipos de massas, cuja função primária é de reter e assim enaltecer o sabor dos molhos, se baseia no "sugo". Este é o verdadeiro ingrediente que faz toda a diferença. Se, como já disse, o feijão tem um único sabor, os molhos, ao contrário, oferecem uma quase infinita gama de sabores completamente diferentes entre si e transformam a variedade da cozinha Italiana em um festival de delícias que levaram fama mundial à essa arte centenária. Não vou aqui elencar as grandes variedades existentes, mas, posso afirmar, sem qualquer dúvida, a possibilidade de alternativas em mais de cem diferentes receitas de molhos, com sabores únicos e individuais. A estes, podem-se acrescentar uns 50 molhos próprios para o "risotto". Por isso, que as expressões "de comer rezando" e "precisa comer de joelhos" encontram uma justificativa na culinária italiana. Se afirma que na Itália a comida é uma religião e para quem queira aprofundar-se no assunto encontrará com facilidade justificativa para essa asserção. Essa busca da perfeição supera as regionalidades, mesmo que justificadas por paladares e preferências, no reconhecimento de superioridade em vários itens, tipo: "o melhor manjericão" é o de Gênova, o melhor "tomate" é o de Nápoli, o melhor "pimentão" é o de Carignano (TO) e assim vai. Essa busca pela excelência é práxis nas cozinhas familiares, não só em restaurantes renomados. Acrescente-se o acompanhamento com vinhos de diferentes bouquet (não o costumeiro sabor da cerveja) e o hábito da troca de pratos para não alterar os sabores e se terá uma ideia dessas singularidades, e, por que não, superioridade da cozinha Italiana. Dentro desse contexto, deve-se sinalizar a importância do momento "refeição" pela cultura Italiana. Em volta de uma mesa, se fecham negócios, se estabelecem alianças, estratégias das mais variadas naturezas e assim comemoram vitórias, casamentos, batizados e toda sorte de eventos.

Vivo no Brasil faz 25 anos. Conheço muitos italianos que moram aqui, mas uma das coisas que me diferenciam deles é que eu nunca (até o ano passado [2015]) voltei para lá, isso torna meu testemunho muito parecido com aquele dos emigrantes de outrora, gente que saía para, provavelmente, nunca mais voltar. Muitas vezes me deparei pensando que emigrar é um pouco como morrer, ou seria mais correto pensar em nascer de novo?

Muitas pessoas me perguntaram qual foi a motivação que me trouxe ao Brasil. Eu sempre respondo que não foi um fato específico, mas um conjunto de fatores que contribuíram para que essa decisão fosse tomada. Elenquei alguns e passei a contar algo referente à minha segunda vida, porque é assim que eu enxergo essa minha experiência nessa terra que me acolheu e me deu tantas oportunidades.

Poderia acrescentar que aqui chegando, estranhei essa expressão de "Novo Mundo". Se essa definição cabia e encontrava justificativa em 1500 e 1600, ela já não faz sentido. Para um europeu da atualidade, sem querer criticar, mas simplesmente admitindo a realidade, aqui não tem nada de "novo", nem nas mazelas dos políticos, na corrupção endêmica de vários órgãos e autoridades que transformam até cidadãos honestos em corruptores por causa de uma visão distorcida da tentativa de levar vantagem em tudo ou de se safar de justas punições, nem tampouco de vícios e maus-hábitos originários do "Velho Mundo".

Os meus contatos com a Italia. Devido à falta de tecnologia (computador, internet, Whatsapp) e ao alto custo das ligações telefônicas internacionais, em brevíssimo tempo eu perdi contatos com parentes e amigos.

Eu, contrariamente a outros italianos que conheço. Entre os italianos que vieram para o Brasil, muitos trouxeram consigo filhos pequenos ou adolescentes. Estes meninos, ao meu ver, apesar de serem criados no seio de duas culturas, de serem bilíngues, de sentir-se um pouco Italianos e um pouco Brasileiros, não podem dizer que viveram duas vidas. Se por isso entende-se que em cada uma delas, deveriam ter passado por experiências e provações capazes de deixar marcas indeléveis da formação do seu caráter.

Voltei depois de 25 anos. Eu, pelo contrário, cheguei aqui como homem feito, com 48 anos, levando, na minha bagagem pessoal, lembranças e vivências de uma infância, de uma adolescência, de um casamento, divórcio. Cheguei como aposentado depois de ter trabalhado 20 anos na mesma empresa.

O que é um herói? Nessa cápsula inicio com algumas considerações que se transformam rapidamente em elucubrações e conjecturas sobre a figura do "herói". Estamos acostumados a considerar, a catalogar, a inserir nessa categoria, aquelas pessoas que, em determinados momentos se destacaram com atitudes fora do normal, atitudes que fogem ao padrão considerado "normal", previsível, comum. Eu acho que ali consiste a deformação de um ser humano em uma figura mítica, em um semideus, em alguém cujas atitudes fogem aos padrões da multidão. Ao meu ver, se esquece de considerar o momento, as condições quase únicas nas quais tais atos se desenvolveram. Acredito eu que qualquer um, colocado em determinada situação, possa ter um rompante heroico. Quem, para defender a própria prole, não se transformaria em um sujeito destemido, capaz de superar limites e obstáculos inimagináveis? Como não diferenciar comportamentos no calor de uma batalha ou na rotina de um estressante dia no escritório? Qualquer um, ao meu ver, pode superar seus medos, seus instintos de sobrevivência, se, dos seus atos, depende o destino de parentes, companheiros d'armas, de patriotas, etc. etc.  Dito isso, analiso ao invés, quanto difícil seja superar a normalidade, a monotonia de um trabalho repetitivo, sem estímulo algum, que nos torna máquinas de uma engrenagem aparentemente sem importância, mas que, desde o primórdio, permite à sociedade, como um todo, existir, progredir, e alcançar um futuro melhor. Óbvio que, nesse mundo macro, cada um, pertence a um mundo micro, pessoal, subjetivo e nesse contexto passo a enfrentar a enorme dificuldade pessoal que representa a hercúlea tarefa de ser pai. Não sei se estou certo na minha avaliação, mas acho que hoje está mais difícil do que nunca cumprir esse papel. Digo isso pensando no meu pai, meu avô, e a época em que eles viveram. A sociedade deles se baseava em um tripé funcional: Deus, Pátria, Família. Em poucas gerações esse mundo desmoronou completamente. Através de conversas informais com as novas gerações é fácil concluir que esses valores, outrora sagrados, não representam mais o leme com o qual dirigir nossas vidas. Não tem espaço aqui para analisar em detalhes essa minha convicção, mas, a impressão que tenho é que tudo se resumiu em uma adoração ao "Deus Moeda". Em nome dele, tudo se faz, nada é imoral, tudo pode e deve ser alcançado. Em uma sociedade altamente consumista, onde padrões de beleza e de competição varreram do mapa aqueles cultuados por centenas de anos, me encontro eu, pai de um adolescente, sem mais certezas sobre qual é a tábua de mandamentos que devo passar para ele. Quando me tornei pai, imaginei que a minha função se limitaria em repassar para meu filho os princípios que aprendi no seio da minha família e que nortearam a minha formação como indivíduo e cidadão. Pura ilusão!!  Se na minha época a expressão "Droga, Sexo e Rock and Roll" era basicamente folclórica ou relativa a uma distante realidade, hoje permeia a nossa sociedade representando um apavorante perigo para os nossos meninos. Pulando de pés juntos esse pensamento, passei a contar, de forma sucinta, o que foi a minha vida na Itália.

Iniciei com um recorte que mistura lembranças infantis com fatos históricos e políticos para depois, já com vinte anos, falar do meu ingresso e da minha saída dos Correios Italianos. Não daria para contar, se não em um livro de memórias, os inúmeros episódios hilários ou semi-sérios que marcaram esse importante e longo período da minha vida. Me limitei a tentar explicar como se deu a possibilidade de alguém se aposentar com 39 anos dentro da legalidade de uma Lei falha e que continua me beneficiando ainda hoje. Assim como tentei mostrar que por falta de uma qualificação específica, procurei encontrar saídas para continuar a participar de forma ativa e criativa, do mundo produtivo. Contei propositalmente aquilo que eu considero uma página vergonhosa da minha vida, o episódio onde me comportei com uma atitude covarde e inexplicável frente a um momento anti-heroico para dar mais credibilidade ao meu testemunho para não dar a impressão daquele que só conta aquilo que lhe é favorável.

Meninos daquela época.  Eu acho que aos meninos que tiveram o azar de viver em épocas de conflitos, em qualquer lugar do mundo, foi roubada a possibilidade de passar de uma fase à outra da vida de forma natural, em outras palavras, a eles foi negada a "inocência". À luz da nossa atual realidade, as minhas palavras soam como mentiras ou exageros, mas quem passou por situações similares entende que a verdade pode ser ainda mais crua.

Quando eu era menino. Estou escutando pela enésima vez a gravação da minha fala, estou lendo e relendo a transcrição na tentativa de capturar a alma do meu trabalho no esforço de passar para os ouvintes e leitores um retrato, o quanto mais fiel possível, de alguns acontecimentos, de recriar a atmosfera da época, de passar credibilidade aos meus contos, mas percebo a enorme dificuldade de explicar "emoções". É fácil contar os fatos, trata-se enfim de um exercício de memória, a dificuldade consiste em repassar as sensações que tais lembranças despertam em mim. Vou tentar me expressar melhor: quando eu era menino, e, acredito eu, isso acontece com todos, aos meus olhos as coisas pareciam maiores que aos olhos de um adulto. Falo isso em termos de grandeza, mas não só, se falo do medo por exemplo, a sensação de medo em uma criança é bem maior que a de um adulto. Não sei explicar o porquê, mas as minhas lembranças infantis são fundamentalmente sem cor, digamos em preto e branco, como em uma película da época. Os adultos eram chamados "os grandes", não existia medo algum em relação a ladrões (provavelmente porque não tinha nada para roubar!), nunca senti constrangimento algum em relação à pobreza. Aquela era uma época onde todo mundo era pobre, nos anos 50 ainda não era palpável a distinção de classes sociais. Por isso que, por incrível que possa parecer, a minha infância foi feliz apesar de ter vivido em um momento tão conturbado para o meu país. Lembro, por exemplo, que, para dar uma ideia de muita confusão, a expressão comum era:" foi um 48". Descobri muito depois que isso se devia às enormes convulsões sociais que se sucederam ao atentado a Palmiro Togliatti, na época Presidente do Partido Comunista Italiano, em 1948. Estou falando aqui de fatos que nem mencionei na minha fala primária, porque obviamente, não dá pra contar em detalhes o dia a dia de uma vida. Me limitei a pincelar fatos marcantes para mim e que achei que pudessem ser, de qualquer forma, interessantes para explicar o ser que me tornei, as decisões que tomei, o rumo que imprimi à minha vida. Como é que posso explicar a sensação de, aos 19 anos, ter conseguido comprar meu primeiro carro, um velho Fiat 500, eu que, aos 10 anos, usava calças curtas com um reforço nas nádegas pra durar mais tempo??!!

Divorciei. Falar em divórcio hoje é fácil, quase banal, mas em um tempo relativamente recente, a coisa era bem diferente. Em um primeiro momento existia a "separação" e já não era corriqueira. A mulher "desquitada" era vista com desconfiança pela sociedade e incluída entre as pessoas "mal faladas". Eu me separei quando a legislação Italiana ainda não tinha estabelecido, nos termos da Lei, a vigoração da figura do "divórcio". Participei do plebiscito que legitimou essa figura jurídica, mas não escapei da reprovação e do julgamento de uma parte da população.

Imortalidade (X).

Como o conceito básico da "imortalidade" é a negação da inelutabilidade da morte, tal pensamento tornou-se objeto do fascínio da humanidade. Todos os grandes filósofos da antiguidade se debruçaram sobre o tema, a maioria deles, tal como Platão, Aristóteles, Sócrates, escreveram sobre a imortalidade da alma senão do corpo. Segundo Homero, na Ilíade, por exemplo, a figura de Aquiles consegue a fama "eterna" através de suas gestas e desperta até a inveja dos Deuses por conseguir tal proeza mesmo tratando-se de um mortal. Em tempos mais próximos essa discussão trouxe os pensamentos de outras ilustres mentes, entre elas gostaria de lembrar: Wittgenstein, que escreve no "Tractatus" - "se não definirmos a eternidade como infinita duração temporal, mas intemperalidade, então a vida eterna pertence “aqueles que vivem o presente".

Gênesis 2: 8-9 diz:

 

E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da bando do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimentos; e também a árvore da vida no meio do jardim e da árvore do conhecimento do bem e do mal.

 

Interpretação: 1 - plantar uma árvore significa que cada um de nós tem que plantar a sua semente espiritual;

Interpretação 2 - ter um filho = compartilhar o seu conhecimento;

Interpretação 3 - escrever um livro = escrever a sua história.

Com esse trabalho, pretendo concluir as tarefas designadas a cada ser humano para se tornar um homem: busco o meu crescimento espiritual desde que iniciei a ter noção do meu existir, tentei passar todo meu conhecimento e a minha experiência a meu filho e a todos que vivem ao meu redor, e concluo contando a minha história com o propósito que possa, de qualquer forma, contribuir para o desenvolvimento de outras pessoas.

Então, inventei os meus trabalhos. Como corolário a esse meu comentário queria me valer do texto da música "My Way" na interpretação inesquecível de Frank Sinatra: "e agora o fim está próximo, e, portanto, encaro o desafio final, meu amigo, direi claramente, irei expor o meu caso do qual estou certo. Eu tenho vivido uma vida completa”.

Viajei por cada e todas as rodovias. E mais, muito mais que isso. Eu o fiz do Meu Jeito!!

Carpe Diem e o Memento Mori

"Ela pereceu em um acidente.... um outro amigo adoeceu de uma doença terminal"

 

Essas duas expressões, em aparente contraste, podem, dependendo da interpretação, serem vistas como as duas faces da mesma moeda. Carpe Diem, a mais famosa frase em latim de um poema de Horácio, cujo significado é "curta o momento", "viva o agora", é um convite ao gozo, ao desfrutar pleno e total da vida em todas as suas belezas, mas no "imediato". A outra citação é encontrada em certas ordens religiosas católicas. Ali, os monges, ao se encontrarem nos corredores do mosteiro, costumam dizer uns aos outros: "Memento Mori", uma expressão latina que significa "lembre-se de que vai morrer". A saudação funciona como um exercício espiritual de aceitação da morte, vendo-a como uma consequência da própria vida. Tanto é que segundo uma vertente filosófica, nascer é o ponto de partida do tempo que inexoravelmente nos levará à morte. Cada dia vivido nos aproxima do fim. Não dá para escrever sobre a "morte" de forma resumida. Esse tema, com certeza, seria merecedor de uma monografia específica. A vida e a morte, entrelaçadas de forma indissolúvel e ao mesmo tempo com conceitos tão opostos serviram de inspiração a todos os grandes pensadores e filósofos desde o surgimento da humanidade. Para tanto acho mais interessante citar frases e sentenças relacionadas com tal mistério:

 

"A serenidade e a vitalidade da nossa juventude baseiam-se em parte no fato de que nós, ao subirmos a montanha, não vermos a morte, pois ela encontra-se do outro lado da encosta". (Schopenhauer)

 

Outras citações:

Schopenhauer : "a morte é a musa da filosofia"

Sócrates : definiu a filosofia como "preparação para a morte".

Epicuro : "A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo".

Nietzsche: "A morte covarde pode ser definida, em poucas palavras, como a experiência da morte como um acaso, cujo efeito imediato é o desejo de morrer. Nesse caso, deseja-se morrer porque se morre. A falta de longevidade da vida basta para que se pregue o abandono da mesma. Aqueles que pensam assim, dirá Nietzsche, são os pregadores da morte".

Heidegger: "homem é um "ser que caminha para a morte"

Michel de Montaigne : "Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade"

Freud : "Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte."

Tolstoi: "O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo."

Victor Hugo: "Morrer não é acabar, é a suprema manhã."

Voltaire: "Aproximo-me suavemente do momento em que os filósofos e os imbecis têm o mesmo destino."

Brecht: "Temam menos a morte e mais a vida insuficiente."

Sêneca: "Nisto erramos: em ver a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte."

Kant: "Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena..."

Nietzsche: "O gosto de minha morte na boca deu-me perspectiva e coragem. O importante é a coragem de ser eu mesmo."

Nietzsche: "A recompensa final dos mortos é não morrer nunca mais."

Francis Bacon: "Os homens temem a morte, como as crianças temem a escuridão."

Corneille Pierre: "Cada instante da vida é um passo para a morte"

Montaigne: "Quem ensinasse os homens a morrer estaria ensinando-os a viver”.

Kafka: "Se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte."

Leonardo da Vinci: "quando eu pensar que aprendi a viver, terei aprendido a morrer."

Sempre gostei muito de viajar

Quando eu falo das minhas andanças mundo à fora, estou me referindo basicamente à década de 70. Portanto, neste período os países que visitei, como afirmei já em outro trecho desta análise, viviam um período de estabilidade política e econômica excepcional, isso devido em grande parte à forte liderança nacional de seus chefes de Estado. Essa pax social se refletia claramente na segurança e tranquilidade com a qual os turistas do mundo inteiro circulavam e se relacionavam com as populações locais. Digo isto porque hoje repensando as minhas excursões noturnas nos mercados árabes ou na periferia de cidades do Quênia, parece muita irresponsabilidade de minha parte, mas a sensação de segurança na época era total. Estes países estavam em franca expansão econômica e o turismo representava um setor extremamente pujante. Demonstração disto era a construção de novos aeroportos nas cidades de Tunis, Hammamet, Monastir Skanes e na Ilha de Djerba. Luxuosos hotéis surgiam como cogumelos na costa do Quênia, que, na época, era considerada "A Suíça da África".

Apesar disso, acho interessante relatar o meu pensamento daqueles momentos que acredito possam servir para melhor entender a visão de um branco Europeu em relação aos Africanos: conversando com minha mulher sobre o hipotético relato às autoridades policiais de um hipotético acontecimento delituoso, me dei conta que não teria condição de descrever ou reconhecer um suspeito porque, para mim, os negros eram todos iguais!! Não conseguia enxergar diferenças somáticas entre eles!! Tenho receio de expressar esses pensamentos porque acredito que possam ser interpretados como uma forma de racismo ou de qualquer maneira uma ideia de superioridade racial, mas tenho certeza que não era esse o meu pensamento.

Outra coisa que gostaria de frisar é o fascínio que exercia sobre mim a ideia de viagens para lugares exóticos e totalmente fora dos roteiros convencionais da época. A cidade onde eu morava, na Itália, encontra-se em uma zona altamente turística, destino de muitos italianos e estrangeiros em busca de sol e praias aconchegantes repletas de bares, hotéis, restaurantes e toda sorte de mordomias que fazem da Riviera Lígure um destino eclético para turistas de todas as classes. Mesmo levando em consideração que essa era a minha habitual residência e, portanto, natural, a vontade de conhecer outros lugares, a Itália e a Europa como um todo, ofereciam um leque variado de opções, mas não condiziam com o meu espirito de aventura e o meu desejo de algo muito diferente.

Quando eu era menino-garoto não existia internet, computador. Pouquíssimas pessoas tinham acesso econômico a TV, filmes e viagens, portanto o único meio de sair do nosso mundinho era através da leitura.

Ler não era uma obrigação escolar, mas um jeito de soltar a fantasia e de adquirir conhecimentos.

Padrões africanos. Com esta expressão, não quero ser, de forma alguma, ofensivo e considerar os "padrões africanos" inferiores aos europeus. Quero simplesmente frisar "diferenças". Porém, sem levar na devida consideração estas diferenças, não é possível entender a alma da África. A África é "primitiva" na sua mais pura essência, os inúmeros animais que compõem a fauna africana não recebem comida dos tratadores, como acontecem nos nossos zoológicos. Lá impera a mais autêntica "lei da selva": matar ou morrer.

A ação do homem se limita a interferir exclusivamente para conter as ações de outros homens, tipo: caçadores ilegais ou contrabandistas de animais e de marfim.

Portanto, a ideia de vida e morte permeia diferentemente da nossa a cultura africana.

Para um turista europeu ou americano é muito difícil aceitar que saindo do extremo conforto e luxo de um hotel, pode-se esbarrar em uma fera ou uma serpente mortal. Difícil entender que mesmo com todo o dinheiro do mundo uma pessoa é picada por uma Mamba-negra. A Muamba-negra (Dendroaspis polylepis) é uma das cobras mais venenosas do continente africano. Ao contrário das outras espécies do mesmo género, vive a maior parte do tempo no solo, mas pode escalar árvores com facilidade. Sua dieta consiste de pequenos mamíferos e aves. Tem um bote muito rápido e seu veneno nefrotóxico causa paralisia. Com o veneno da Muamba-negra a vítima pode falecer em menos de 20 minutos. Sem o tratamento é mortal em 100% dos casos. O hospital mais próximo encontra-se a centenas de quilômetros de distância.

Na África, o homem, querendo ou não, é obrigado a voltar à sua ancestralidade. O seu relacionamento com o tempo e a natureza não são mais ditados pelas regras das civilizações, mas pelos "padrões africanos".

Cassinos

Ao meu ver, este capítulo nos oferece a possibilidade de análise, sob o viés psicológico, do narrador. Ao invés de conversar sobre o conteúdo específico da fala e dos fatos narrados, acho interessante nos debruçar sobre o que pode ser extraído em relação ao caráter do personagem desta saga. Obviamente esta tarefa apresenta um grau de dificuldade maior devido ao fato que o "narrador" e o "analisador" são a mesma pessoa, quer dizer: "Eu".

Mas, acredito que isto seja possível pelo fato que o "analisador" está fazendo um julgamento do caráter do "narrador" com o auxílio do tempo que, pelo menos em teoria, deveria ter servido para acrescentar experiência, tolerância e uma visão da vida mais ampla e realista.

Começamos com o fato básico da admissão do relator em se declarar como um jogador contumaz, mas não um viciado, não um jogador compulsivo, que não consegue colocar freios na sua paixão ao ponto de colocar em xeque a sua condição básica de subsistência. É bem verdade que em determinados momentos a sua paixão o leva a excessos e a rompantes que fogem a "normalidade", mas nada que tenha comprometido definitivamente a sua estória de vida. As dificuldades para as quais ele passa em determinados momentos, poderiam ter origens completamente diferentes como uma doença, um furto, ou um acidente qualquer, mas nada capaz de provocar efeitos catastróficos duradouros. Muito pelo contrário, normalmente ele se permite a aproximação a zona de perigo, com um capital precedentemente estabelecido e que representa um extra às suas necessidades básicas.

Ao mesmo tempo podemos relevar, nesta sua paixão, o gosto pela aventura, pelo não conformismo, pela necessidade de adrenalina, mas sempre dentro de uma "medida de segurança" que o diferencia dos excessos dos viciados e dos inconsequentes. Este acometimento, porém, não exclui a intensidade da entrega no cumprimento da "tarefa" estabelecida. Sempre, em toda minha vida, quando encaro um desafio o faço com todo meu ser, não poupo esforços nem energias para alcançar os objetivos que me proponho. Dentro de um Cassino me inebrio com o típico barulho da roda da "roulette" ou das "fichas" movimentadas pelos "croupiers". Respiro a plenos pulmões a atmosfera de glamour e da imponderável e caprichosa vontade da Deusa Fortuna que parece abençoar ou condenar os atores que naquele exato momento estão no palco. Quem consegue captar o espírito da coisa encara aquele momento como uma diversão, cara, mas por sempre uma diversão por si só. Ganhar ou perder torna-se de secundária importância em relação ao prazer da emoção produzida pelo resultado do acaso.

Voltando a tentar entender "o personagem ", podemos encontrar ali algumas características de um empreendedor. Explico-me melhor: avaliação de riscos, a necessidade de capital, o comprometimento, o plano de negócios, a persistência, a liberdade de escolhas e a autoconfiança. Todas estas características necessárias para um jogador são as mesmas que podem fazer um empreendedor de sucesso.

Caso de emergência:

Abordo dos navios, um dos oficiais tem "noções" de medicina, e, em caso de necessidade, é ele que orienta e administra os necessários cuidados. Mas não esqueçam que eu falei "noções". Então, meu pai, por exemplo, em uma travessia entre Itália e Estados Unidos, sofreu uma ulceração no olho esquerdo, provocada por um corpo estranho que ficou alojado no interior do olho. Não sei explicar direito as causas e as consequências, mas, em decorrência de um procedimento errado, quando o navio chegou em Norfolk (Oregon), meu pai teve que ser internado em um hospital, onde, graças aos necessários cuidados e à competência da equipe médica, não perdeu o olho, Só...... a visão do olho esquerdo!

Meu pai ficou internado 6 meses e ele não falava inglês. Um médico se sensibilizou com a situação e colocou meu pai em contato com uma família americana de origem italiana. Assim meu pai pôde se comunicar com alguém e desse contato, nasceu uma linda amizade. Esta família tinha feito fortuna nos U.S.A e eram proprietários de uma empresa importante. Para dar uma ideia, eram sete os componentes dessa família e tinham seis carros!!! Isso quando na Itália a propriedade de um carro era ainda um sonho.

Em outra parte desse meu trabalho, eu já fiz referência à imponderabilidade do "se". Digo isso porque essa família ofereceu a meu pai a possibilidade de permanência nos E.U obviamente, com a ida minha e de minha mãe, para lá. Então, o que teria sido da minha vida "se" meu pai tivesse aceito esse convite? Eu tinha na época uns dez anos. Além de completamente diferente a minha estória teria sido uma estória de sucesso ou eu teria morrido lutando no Vietnã? Só Deus sabe!!!

 

Aposentadoria:

Falei em outro trecho que aproveitei uma brecha na Legislação Trabalhista do meu país, e que, a aposentadoria precoce daqueles que se encontravam na minha situação foi motivo de um escândalo nacional e de profundas mudanças na proporção do cálculo desse direito. Para dar um exemplo: se alguém tivesse um salário de, digamos, 100, o cálculo era feito assim: 80% fixo e 20% em relação ao número de anos trabalhados. Um mês depois que me aposentei veio a mudança: 20% fixo e 80% relacionado ao tempo de serviço! Uma mudança e tanto, não é???

 

Consciência ecológica:

Aqui podemos abrir um vasto leque de considerações que hoje fazem parte de acaloradas discussões sobre ética e costumes. No mundo inteiro surgiram campanhas contra o uso de casacos de pele, sobre a exploração de animais em todo o tipo de pesquisa, desde o forçado método de engorda de variadas espécies até a proibição ou limitação do uso dos mesmos em pesquisas científicas.

Mas eu queria ir além: partindo do pressuposto que não se trata de "seres humanos", então tudo ou quase é permitido, o meu pensamento me leva ao tratamento reservado aos Judeus pela Alemanha nazista, ou antes mesmo aos escravos de outrora! Muitas vezes li e ouvi considerações desse tipo: "não se tratava de seres humanos!!". Tratava-se, pelo contrário, de seres desprezíveis, no caso dos Judeus, ou de simples "peças", sem a mínima importância e cuja morte ou sofrimento não pertenciam à esfera dos sentimentos além daquele de posse. Digo isso porque, naquela época, eu matava friamente e sem algum peso na consciência aqueles bichos e a minha única preocupação era de fazê-lo em escala industrial. Hoje, porém, vejo com calafrios as semelhanças entre a minha caixa e as câmaras a gás dos campos de extermínio!

O que foi uma característica da minha vida:

Encontramos aqui uma das características principais do nosso personagem-narrador: a busca constante de oportunidade de negócios, não necessariamente aquelas facilmente reconhecíveis ao olhar atento do investidor. Mas aquela procura de novidades no mercado, na verdadeira invenção das mesmas, criando-as quando não existem. Não é por acaso que fui o primeiro criador de visons da região, que abri a primeira agência de casamentos da região, a primeira sala de videogames da cidade!!!! Não fui atrás de uma padaria bem localizada, de uma loja horto-frutícola em um bairro em surgimento, de um açougue lá onde o mercado indicava uma demanda. Obvio que isso foi basicamente pela minha total falta de conhecimentos desses negócios tradicionais, mas as minhas escolhas juntaram, mais uma vez, o meu espírito aventureiro com a vontade de inovar, inventar, tentar o que, à primeira vista, poderia parecer impossível! Aliás, por muito tempo, na cabeceira da minha cama, tinha um quadro com o seguinte leme: "o impossível não existe; quando um homem faz dessa asserção o seu -Acredito-, só Deus pode dobrar a vontade dele".

No fundo tratava-se do seguinte raciocínio: se precisava embarcar em uma empreitada sem nenhuma base frente à concorrentes espertos, melhor seria buscar uma atividade sem concorrentes!!

 

Contrariamente ao Brasil, aonde tem mais mulheres do que homens:

Como pode-se verificar através de consulta ao censo demográfico nacional.

Empreitada:

Quando falo de sucesso, não estou me referindo ao efetivo alcance do aparente objetivo primário: o casamento. Isso, só consegui realizar em uma oportunidade, mas, estou falando de estabelecer contatos entre indivíduos que, por tendo em comum características que indicavam uma possível sintonia entre eles, não tinham, por timidez, falta de conhecimentos comuns ou qualquer outro motivo. E, nesse caso, eu fui Cupido de várias aproximações.

E ele me chamou para trabalhar com ele:

Nessa época da minha vida eu já estava divorciado e aposentado, portanto não tinha responsabilidade econômica alguma, só persistia em mim, aquela ânsia de viver, aquele espírito de aventura, aquela comichão própria das almas penadas. A possibilidade de explorar novos caminhos foi a principal mola para deixar o certo pelo desconhecido.

Problema de fiscalização e de impostos:

Para o nosso declarante, como veremos melhor mais para frente. o conceito de honestidade é bastante elástico. O respeito às leis passa por um crivo pessoal e por uma "interpretação" certamente não ortodoxa.

Clima tropical:

Estou me referindo ao Nordeste brasileiro, zona da minha residência.

Uma visão de negócio:

Mais uma vez aparece a buscar pelo novo, pela "criação" do business.

Não vingou mais do que tanto:

Assistindo a uma palestra no SEBRAE, descobri que, estatisticamente falando, um empresário vai à falência pelo menos 3 vezes antes de alcançar o sucesso.

Montei uma escola de capoeira:

Nos primeiros dois anos de vida no Brasil, me envolvi em três atividades diferentes: arte, escola de capoeira e anexo academia de musculação, e casa de shows.

Então, 4 lojas alugadas e uma de propriedade:

No início desse depoimento, falei que fiquei 25 anos sem voltar para a Itália. Pode parecer absurdo para quem nos primeiros 15 anos enxergava esta terra como uma árvore cheia de frutos maduros, só esperando alguém para colhe-los, mas foi justamente o resultado positivo das minhas investidas no mundo dos negócios que não me permitiu me afastar por um tempo maior das "minhas criações". Como sempre, depois do período das vacas gordas, vem aquele das vacas magras, e ali, a motivação da falta de tempo virou falta de recursos.

E acho que, bem ou mal, me dei bem:

Apesar de me considerar uma pessoa de cultura média graças às minhas leituras e ao meu interesse pelos mais variados assuntos, percebi que me faltava aquele carimbo oficial de pessoa esclarecida que pudesse participar de conversas sobre qualquer assunto sem passar vergonha. E este foi o incentivo principal que me impulsionou a voltar a estudar. Estou muito agradecido com este País que me deu esta oportunidade e me abriu as portas para o mundo acadêmico, me permitindo entre outras coisas, o convívio com pessoas que admiro muito e que contribuíram enormemente com o meu crescimento intelectual, além de fazer novas amizades e estabelecer relações com mentes brilhantes e espíritos iluminados.

Neste trecho do depoimento faço uma análise completa de um momento singelo da minha vida. Contei os fatos com riqueza de detalhes para que seja possível, à quem interessar, verificar a autenticidade da narrativa. Inicio fazendo uma introspecção pessoal sobre o conceito de "honestidade". Obviamente não espero unanimidade nem consenso com as minhas teorias, simplesmente coloco em evidência os fatores que me permitiram encarar essa minha confissão sem morrer de vergonha. Assumo plenamente a responsabilidade moral dos acontecimentos narrados, mas, dentro do contexto da análise da minha vida, me sinto confortável para encarar o juízo além. Não serei o primeiro nem o último homem que frente à uma oportunidade decidiu colocar a consciência do lado e aproveitar o momento. É notório que, em determinados momentos históricos, como guerras por exemplo, alguns indivíduos enriquecem enquanto outros caem em ruínas. Se, para conseguir os próprios objetivos, precisa se equilibrar sobre o fio da navalha, eu decidi aprender a arte do malabarismo. Contudo, analisando friamente os fatos, não me sinto merecedor da reprovação geral. Não matei, não fui responsável direto da desgraça de ninguém, não coloquei em risco nenhuma instituição que pudesse, mesmo de forma reflexiva, prejudicar a sociedade como um todo. Como já disse, os parceiros dessa empreitada não pertenciam ao mundo do crime, nenhum fato que pudesse fugir ao controle seria causa de desgraça para ninguém a não ser eu mesmo. Dito isso, não quero aqui me justificar pedindo, mesmo o perdão moral da sociedade, até porque, no mínimo, para pedir o indulto precisaria se arrepender do delito cometido, e, não é o meu caso!! Acredito simplesmente que os fatos narrados sirvam para corroborar quanto afirmado em relação à minha personalidade: busca de adrenalina, faro para oportunidades, capacidade de avaliação de riscos, busca da inovação. Não me considero a pessoa mais honesta do mundo, mas também não aceito o estigma de "delinquente". Demorei bastante até me decidir contar esse episódio por receio do julgamento moral, mas cheguei à conclusão que, se omitisse esse fato, deixaria incompleto e menos verdadeiro esse meu testemunho. Não estou incentivando ninguém a seguir meu exemplo, até porque como afirmei, em relação à comportamentos heróicos ou de vilania, tudo se reduz à "momentos", na maioria dos casos, irrepetíveis. Aqui, por exemplo, precisa-se considerar o "momento" político da França, a legislação de gente na Itália e na França, a relativa proximidade da minha cidade com a divisa, e não último, a minha disponibilidade de correr riscos mesmo que calculados. Quando, na parte final da minha fala, uso a expressão "cereja em cima do bolo", não quero enaltecer esse meu feito como uma coisa de que eu possa me orgulhar, mas simplesmente queria evidenciar que, dentro de uma vida "normal", sem episódios dignos de passar a História, alguns momentos fogem à banalidade ou para melhor dizer, à "normalidade".

 

Pós-escrito

 

Alguém disse um dia que a vida é como uma viagem de trem. A cada estação sobem novos passageiros que entram a fazer parte da nossa estória, outros descem.

No meu caso, decidi fazer uma parte dessa viagem de avião, assim, de repente, deixei para trás um grande número de pessoas que aqui elenco como um simples exercício de memória.

Cada um deles seria merecedor de um capítulo dessa biografia e com certeza seria enriquecedor, mas faltaria espaço nesse trabalho. Por contra, a partir do desembarque outras pessoas começaram a interagir comigo. A maioria dessas pessoas pertence à atualidade e não são exclusivamente conhecidos meus, eles podem muito bem pertencerem à esfera de amigos comuns. Por isso, considerando que não gosto de falar da vida alheia me limito a lembrar os nomes dos "passageiros" italianos: Cerisola Aldo, Sergio Trinchieri, Giuseppe Parodi, meus primos Elvio, Mauro e Roberto, (esse último foi para mim, como um pai). Oreste Gagliardi, Vittorio Bovolo, Ranieri Giancarlo, Paolo Seccafen, Piccone Lorenzo, Ermanno Chiavacci, Frizzi Sergio, Fiorenzo Fernandez, Angelo Bertolotti, Bruno Broggi, Ettore Peirano, Bruno Maggiolo, Domenico Trevisan, Mauro Mora, Cornelio Silvio, Minetti Carlo, Aonzo Niccoló, Gaetano, Enrico, Maurizio Bovero, Mauro Povigna, Marcello Bonvicini, Roberto Cailani, Pollero Giuseppe, Egidio, Rossello Alberto, Daniele Tiscione. Entre as amigas: Fernanda Perotti, Frida Pantano,  Grazia Baiguini, Marisa Mora.

PS: os nomes sublinhados desceram do trem.

 

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