Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 20 Vol. 2 - 2018 - julho/dezembro



Suicídio de indígenas em Roraima: cultura e intervenção[1]

 

Pamela Alves Gil – UFRR[2]

 

 

Resumo: Trata-se de abordar o fenômeno do suicídio, notadamente no contexto indígena, com vistas a contribuir para as reflexões sobre o suicídio no Brasil. Destaca-se um projeto de intervenção voltado para a prevenção ao suicídio entre jovens indígenas de Roraima, região amazônica do Brasil. Com este propósito analisa-se um caso de suicídio infantil. O suicídio vitima sobretudo crianças e jovens macuxi do sexo masculino, ocorrendo geralmente por meio do enforcamento, dentro de casa ou no entorno, em árvore próxima, tanto em situação de isolamento como na presença de familiares. A problemática do suicídio, que é multifatorial, envolve aspectos tanto psicológicos, psicopatológicos, sociais, históricos, como culturais e mitológicos.

Palavras-chave: Suicídio; Indígenas do Brasil; Projeto de Intervenção.

Abstract: It is a question of addressing the phenomenon of suicide, especially in the indigenous context, in order to contribute to the reflections on suicide in Brazil. An intervention project aimed at suicide prevention among young indigenous people from Roraima, the Amazon region of Brazil, stands out. For this purpose a case of child suicide is analyzed. Suicide victimized mainly male Macuxi children and young people, usually occurring by hanging, indoors or in the surroundings, in a nearby tree, both in isolation and in the presence of relatives. The problem of suicide, which is multifactorial, involves aspects both psychological, psychopathological, social, historical, as well as cultural and mythological.

Keywords: Suicide; Indigenous people of Brazil; Intervention Project.

Introdução

            Este artigo, cujo tema é pouco explorado pela literatura científica atual, aborda o fenômeno suicida no contexto indígena da Amazônia brasileira, com vistas a contribuir para as reflexões sobre o suicídio no Brasil. Ao iniciar-se a discussão, trata-se de um estudo exploratório documental e bibliográfico, com ênfase qualitativa, de perspectiva psicológica e etnográfica, por meio da análise de estudos científicos, mitos e textos literários. O método adotado consistiu em análise de conteúdo da representação do suicídio em referências de diversas culturas, tendo como fonte a literatura científica disponível sobre o tema, além de anotações de diários de campo.

            Analiso o material disponível, tendo como base teórica a abordagem psicanalítica, complementada pela perspectiva da antropologia. Neste sentido, eu tomo como referencial teórico as ideias do psicanalista Georges Devereux (1908-1985), que articula a Psicanálise e a Etnologia, em uma relação de complementariedade (Devereux, 1985). E, para ilustrar a discussão, apresento uma experiência de intervenção em psicologia e saúde indígena centrada no acompanhamento de pessoas macuxi de Roraima.

            O termo suicídio, etimologicamente, deriva do latim (sui = de si próprio; caedere = matar). De acordo com José Manoel Bertolote (2012), a palavra “suicídio” foi criada pelo médico inglês Thomas Browne, que, em 1643, elaborou o termo em grego, a qual foi traduzido, em 1645, para suicide, em inglês, palavra que foi adotada entre as línguas ocidentais.

            Este assunto é complexo, uma vez que o fenômeno suicida é multidimensional e envolve aspectos tanto psicológicos, psicopatológicos, sociais, históricos, como culturais e mitológicos. Considera-se o suicídio como um fenômeno universal, o qual é descrito nos mitos e na literatura e suscita um dilema para as religiões e sistemas jurídicos. No entanto, atualmente, evoca um fenômeno psicopatológico, como indício de transtorno mental, relacionado notadamente a um quadro de depressão. E, gradativamente tornou-se, como enfatiza a Organização Mundial da Saúde (Who, 2008), um problema de saúde pública, cuja prevenção não é uma tarefa fácil.

            Neste sentido, no Brasil foram registrados 55.649 óbitos por suicídio no período de 2011 a 2015, o que corresponde a uma taxa geral de 5,5 por 100 mil habitantes. Os meios mais utilizados para cometer o suicídio foram o enforcamento (61,9%), seguido por intoxicação exógena (17,7%) e uso de arma de fogo (8,7%). Observou-se as maiores variações da taxa, em número de óbito por 100 mil, no estado de Roraima, sendo de 5,1 por 100 mil habitantes no sexo masculino e, no sexo feminino, de 0,9 por 100 mil habitantes (após o Distrito Federal). Destaca-se a vulnerabilidade pelo risco de óbito por suicídio na população indígena brasileira, o que corresponde 15,2 por 100 mil habitantes, sendo 23,1 por 100 mil na população masculina e 7,7 por 100 mil na população feminina, e notadamente a condição dos adolescentes, pois  44,8% dos suicídios foram cometidos pela faixa infantojuvenil, entre dez e 19 anos (Ministério da Saúde, 2017).

            A literatura mundial reflete esse fenômeno em muitos romances. Um desses representantes, Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), deu visibilidade ao fenômeno ao escrever Os Sofrimentos do jovem Werther (1774), personagem que se suicida devido a um amor não correspondido, o que provocou o fenômeno Werther, que se refere ao fato de muitos jovens sentimentais dessa época cometerem suicídio após a leitura desse romance. No romance, Goethe e Werther se confundem, pois criou o romance a partir de uma história verdadeira no momento em que vivenciava a própria rejeição pela amada. Neste sentido, o autor descreve o desejo de se matar como “uma raiva interior, desconhecida”, que ameaça dilacerar o peito e que sufoca (Goethe, 1990: 314-315). Goethe, provavelmente, identificou-se com Jerusalém, jovem que se matara, tomando-lhe emprestado o motivo para sua história de amor. “Por meio dessa fantasia, protegeu-se das consequências de sua experiência” (Freud, 1897/1996: 306).

            De fato, o médico psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), enfoca em vários de seus textos essa temática. Sem pretender aprofundar a perspectiva freudiana, cito notadamente a discussão sobre a ocorrência do suicídio entre jovens, “época da vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar seus vínculos com a casa dos pais e com a família”, sem ter o apoio da escola, que substitui os traumas (Freud, 1910/1996: 243). Para Freud, o recalcamento de impulsos poderia produzir melancolia (1897), que implica em depressão profunda, cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e diminuição dos sentimentos de autoestima, culminando em expectativa delirante de punição (Freud, 1917/1996: 250); nesta condição, um investimento de objeto é substituído por uma identificação.  No suicídio “o ego é dominado pelo objeto”; é “capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto” (Freud, 1917, 1920, 1996: 257) Em um caso de homossexualidade feminina, Freud (1920/1996) analisa a tentativa de suicídio de uma jovem, cujo ato é cometido quando seu pai descobre o caso e a companheira tenta encerrar a ligação, Como Werther, a jovem desespera-se em função da perda do ser amado. Freud, porém, interpreta o ato como determinado por: “a realização de uma punição (autopunição) e a realização de um desejo” (Freud, 1920/1996: 173).

            Por outro lado, Albert Camus (1913-1960), enfatiza em O mito de Sísifo, ensaio publicado em 1942, o suicídio como solução para o absurdo. Camus descreve o mito grego no qual Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair devido ao próprio peso. Dessa forma, esse autor considera que “as pessoas se matam porque a vida não vale a pena ser vivida” (Camus, 2010: 22).

            Pela perspectiva antropológica cultural, Bronislaw Malinowski (1884-1942), em obra publicada em 1926, assinala os modos de suicídio utilizados pelos habitantes das Ilhas Trobriands. O ato é praticado por meio do lo'u (atirar-se do alto de um coqueiro) ou soka (pela ingestão de um veneno da vesícula biliar de um peixe) para escapar de situações sem saída, abrangendo o desejo de autopunição por transgressão das regras da exogamia; pedido de vingança pelo insulto público sofrido; um meio de fuga e reabilitação; e queixa sentimental (Malinowski, 2008: .74).

            Do ponto de vista sociológico, Émile Durkheim (1858-1917), em O suicídio, publicado em 1897, considera o suicídio um fato social e propõe uma tipologia do suicídio, sendo que a cada tipo corresponde uma constituição moral determinada: egoísta (caracterizada pela excessiva individuação), altruísta (conduta situada no grupo, como um dever) (Durkheim, 1897: 238) e anômico (estado de desregramento e paixões menos disciplinadas) (Durkheim, 1897: 281), Cada sociedade é predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias (Durkheim, 1897: 15).

            Para Georges Devereux (1961/1996), cada cultura tem seus conflitos típicos assim como suas defesas típicas contra esses conflitos. Os meios utilizados para se suicidar estão ligados à determinação do indivíduo a morrer (Devereux, 1996: 540).

            Com referência a estudos realizados no Brasil, merece destaque o estudo de Roger Bastide (1898-1974) sobre o suicídio do negro. Adotando a tipologia de Durkheim, Bastide considera que o africano escolhe o suicídio sob a forma tanto altruísta como egoísta, como solução para as situações de ciúme, vingança ou de cativeiro, recorrendo aos meios que a natureza lhe oferece, tais como jogar-se na água, saltar de um lugar alto, deixar-se atropelar, mas principalmente enforcar-se ou envenenar-se (Bastide, 2016: 329). Uma cena do filme Vazante exemplifica um outro meio de cometer suicídio adotado por escravos africanos, em ato de desespero por não suportar a tortura e exploração de seu corpo, a vítima engole terra até o sufocar-se (Thomas, 2017). De fato, Bastide concebe o suicídio como uma “interpenetração do psíquico e do social” (Bastide, 2016: 330).

O suicídio indígena no Brasil

            No Brasil, a população indígena corresponde a 896.917 pessoas, distribuída em 305 etnias, que se comunicam por meio de 274 línguas.  (Ibge, 2010). Esta diversidade cultural apresenta um contexto similar, pois, recentemente, tem-se verificado um aumento gradativo de casos de suicídio em diversas etnias no Brasil, como apontam os Relatórios de Violência publicados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), notadamente entre os Guarani Kaiowa, Guarani Nhandeva e Terena (MS); Ticuna. Tucano, Baré, Kanamari, Mayoruna, Cocama, Caixana, Zuruaha, Kulina (AM); Karajá, Paresí e Tapirapé (MT); Katukina (AC); Karajá (TO); Ka'apor (MA); Kaingang (PR); Xukuru (PE); além dos Macuxi, Yekuana, Wapichana e Ingaricó (RR).

            Segundo o Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2016 (Cimi, 2016), houve 106 casos de suicídio em 14 dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), sendo que 74% ocorreram nos DSEI Mato Grosso do Sul (30 casos); DSEI Alto Rio Solimões (30 casos); DSEI Leste de Roraima (dez casos) e DSEI Yanomami (oito casos).

            De acordo com dados do Ministério da Saúde, a taxa de suicídio entre indígenas no Brasil, no período compreendido entre 2011 e 2016, corresponde a 15,2 por 100 mil habitantes, sendo que 48% corresponde a faixa etária compreendida entre dez e 19 anos. O meio mais utilizado é o enforcamento, sobretudo entre os homens, além de intoxicação exógena e uso de arma de fogo. Já as tentativas de suicídio, mais frequente entre as mulheres (69%), correspondem a envenenamento/intoxicação, uso de objeto perfurocortante e enforcamento.

            Entre os Guarani Kaiowa houve 244 casos de suicídio entre 1986 e 1997; e 782 casos de suicídio entre 2000 e 2016, sendo que 20% desses casos correspondem à faixa etária dos cinco aos 14 anos (Cimi, 2016). Sugere-se que o suicídio decorre de “uma explicitação mítico religiosa de uma situação político econômico-social”, em função de falta de terra, necessidades geradas devido ao contato, baixos salários, terra descaracterizada, falta de apoio de políticas de desenvolvimento, marido ausente da aldeia por longos períodos, desintegração da família, desentendimento entre casais, violência sexual e abandono de jovens (Pauletti; Schneider; Mangolim, 1997: 39). Outras possíveis causas, tais como esfacelamento da cultura, exploração econômica, presença de igrejas carismáticas, consumo de bebidas alcoólicas, falta de trabalho, representam valores externos. As formas preferenciais de autoextermínio pela garganta (enforcamento, asfixia e envenenamento refletiria os dilemas do jovem que se mata no momento da mudança de voz ao mesmo tempo em que deve optar por permanecer ou sair da aldeia (Bom Meihy, 1994: 249). O suicida, às vésperas do ato, apresenta-se triste, isolado, revoltado, até que desaparece, sendo depois encontrado pendurado em um galho de árvore ou envenenado. O fenômeno está referido ao âmbito cosmológico e sobrenatural, mítico (Levcovitz, 1998: 21) Os indígenas costumam a explicar o suicídio como resultado de “feitiço”, morte provocada pelo inimigo, que deve ser vingado. O mito da busca pelo Paraíso Terreal, a Terra sem Mal, influencia o modo de ser Guarani, mas não explica os ciclos de fases de suicídio. Na verdade, a história de contato desse povo acarretando a exclusão e não reconhecimento do direito à terra e condições sanitárias precárias somadas ao alcoolismo e violência agravou a vulnerabilidade e o risco de suicídio.

            Por outra perspectiva, os Zuruaha, ou Sorowaha, conhecidos como o povo do veneno, por cometerem suicídio por meio da ingestão do sumo da raiz de timbó (konaha) vivenciam um etno trauma, segundo o antropólogo Gunter Kroemer, pioneiro nos estudos sobre esse povo (Kroemer, 1994: 78). A partir do contato, os Zuruaha perderam suas referências mítico-religiosas, com a perda dos pajés. E Dawari foi o primeiro a tomar o veneno (Kroemer, 1994: 148). Para eles, a existência humana só tem sentido quando se visa o suicídio (Kroemer, 1994: 78). Uma análise de seis gerações, antes do contato com os não indígenas acusou a ocorrência de 122 suicídios (75 do sexo masculino e 47 do sexo feminino). Já entre 1980 e 1985, período posterior ao contato, houve 38 suicídios (18 do sexo masculino e 20 do sexo feminino). Os aparentes motivos podem ser banais, um descontentamento, comentários, fofocas, dessa forma a transgressão de normas como falta de respeito a propriedade alheia é pretexto para alguém recorrer ao suicídio (Kroemer, 1994: 76). Para os Zuruaha, expressar a raiva como o suicídio têm o sentido de autodestruição (Kroemer, 1994: 79). Por outro lado, Dal Poz assinala o ritual autoagressivo; o suicídio acomete predominantemente jovens do sexo masculino com precocidade do sexo feminino, ao atingir adolescentes de 12 anos; podendo ser relacionado aos ritos de passagem, controle da sexualidade, status sociais, expectativas matrimoniais, desentendimentos conjugais (Dal Poz, 2000: 102); sendo uma resposta suicidógena ao luto e à tristeza (Dal Poz, 2000: 114). Na verdade, a ameaça latente do suicídio regula as relações interpessoais (Dal Poz, 2000: 129).

O suicídio indígena em Roraima

            Em Roraima, a população indígena corresponde a 49.637 pessoas (Ibge, 2010) ou 60 mil, segundo o CIR. Neste Estado, podem-se identificar diversas etnias, que vivem de modo tradicional em seu habitat, as quais estabelecem diferentes situações de contato: Yanomami (subgrupos Yanomami, Sanuma e Ninam/Yanam), Macuxi, Ingaricó, Patamona, Wai-Wai, Ye'kuana, Sapará e Waimiri-Atroari e Wapichana, sendo que em várias comunidades da região leste membros de etnias diferentes estabelecem matrimônio.

            Neste sentido, esse artigo enfoca o suicídio de indígenas na Amazônia, no estado de Roraima, notadamente entre os indígenas Makuusi (Macuxi), que se autodenominam Pemonkon (Raposo, 2008), termo que significa gente, pertencentes ao tronco linguístico Karib. Os Macuxi, por sua vez, somam 30.295 indígenas aldeados no Brasil, pois eles compartilham seu território tradicional, que engloba áreas de lavrado (savana), serras e floresta, entre regiões pertencentes tanto ao Brasil como à República Cooperativista da Guyana.

            Atualmente, os Macuxi vivem em contato permanente com a sociedade envolvente, conservando as tradições, porém submetidos à economia regional. Por outro lado, os Macuxi compõem agrupamentos de famílias mistas com outros povos da família linguística Karib, os Ingaricó; os Taurepang e Patamona; e mesmo com os Wapichana, (de família linguística Aruak), cujos descendentes costumam se autodenominar jocosamente “macuchanas”.

            No entanto, o cenário tem transformado-se, uma vez que verifica-se um aumento de casos de suicídio entre as pessoas macuxi de Roraima, notadamente entre crianças e jovens, de ambos os sexos, moradores de diversas comunidades, tanto aquelas isoladas, localizadas nas serras, como aquelas de fácil acesso, o que gera angústia na população indígena (Gil, 2006). Avaliarei os dados sobre o suicídio em Roraima entre 1995 e 2005 ao abordar minha intervenção em saúde nas comunidades indígenas. No momento, avalio a ocorrência de suicídios de indígenas nesse estado entre 2006 e 2017, a partir de dados revelados por relatórios especiais, “Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil , entre 2006 e 2016, elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário, e Relatório Anual de Gestão. Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste de Roraima, que traz dados de 2011 a 2017.

            Entre 2006 e 2010 não houve referência a casos de suicídio em Roraima (Cimi, 2006-2007; 2008; 2009; 2010). Por outro lado, em 2011, assinala-se casos entre macuxi, ingaricó e wapichana, citando-se um wapichana de 15 anos e destacando-se três macuxi entre 22 e 24 anos (Cimi, 2011); já outro relatório assinalou um caso de um homem macuxi de 35 anos que suicidou-se por enforcamento (Dsei-Leste, 2016). Em 2012, verificou-se cinco homens macuxi entre 17 e 42 anos, predominando o enforcamento, com um caso de disparo de arma de fogo (Dsei-Leste, 2016). Porém, para o CIMI, teria havido um outro caso de um macuxi de 18 anos nesse mesmo ano (Cimi, 2012). No ano de 2013, três casos de homens macuxi, entre 24 e 31 anos, todos por enforcamento, são assinalados (Dsei-Leste, 2016). Em 2014, por outro lado, houve seis casos, sendo quatro macuxi, entre 14 e 37 anos, e dois wapichana, de 15 e 26 anos, predominando o sexo masculino, três por meio de enforcamento, um por disparo de arma de fogo e dois por meio não especificado. A mais jovem foi uma adolescente macuxi  de 14 anos, por enforcamento (Dsei-Leste, 2016). Em 2015, por sua vez, houve um aumento de casos, verificando-se 11 casos, sendo seis wapichana, entre 13 e 21 anos, e cinco macuxi, entre 12 e 72 anos, com predominância masculina, todos por meio do enforcamento. Entre os macuxi, houve os casos mais jovens, um menino e uma menina, ambos de 12 anos (Dsei-Leste, 2016). Em 2016, houve novamente 11 casos, sendo seis mulheres e cinco homens, sete macuxi, entre 14 e 35 anos três wapichana, entre 15 e 46 anos. e um ingaricó de 19 anos, todos por enforcamento. Os casos da etnia macuxi correspondem a quatro do sexo masculino e três do sexo feminino, entre as quais a mais jovem de 14 anos (Dsei-Leste, 2016).

            Segundo dados do relatório anual de gestão, em 2017, houve oito casos, entre treze e 75 anos, quatro do sexo masculino e quatro do sexo feminino, provavelmente, metade macuxi e metade wapichana, tendo como referência a localidade. A mais jovem, uma macuxi de 13 anos, reside próximo à fronteira (Dsei-Leste, 2017).

            Ao acrescentar dados sobre o suicídio no DSEI Yanomami, referente a casos de suicídio de Yekuanas de Roraima, assinalo que houve sete (2010); seis (2011); três (2012); sete (2013); três (Cimi, 2014); oito (Cimi, 2015); oito casos nesse DSEI  (Cimi, 2016). Os suicídios de jovens entre 14 e 25 anos ocorreram por envenenamento por ingestão de timbó, por enforcamento e um caso por uso de arma de fogo. Algumas mortes são decorrentes de ataques de kanaima (Moreira, 2006: 356).

            Embora esses dados sejam incompletos, fornecem um cenário do suicídio de pessoas indígenas em Roraima nos últimos anos. Destaca-se a ocorrência de suicídios entre jovens de origem Karib, de ambos os sexos, de forma sistemática, tanto de Macuxi, notadamente por enforcamento, quanto de Yekuana, por enforcamento e envenenamento ao tomar extrato de timbó, e a ocorrência mais recente de suicídios entre jovens Wapichana, de ambos os sexos, por enforcamento.

O suicídio de pessoas Macuxi em Roraima à luz da Psicologia: Projeto de Intervenção

            Antes, é preciso assinalar que a atenção à saúde indígena é realizada de forma diferenciada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) por meio de Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), de acordo com a política nacional indigenista. Desde 2007, intensificou-se a abordagem da “saúde mental” no contexto indígena nos DSEI, obedecendo-se a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (Ms, 2007), em função da ocorrência de casos de suicídio, violência e abuso de bebidas alcoólicas nas comunidades indígenas do Brasil (Gil, 2016).

            Minha intervenção em saúde, que foi desenvolvida por um de mais de seis anos, ocasião em que eu trabalhava no Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste de Roraima (DSEI-Leste), como médica e responsável pelo setor de saúde mental e medicina tradicional, favoreceu a observação dos Macuxi nas comunidades situadas em região de serras e de lavrado, tanto em localidades mais isoladas como em áreas próximas de vilas. Do mesmo modo, eu pude conhecer a trajetória desses indígenas em diversos cenários, ao acompanhar os casos diagnosticados como transtornos psíquicos, supervisionando tanto a adesão ao tratamento psicotrópico em área quanto o encaminhamento aos serviços de referência do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Sistema Único de Saúde, ao acompanhar os macuxi em trânsito ou residindo na cidade de Boa Vista, a partir de visitas a Casa de Saúde do Índio (CASAI), visitas a domicílios, participação de reuniões das organizações indígenas, tanto do Conselho Indígena de Roraima (CIR) como da Organização das Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR), como da Pastoral Indigenista da Cidade e de oficinas da Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC).

            Por ocasião de visitas a famílias macuxi, pude constatar a realidade dos problemas socioculturais e históricos e a coexistência de fatores de risco nas comunidades, tais como conflitos e violências. Percebi, na verdade, entre eles uma instalação gradativa da violência no interior da comunidade, decorrente de contatos interculturais desiguais com a sociedade envolvente, baseados em domínio econômico, decorrente da exploração da mão de obra indígena e uso da cachaça, usurpação da terra indígena para garimpo, pecuária, cultivo do arroz e “invasão política e cultural”(Cidr, 1990), acarretando influências nefastas. Nessa perspectiva, o confronto com a modernidade promoveu mudanças no cotidiano da vida comunitária. Esse era o cenário nas comunidades indígenas por ocasião do projeto de intervenção.

            Além disso, nas comunidades, muitas mulheres e meninas eram vitimadas pela violência doméstica, o que é desencadeada pelo abuso de substâncias psicoativas, em especial a bebida alcoólica. Portanto, constata-se a coexistência de fatores de risco de conotação destrutiva nessas comunidades, em especial a existência de casos de abuso sexual contra meninas e adolescentes, praticados por familiares, notadamente por pai, padrasto, avô e irmão (Gil, 2006). Esses fenômenos psicossociais, acrescidos de condições de precariedades quanto a nutrição e violação de direitos, geram sofrimento psíquico individual e coletivo na população, que demanda ajuda.

            Vale destacar que a identidade cultural macuxi se baseia na mitologia de origem, centrada em dois irmãos, pois o sol que se casou com a filha do Jacaretinga, feita de breu branco, teve dois filhos: Inxikiran (primogênito) e Ani'ke”(algumas versões citam Macunaíma e Inxikiran; outras, Inxikiran e Ani’ke; enquanto outras citam Macunaíma e Yawoi) (Diocese de Roraima, 2011: 99-109).

            Esta formação da pessoa macuxi envolve um corpo tradicional que é moldado segundo a mitologia macuxi, sendo valorizado e respeitado. Neste sentido, Anthony Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de Castro enfatizam a construção da pessoa entre indígenas brasileiros, privilegiando a corporalidade individual e coletiva, social e natural, o que articula noções sociais e cosmológicas e reforça a complementaridade com a sociedade (Seeger; Da Matta; Viveiros de Castro, 1979: 9).

            Como, atualmente, o jovem macuxi percebe-se e a seu corpo ao conviver com os valores e necessidades do mundo ocidental, sentindo-se inseguro quanto às mudanças culturais que atingem seu universo cotidiano, sem que esta condição não o leve a apresentar baixa autoestima e conflito de identidade, como pode-se verificar nos casos de suicídio de jovens?

            O jovem vivencia uma crise marcada por lutos pela perda do corpo infantil, perda da identidade infantil e perda da relação dos pais da infância, que tornam-se ambivalentes (Aberastury, 1983: 24). O jovem macuxi, durante esse ritual de passagem, igualmente experimenta um processo de lutos.

            Com o intuito de elucidar os suicídios e entender esse fenômeno, fiz um levantamento dos casos conhecidos pelos membros das comunidades. Porém, há provavelmente subnotificação e inexistência de informação suficiente, uma vez que esses indígenas evitam se expor e tratar abertamente desse tema, como se houvesse um pacto de silêncio. Além disso, nesse período, o atendimento à saúde era precário, pela falta de médicos em todas as regiões, rotatividade das equipes, atraso do envio de materiais e distância entre as comunidades, o que prejudicava o acesso.

            Para a coleta dos dados, elaborei um instrumento, denominado ficha de notificação de violências, que os agentes indígenas de saúde passaram a preencher rotineiramente. Essa ficha permitiu a contextualização da agressão, o que englobava a identificação do agente, da vítima, as circunstâncias da violência, o uso de armas e as providências realizadas pela comunidade (Gil, 2006; Gil, 2016). Com o intuito de conhecer o perfil dos suicidas, foram coletados dados nas comunidades e no setor de Epidemiologia do CIR/DSEI Leste de Roraima.

            Dessa forma, idealizei um projeto de intervenção no intuito de tentar prevenir esse fenômeno, e procedi à coleta de narrativas junto a familiares e amigos do suicida, por meio da autópsia psicológica, além de fazer o levantamento das violências e um inquérito sobre o consumo abusivo de substâncias psicoativas, pois em muitos casos os comportamentos violentos e o alcoolismo são fatores que estimulam as desavenças.

            O projeto foi estruturado a partir das necessidades locais, respeitando-se os valores referentes às culturas da região; e incentivando-se a participação dos agentes tradicionais de tratamento indígena e de lideranças indígenas, notadamente das mulheres da OMIR e professores indígenas. A intervenção acontecia através de palestras e participação a convite de reuniões comunitárias, visando prevenir e alertar sobre as violências em geral e o suicídio em particular. Com isso, houve aumento da procura de ajuda e da participação indígena nas reflexões.

            Entre 1994 e 2005, houve 46 casos de suicídio em 32 comunidades da área leste de Roraima, vitimando de forma predominante os Macuxi na faixa etária juvenil. Ressalto a distribuição da ocorrência de casos de suicídio ao longo deste período: um caso em 1994; um caso em 1995; quatro casos em 1996; em 1997 nenhum caso foi assinalado; dois casos em 1998; oito casos em 1999; cinco casos em 2000; cinco casos em 2001; seis casos em 2002; dois casos em 2003; cinco casos em 2004; e seis casos em 2005.

            Dos 46 casos, 33 correspondiam ao sexo masculino e 13 ao sexo feminino; que estavam compreendidos na faixa etária entre nove anos e 64 anos. Dentre os quais se notou 21 casos com idade entre 09 e 18 anos.

            Os suicídios acometeram duas etnias, correspondendo a 33 Macuxi e três Wapichana. Além de dez casos sem identificação étnica, provavelmente macuxi, por ser a etnia predominante e com histórico de casos conhecidos.

            Em uma mesma comunidade ocorreram tanto casos isolados como tendência a repetição. De fato, observei o caráter repetitivo dos suicídios em sete comunidades; sendo que em três dentre elas o fenômeno se repetiu no decorrer do mesmo ano.

            Neste caso, retrato uma das comunidades. Trata-se de uma comunidade próxima da fronteira, caracterizada por ser uma localidade pequena, pluriétnica, composta pelas etnias Taurepang, Macuxi e Wapichana, em condição de vulnerabilidade social, com o agravante de estar sob a influência de várias entidades religiosas e constatar-se um contexto de violência doméstica, com predominância entre os jovens de abuso de substâncias psicoativas quanto a ocorrência de casos de abuso sexual de meninas e suicídios, um rapaz de 17 anos se suicidou e uma moça de 14 anos também se suicidou 50 dias após o jovem ter consumado o ato. Por conseguinte, essas particularidades referentes a violências, abusos e influências sociais devem ser consideradas ao abordar-se o fenômeno do suicídio.

            Nessa amostra verifiquei, quanto aos meios mais utilizados, que 39 foram por enforcamento. Destaco, portanto, o uso da corda de curaua ou o punho da rede karânai para a prática de suicídio, materiais facilmente encontrados em todas as casas e em qualquer local. Por outro lado, ocorreram dois suicídios masculinos por uso de arma de fogo; um suicídio masculino por uso de arma branca; e um suicídio feminino por queda, precipitação de altura. Em três casos o meio não foi mencionado.

            O local de suicídio é sempre dentro de casa ou em uma árvore bem próxima, geralmente a mangueira, que é muito comum na região; mas também já verifiquei a ocorrência de suicídio em caimbé. A árvore escolhida está geralmente localizada logo atrás da casa ou em lugar um pouco afastado, no caminho para a realização de necessidades fisiológicas ou banho. E o suicídio sempre ocorre em presença de outras pessoas da família ou próximo delas. Esta escolha de local próximo e período diurno para execução do ato pode refletir a necessidade de reconhecimento do próprio desespero por parte de seus parentes.

            Neste sentido, Malinowski destacou o caso de suicídio de um jovem trobriandês de 16 anos, que após cometer violação do tabu do incesto, no caso de primos-irmãos matrilíneos, e ser insultado diante da comunidade, vestiu sua roupa de festa, enfeitou-se, subiu em um coqueiro de uns vinte metros de altura, explicou seu ato de desespero, acompanhado de choro muito alto, e atirou-se do alto desta árvore, morrendo no ato (Malinowski, 2008: 63).

            Algumas vítimas, desse cenário de suicídios de indígenas em Roraima, deixaram relatos na forma de avisos. Entre eles, encontram-se pessoas tanto solteiras como casadas, com ou sem filhos. Destaca-se o caso de uma adolescente, já casada, que, antes de se enforcar, se despediu de toda a família pela radiofonia, sem que ninguém percebesse sua intenção. Outros deram algum sinal. Como o caso de um adolescente solteiro que queimou as próprias roupas antes de se enforcar. Para a pesquisadora de suicidologia no Brasil Blanca Susana Guevara Werlang (1955-2013), o suicida emite em suas relações interpessoais sinais verbais ou comportamentais, em que comunica a sua intenção letal, no entanto, em estado perceptivo de constrição, sua única opção é a saída do sofrimento (Werlang, 2004: 85). Além disso, tentativas de suicídio, anteriores ao ato consumado, notadamente tentativas de suicídio entre jovens do sexo feminino, sem êxito, tem sido relatadas.

            Do mesmo modo como explicam a doença como sendo extravio ou roubo do stekaton (princípio vital) de alguém, os Macuxi, em caso de suicídio, sempre procuram um culpado, quem teria causado essa morte.

            Os aparentes motivos desencadeadores de suicídio podem incluir desde: o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, notadamente a substituição da bebida tradicional fermentada, o caxiri, por bebida industrializada, destilada, a cachaça; violência doméstica; violência física e psicológica contra a mulher; abuso sexual de meninas em família; abuso sexual de menino e jovem; descontentamento provocado por desavenças familiares; dificuldades de relacionamento afetivo, levando ao rompimento e abandono; e afeto não correspondido. Assinalo, igualmente, a existência de conflitos relacionados a decisões contrárias ao modelo de conduta culturalmente desejado quanto às tradições, como migração para a cidade na perspectiva de dar continuidade aos estudos e escolha do parceiro sem interferência familiar.

            Nessa perspectiva, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde 22 etnias convivem, narrativas Iauaretê sobre a alta taxa de suicídio na região (41,9 por 100.000) se ancoram em aspectos socioculturais e históricos, que remetem a tensões intergeracionais, de gênero e relacionadas a parentesco, sendo o alcoolismo um catalisador desses conflitos (Souza, 2016: 156).

            Ressalto ainda um caso de suicídio de um jovem macuxi masculino, ocorrido em 2001, em que fatores culturais e reações individuais devem ser consideradas. Durante o recesso escolar, o adolescente, que frequentava a escola na Missão Católica, retornou a sua comunidade e cometeu suicídio dentro de sua casa. Este jovem se matou por enforcamento com uma corda, usada para atar a rede de dormir, a qual pendurou na viga da porta, enquanto seus familiares se encontravam no terreiro, ao lado da entrada da casa. O corpo do jovem permaneceu pendurado a poucos centímetros do chão, o que denota o esforço e a determinação na execução do ato suicida. Antes do episódio, esse adolescente teria se desentendido com uma jovem, colega de escola, e apresentava uma sintomatologia depressiva sob a forma de retraimento e tristeza. Por outro lado, constato a dificuldade de adaptação do jovem ao ambiente escolar rígido, em regime de internato, face ao convívio com jovens, de ambos os sexos, oriundos de diversas comunidades, em desacordo com as regras sociais macuxi. O jovem ainda lida com a diversidade étnica, distanciamento de sua comunidade e atração por profissões urbanas.

            Por conseguinte, tanto os fatores psicopatológicos e a vulnerabilidade psíquica, como os modos de lidar com as emoções, e aqueles culturais (Devereux, 1996), relacionados a mitos e crenças, devem ser considerados.

            Mesmo a influência religiosa, alheia a cultura, pode interferir na percepção da passagem ao ato autodestrutivo. Dessa forma, houve um incidente em uma comunidade Waiwai, outro povo karib, que provavelmente teria sido uma tentativa de suicídio. Um menino waiwai tinha saído para pescar com o irmão mais velho, porém na ausência momentânea deste irmão, pegou uma arma que estava carregada, apontou para a própria cabeça e atirou. Para os membros da comunidade o ato foi considerado uma “brincadeira”. É provável que a convivência desde os anos 1940 com a Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) tenha influenciado essa população a não ter considerado o fato como um ato suicida, que seria um pecado.

            Nessa perspectiva do brincar, uma criança wapichana executou um gesto de simulação de suicídio por enforcamento com o punho da rede de dormir em sua comunidade, o que surpreendeu seus familiares. Teria sido uma brincadeira? O que verifica-se é um convívio da criança com a prática e gestos suicidas, tendo em vista um aumento gradual do enforcamento como método para cometer o suicídio entre os wapichana após 2015.

            Ao refletir sobre o aprendizado da criança e modos tradicionais de lidar com a morte, Gunter Kroemer notou que entre os Zuruaha, as crianças brincam de morrer asfixiadas com timbó e encenam a maneira de preparar o cadáver e de fazer a sepultura (Kroemer, 1994: 78).

           Na verdade, o fenômeno suicida sempre ocorreu entre os Macuxi, segundo os pajés. Dessa forma, por ocasião do Encontro Estadual de Medicina Tradicional, que realizou-se em dezembro de 2002, na comunidade Cantagalo, etno região do Surumu, na qual já houvera ocorrido alguns suicídios, deixando as pessoas angustiadas, os anciões, pajés e rezadores que participavam do evento tentavam entender o fenômeno do suicídio. Antes do contato com a sociedade envolvente, lembravam os pajés, o suicídio sempre ocorria entre os Macuxi, por interferência de espíritos malignos, ataque do kanaimî, feitiçaria, como estratégia de vingança, por envenenamento e por afogamento. Entretanto, atualmente, houve mudança no padrão cultural de manifestação do suicídio, com a mudança de método.

            Assim, se um jovem, tanto uma moça como um rapaz, tinha inveja de outra pessoa, tomava o sumo da massa de mandioca, que é venenosa (ácido cianídrico), e dizia: “hoje você está me vendo, amanhã não; hoje eu estou aqui, amanhã eu não estarei mais aqui”. Com efeito, em Roraima, continua a ocorrer o suicídio por intoxicação exógena, representada por envenenamento com raiz de timbó, entre os Y'ecuana (da mesma família karib), fato também verificado entre os Zuruaha.

            Outro motivo mencionado pelos pajés seria a pessoa estar “com desgosto”. Nesse momento, a pessoa “pegava uma corda de curaua e amarrava em uma pedra, se jogando em um poço fundo, na água”. Havia, assim, a precipitação de um lugar elevado, como rochedo, seguido de afogamento.

            Uma condição frequentemente observada era o ataque de kanaime, por intermédio do feitiço, que levava ao suicídio. A morte voluntária decorre de ataque de kanaimîye'.

            Por outro lado, pelos relatos desses pajés, não existia antigamente o enforcamento (i'mîtunîku); este fenômeno teria surgido “após o contato com a civilização”, ou seja a sociedade envolvente.

            É preciso entender qual é o significado do gesto suicida para cada pessoa e o valor deste gesto para a cultura a qual pertence, a partir da cosmovisão e da explicação dos próprios indígenas. Os rituais proporcionam um meio de expressão e alívio das emoções, além de simbolizar apoio psicológico e coletivo. No entanto, o suicídio seria um recurso cultural ou uma alternativa individual para o enfrentamento de uma crise?

            Segundo uma narrativa mitológica karib, a qual foi coletada por Koch-Grünberg (2006), o mito Macuxi (também encontrado entre os Tembé e os Wapichana) “O Homem que casou com a filha do urubu rei”, há o relato de uma tentativa de suicídio devido a sentimento de desgosto. Após uma epidemia de doenças (febre, catapora/varicela, sarampo, gripe, coqueluche) muitas pessoas morreram, ficando os corpos apodrecendo, só sobrevivendo um rapaz denominado Estevão, que desgostoso, atirou-se entre os cadáveres na expectativa de também ser comido pelos urubus. Na história ele foi salvo pela filha do urubu para o trabalho forçado (Koch-Grünberg, 2006; Medeiros, 2002). Assim, um comportamento autodestrutivo surgiu como modo de enfrentamento da perda dos familiares em um momento de crise social.

            Nesta perspectiva, para os Mohave, segundo Devereux, há uma origem mítica da morte de acordo com o mito de Matavilye, que decidiu que o homem deveria ser mortal, a fim de que a terra não se tornasse tão populosa. Estando doente, ao sentir necessidade de defecar, se dirigiu até a porta de saída, porém no caminho tocou nas partes genitais da filha, o que a irritou, deixando-a ofendida, uma vez que seu pai queria defecar. A filha, considerada a primeira feiticeira, mergulhou no chão e submergiu sob seu pai e engoliu suas fezes, enfeitiçando-o. Matavilye morreu, trazendo a morte para a existência. Na perspectiva da autodestruição, a primeira morte, que é a causa e o protótipo de todas as mortes sobre a terra, ocorreu devido a um ato de vontade: Matavilye decidiu morrer. Portanto, a morte prototípica foi um suicídio vicariante de substituição (Devereux, 1996: 484).

            Por outro lado, pode-se refletir sobre o espírito apîîko' que leva a um quadro de tristeza, inquietação e insônia entre os Macuxi. Estes indígenas empregam o termo “desgosto”, no sentido de mágoa, tristeza, como sendo um estado vinculado ao fenômeno do suicídio. Apîiko' é um O'ma' wî'tawon, um espirito agressivo, que habita serras e rochas. Segundo o relato de um pesquisador indígena, Apîiko' recolhe o espírito humano e prejudica a aparência da pessoa, causando tristeza, inquietação, insônia e pesadelos. Apenas o Piya'san ou Pajé pode curar a pessoa, reintegrando o seu espírito (Raposo, 2008).

            Essa crença em uma causa mitológica para a tristeza é um modo cultural de enfrentar o suicídio. Perceber os conflitos e dificuldades de relacionamento como desencadeadores de sofrimento psíquico que contribuem para uma atitude autodestrutiva é um outro modo de lidar com o suicídio. O  Piya'san tem sensibilidade para  notar essas modificações no meio ambiente e na relação com o meio espiritual.

            Quando os Omá:kon aprisionam a alma humana (Stekaton), a vítima adoece e acaba morrendo. Somente o Piya'san, o pajé, pode neutralizá-los, pois tem a capacidade de vê-los. O pajé pela ação terapêutica, em sessão xamânica, de “bater folha”, quando emprega as folhas de planta mororó, pode curar feitiço, ao resgatar a alma aprisionada e impedida de retornar ao corpo, uma vez que transita entre os planos cosmológicos, pois domina as forças espirituais na relação entre os mundos real e sobrenatural, e decodifica as diferentes percepções. De acordo com a crença macuxi, o temido kanaime representa um espírito maléfico, que por vingança, raiva, ataca uma pessoa sozinha, batendo-lhe até matá-la. Esse kanaime, cujo espírito pode se transformar ou invadir o corpo de um animal, age por intermédio do feitiço, vivendo em ostracismo social; decide matar alguém, atacando também crianças. O ataque fatal envolve lesão genital e anal da vítima (Diniz, 1972; Raposo, 2008; Santilli,  2001).

            Em síntese, o suicídio vitimou sobretudo crianças e jovens macuxi do sexo masculino, ocorrendo geralmente por meio do enforcamento, dentro de casa ou no entorno, em árvore próxima, tanto em situação de isolamento como na presença de familiares. Uma abordagem antropológica desse fenômeno auxilia a perceber como o ato suicida acontece na comunidade indígena.

Um Caso de Suicídio infantil

            Para situar minha intervenção, apresento apenas um caso do material compilado do estudo retrospectivo, baseado na autópsia psicológica. Adoto um nome fictício para a criança em função da necessidade de sigilo. Trata-se de um caso de suicídio infantil ocorrido em 24 de abril de 2000 em uma comunidade indígena macuxi localizada na etno região Surumu, do norte de Roraima.

            Ricardo, um menino macuxi de nove anos, cometeu suicídio por enforcamento com o punho da corda da rede de dormir, que estava pendurada. Ele realizou o gesto na presença de outras crianças, no alpendre da casa da tia materna, onde sua família residia, no início da tarde. Uma criança pequena notou o corpo do menino suspenso próximo ao chão e alertou os outros, porém Ricardo não resistiu. Na ocasião os adultos não se encontravam na comunidade. Antes do episódio, pela manhã, esse menino ficou contrariado por arrumar os vasilhames do almoço e anunciou que interromperia definitivamente essa tarefa.

            Com o intuito de elucidar o suicídio, estive na comunidade nos meses de julho e outubro do mesmo ano, ocasião em que realizei uma autópsia psicológica, entrevistando sua mãe, sua professora e agentes indígenas de saúde da comunidade. Verifiquei, a partir dos relatos, que Ricardo apresentava uma sintomatologia depressiva nos dias que antecederam o gesto suicida, sob a forma de retraimento, desinteresse e tristeza. Segundo a agente de saúde indígena, “um dia antes ele estava triste, pelos cantos”.

            Ricardo era o segundo filho do jovem casal macuxi, o pai com 28 anos e a mãe com 26 anos. Ele tinha um irmão mais velho, de 11 anos e cinco irmãs: de oito anos, de sete anos, de cinco anos, de três anos e a caçula de 11 meses. Sua mãe estava gestante e havia viajado para Boa Vista, onde teria permanecido por uns três meses. Nessa ocasião, seu pai estava ausente, acompanhando a esposa.

            Segundo a mãe, a prima e a agente de saúde, Ricardo “era uma criança séria, obediente, com hora para brincar, diferente dos irmãos”; parecia ser disciplinado, “com jeito de adulto”. Ricardo tinha bom relacionamento com as outras crianças e com seu pai. Ele costumava “caçar à noite e pescar com o pai e a família”. Sem dificuldades na escola, parecia uma criança responsável, dizendo que “não queria se casar cedo; queria estudar e ser vaqueiro”; ele “gostava de lidar com o gado” e “costumava usar faca desde mais novo”. Segundo a tia materna, “igual uma mãe”, considerada mãe nas relações de parentesco macuxi, os pais de Ricardo sempre viajavam; e as crianças costumavam ficar com ela. Na casa desta tia, ele costumava “arrumar a casa”. Pode-se questionar se Ricardo queria realizar esta tarefa ou se ele teria sido obrigado a executá-la, uma vez que havia meninas no local, habilitadas na atividade, que poderiam realizar essa atividade, considerada uma tarefa feminina.

            Assim, na comunidade, que estava praticamente vazia, pois os adultos estavam ausentes da comunidade, trabalhando na roça, só as crianças, incluindo os irmãos de Ricardo, permaneciam reunidos na casa de sua tia materna. Portanto, no dia em que Ricardo praticou o ato suicida, suas irmãs menores estavam em casa e seu irmão mais velho dormia no quarto.

            Pela manhã, Ricardo teve uma frustração, pois “pediu mingau”, segundo a avó materna, entretanto a tia materna com quem Ricardo morava temporariamente não havia preparado esse alimento.

            Da mesma forma, Ricardo teria expressado uma emoção de contrariedade, ao comentar nessa mesma manhã, com as crianças, que interromperia definitivamente sua tarefa cotidiana de lavar as vasilhas: “não é todo dia, eu só vou lavar hoje”, disse Ricardo, que poderia estar no limite da tolerância com relação a inadequação das normas de conduta masculina, aprendidas no processo de socialização ou enculturação.

            Por volta de meio dia, enquanto as crianças estavam na varanda da casa, encostadas na mureta, assistindo a um desenho animado pela televisão, Ricardo terminou suas tarefas na cozinha e se dirigiu para a varanda, se sentando ao lado das crianças (irmãs e primas) na mureta, na extremidade esquerda, em frente do aparelho de televisão, que estava posicionado a um metro e meio de distância delas. No canto esquerdo do recinto, lateralmente e bem próxima desse aparelho, havia uma rede de dormir pendurada. Então, Ricardo enfiou o pescoço no punho da rede. De repente, uma garota olhou para ele e comentou que ele estava “fazendo bicho”. As crianças perceberam que Ricardo estava com a língua projetada, externamente, se sufocando. Elas tentaram socorrê-lo, sem obter êxito, uma vez que houve fratura do pescoço. Segundo os relatos das crianças: Ricardo estava pendurado pelo punho da rede, com os pés pendurados e balançando, ainda estava respirando, “com a língua para fora”, o corpo estava “mole”, Elas tentaram tirá-lo, mas ao cair, batera a cabeça no muro, “quebrando o pescoço”.

            Uma outra versão, trazendo a possível causa segundo os moradores, foi mencionada por uma prima adulta do menino. Ricardo teria sido vítima de ataque de Rabudo, ou kanaime, que faz mal aos outros. Ela comentou que o irmão de Ricardo teria ficado um período “temporariamente escondido no mato, com medo de um rapaz que estaria na região seduzindo crianças”.

            Destaco o impacto na comunidade dessa morte precoce e planejada. Pelas narrativas da família, percebe-se uma construção do significado do evento, pois procura-se apontar um culpado. Do mesmo modo como explicam a doença como sendo extravio ou roubo do stekaton (princípio vital) de alguém, os Macuxi, em caso de suicídio, sempre procuram um culpado, quem teria causado essa morte. Portanto, os familiares de Ricardo ficaram assustados, por atribuírem o suicídio à interferência de espíritos malignos, por ataque do kanaimî.

            Nessa comunidade havia um pajé/xamã/ Piya'san nos anos 1970. Ele poderia curar feitiço e afastar os maus espíritos (Diniz, 1972). No entanto, por ocasião do suicídio de Ricardo, não havia mais Piya'san na comunidade. Dessa forma, os familiares de Ricardo ficaram sem referência espiritual para orientá-los quanto à conduta frente aos acontecimentos.

            Por outro lado, pela especificidade da dinâmica familiar indígena, frisa-se que essa etnia adota a divisão sexual do trabalho. Portanto, Ricardo não apreciou realizar uma tarefa considerada feminina, o que contrariava as normas sociais, gerando conflito e desvalorização. Pode-se falar em reação depressiva pela expressão de tristeza e desânimo que apresentava. Mas, para a família, Ricardo parecia estar bem, mantendo um bom relacionamento com as pessoas da comunidade, fazendo as atividades adequadas para um menino, como pesca e caça, brincando, sem apresentar dificuldades na escola. Contudo, o fato de Ricardo ter sido uma criança “muito séria” parece indicar alguma dificuldade de lidar o processo de amadurecimento e inserção social.

            Pela passagem ao ato verifica-se a vontade de morrer da criança e o sentimento de impotência da população. Como já destaquei, o fenômeno é multifatorial, entretanto pode-se enfatizar uma das explicações locais para o suicídio que é o “desgosto”. Uma vez que a doença se manifesta pelo viés da cultura, destaca-se entre os Macuxi a expressão direta de emoções. Por outro lado, cada indivíduo adoece com sua própria história. Dessa forma, enfatiza-se a trajetória de Ricardo, como acontecimentos, experiências, vivência psíquica, como sendo determinante para o gesto suicida.

Algumas reflexões

            O projeto de intervenção enfocou tanto a ideação suicidária, os mitos e os modos de resolução de conflitos (Devereux,1996), Por conseguinte, recorri às ideias de Devereux (1996), segundo as quais o conhecimento da mitologia indígena internalizada (sonhos, fantasias e modos de percepção), além da representação etnocultural, permitem uma compreensão da significação inconsciente do fenômeno da violência intracomunitária e familiar, do suicídio e das condutas abusivas. É preciso entender qual é o significado do gesto suicida para cada pessoa e o valor deste gesto para a cultura a qual pertence, a partir da cosmovisão e da explicação dos próprios indígenas. Porém, enfatizo que não tenho a pretensão de esclarecer neste artigo as causas do suicídio de pessoas indígenas, em especial das pessoas macuxi.

            Nota-se a ocorrência do fenômeno do suicídio de crianças, em diversas culturas, atingindo desde um período precoce a crianças no início da adolescência. Neste sentido, modos de representação da criança, como a mitologia e o grafismo, possibilitam uma investigação indireta da população vulnerável em seu ambiente cultural. Neste sentido, o conhecimento da mitologia interna (sonhos, fantasias e modos de percepção) permite uma avaliação da intencionalidade da criança, da ideação suicida, do desejo de aniquilamento.

            Por sua vez, verifica-se um conflito de gerações nas comunidades indígenas, em função de novos valores e novas necessidades que são impostos, afastando os jovens da vida em comunidade, tais como: a migração dos jovens para a cidade que acontece tanto devido à demanda de continuidade nos estudos, sobretudo quanto à educação superior, contrariando os mais velhos que consideram o aprendizado formal inadequado, tendo em vista as atividades tradicionais para a vida em comunidade, quanto à falta de oferta de lazer e de geração de renda na comunidade. Além disso, o convívio de alguns jovens com o mundo urbano acarretou novos conflitos e violências decorrentes do abuso de substâncias psicoativas (ingestão de bebidas alcoólicas destiladas, sobretudo a cachaça, uso de maconha – canabinoides, inalação de cola e gasolina – solventes voláteis). Na verdade, eles estão vivenciando um momento histórico diferente de seus antepassados, o que acentua a vulnerabilidade social dessas crianças e jovens indígenas, que necessitam retraçar o próprio caminho cultural. A comunidade deve pensar em alternativas para manter o jovem integrado à comunidade (Gil, 2016). 

            Assim, enfatizo alguns fatores de risco envolvidos nessa conduta, tais como: perda de vínculos culturais, transmissão intergeracional de história de exploração, preconceito étnico e violências na comunidade, fatores estes relacionados a abuso de substâncias psicoativas, o que favorece o conflito de identidade e o sofrimento psíquico (Cimi, 2013; Devereux, 1996; Gil, 2006).

            Valendo-me da abordagem interdisciplinar que permite uma reflexão sobre padrões culturais de expressão das emoções e mecanismos próprios de resolução de conflitos, optei pela estratégia preventiva na interface da medicina, psicologia e etnologia., através da articulação com o principal agente do sistema tradicional indígena de tratamento, o Piya'san, no intuito de conhecer a explicação etnocultural do fenômeno suicídio, o que possibilitou a valorização das estratégias tradicionais, especialmente a pajelança, para lidar com o suicídio. Realizei debates em reuniões comunitárias sobre o universo juvenil e fatores de risco, com vistas a fortalecer a rede comunitária de apoio psicológico. Destaca-se que nessas reuniões comunitárias, as crianças se expressavam por meio de desenhos, nos quais a representação da violência e do alcoolismo estavam manifestados. Por outro lado, o suicídio estava presente nos diálogos apresentados e encenados pelas crianças.

            Durante os encontros algumas soluções foram propostas para o controle das violências, tais como: vigilância das crianças e formação de grupos de jovens. Essas estratégias de enfrentamento devem ser valorizadas, uma vez que são propostas coletivas locais que visam resgatar o convívio tradicional, baseado nos valores culturais de transmissão intergeracional (Gil, 2016).

            Atualmente, no âmbito da saúde indígena privilegia-se, pela perspectiva do modelo biomédico, a abordagem do suicídio pelo viés da psicopatologia, entretanto, dessa forma têm-se possibilidades insuficientes para entender o fenômeno do suicídio. Sendo assim, faz-se necessário a complementação pela visão antropológica e etnopsicológica, tendo em vista a especificidade dos comportamentos no contexto de diversidade cultural.

            Como psicóloga e médica na comunidade apoiei o Piya'san e os agentes indígenas de saúde (AIS) na compreensão das emoções e atitudes autodestrutivas dessas crianças e jovens. Por fim, o projeto de intervenção propiciou uma sensibilização da população indígena, com a discussão da temática em diversas comunidades e a construção de estratégias de enfrentamento que respeitassem a cultura e visassem o fortalecimento de respostas locais, ao incentivar o fortalecimento da rede de apoio psicológico inerente a cada comunidade.

            Tentei organizar uma oficina para orientar o AIS em sua conduta ao lidar com a questão da saúde mental e os casos de suicídio, no entanto, fui impedida pela chefia imediata no DSEI de abordar tais temáticas. Atualmente, esta é a estratégia adotada pelo Ministério da Saúde, no sentido da qualificação das equipes em área. Talvez, muito sofrimento pudesse ter sido poupado, se minha iniciativa tivesse sido aprovada.

Considerações finais

            À guisa de conclusão, o suicídio de pessoas macuxi tem vitimado sobretudo crianças e jovens do sexo masculino, ocorrendo geralmente por meio do enforcamento, dentro de casa ou no entorno, em árvore próxima, tanto em situação de isolamento como na presença de familiares. Dessa forma, decidi realizar intervenções, sob demanda local, no intuito de amenizar o sofrimento dessa população.

            Embora os Macuxi apresentem mecanismos próprios de resolução de conflitos, alguns fatores de risco nas comunidades, tais como: abuso de substâncias psicoativas, violências, abusos sexuais e conflitos de identidade étnica e de geração, em decorrência do contato intercultural, favorecem os comportamentos autodestrutivos, o que implica novas estratégias de enfrentamento.

            A estratégia preventiva, através de debates em reuniões comunitárias, sob demanda da população, com o apoio de representantes das organizações indígenas, OMIR, AIS e professores indígenas, permite uma abordagem mais eficiente, tendo como foco da intervenção a escuta e avaliação dos sentimentos de crianças e jovens, os padrões coletivos de expressão das emoções e resolução de conflitos e o fortalecimento da rede de apoio psicológico inerente a cada comunidade, valorizando-se estratégias de enfrentamento que respeitem a cultura.

 

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Recebido 04/7/2018

Aceito para publicação 04/8/2018

 


Notas

[1] Algumas ideias preliminares, em uma primeira versão deste ensaio, foram apresentadas no evento I Congresso Brasileiro de Prevenção do Suicídio (Belo Horizonte, ABEPS, 2015).

[2] Pamela Alves Gil, Doutora em Psicologia (Universidade de Paris, 1997), Professora Associada do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Roraima. Publicou: 1. Mulher Indígena: novos enfrentamentos. In: Calegare, Marcelo G.A.; Higuchi, Maria Inês G.. (Org.). Nos interiores da Amazônia: leituras psicossociais. 1ed. Curitiba: CRV, pp. 271-285, 2016;  2. Abuso sexual de meninas em população indígena: tentativas de prevenção e intervenção. In Neuza F. Araújo (Org.), Relações sociais e gênero: olhares cruzados América Latina Europa . Natal/RN: EDUFRN, pp.225-236, 2006.  E-mail: pamela.gil@ufrr.br.