Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 20 Vol. 2 - 2018 - julho/dezembro
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Suicídio de
indígenas em Roraima: cultura e intervenção[1]
Pamela Alves Gil – UFRR[2] Palavras-chave: Suicídio; Indígenas do Brasil; Projeto de Intervenção. Abstract: It is
a question of addressing the phenomenon of suicide, especially in the
indigenous context, in order to contribute to the reflections on suicide in
Brazil. An intervention project aimed at suicide prevention among young
indigenous people from Roraima, the Amazon region of Brazil, stands out. For
this purpose a case of child suicide is analyzed. Suicide victimized mainly
male Macuxi children and young people, usually occurring by hanging, indoors or
in the surroundings, in a nearby tree, both in isolation and in the presence of
relatives. The problem of suicide, which is multifactorial, involves aspects
both psychological, psychopathological, social, historical, as well as cultural
and mythological. Keywords:
Suicide; Indigenous people of Brazil; Intervention Project. Introdução
Este
artigo, cujo tema é pouco explorado pela literatura científica atual,
aborda o
fenômeno suicida no contexto indígena da Amazônia brasileira, com
vistas a
contribuir para as reflexões sobre o suicídio no Brasil. Ao iniciar-se
a
discussão, trata-se de um estudo exploratório
documental e bibliográfico, com ênfase qualitativa, de perspectiva
psicológica
e etnográfica, por meio da análise de estudos científicos, mitos e
textos literários.
O método adotado consistiu em análise de conteúdo da representação do
suicídio
em referências de diversas culturas, tendo como fonte a literatura
científica
disponível sobre o tema, além de anotações de diários de campo.
Analiso
o material disponível, tendo como base teórica a abordagem
psicanalítica,
complementada pela perspectiva da antropologia. Neste
sentido,
eu tomo como referencial teórico as ideias do psicanalista Georges
Devereux
(1908-1985), que articula a Psicanálise e a Etnologia, em uma relação
de
complementariedade (Devereux, 1985).
E,
para ilustrar a discussão, apresento uma experiência de
intervenção em psicologia e saúde indígena centrada no acompanhamento
de
pessoas macuxi de Roraima.
O
termo suicídio, etimologicamente, deriva do latim (sui
= de si próprio; caedere
= matar). De acordo com José Manoel Bertolote (2012), a palavra “suicídio”
foi criada pelo médico inglês Thomas Browne, que, em 1643, elaborou o
termo em
grego, a qual foi traduzido, em 1645, para suicide,
em inglês, palavra
que foi adotada entre as línguas ocidentais.
Este
assunto é complexo, uma vez que o fenômeno suicida é multidimensional e
envolve
aspectos tanto psicológicos, psicopatológicos, sociais, históricos,
como
culturais e mitológicos. Considera-se o suicídio como um fenômeno
universal, o
qual é descrito nos mitos e na literatura e suscita um dilema para as
religiões
e sistemas jurídicos. No entanto, atualmente, evoca um fenômeno
psicopatológico, como indício de transtorno mental, relacionado
notadamente a
um quadro de depressão. E, gradativamente tornou-se, como enfatiza a
Organização Mundial da Saúde (Who, 2008), um problema de saúde pública,
cuja
prevenção não é uma tarefa fácil.
Neste
sentido, no Brasil foram registrados 55.649 óbitos por suicídio no
período de
2011 a 2015, o que corresponde a uma taxa geral de 5,5 por 100 mil
habitantes.
Os meios mais utilizados para cometer o suicídio foram o enforcamento
(61,9%),
seguido por intoxicação exógena (17,7%) e uso de arma de fogo (8,7%).
Observou-se as maiores variações da taxa, em número de óbito por 100
mil, no
estado de Roraima, sendo de 5,1 por 100 mil habitantes no sexo
masculino e, no
sexo feminino, de 0,9 por 100 mil habitantes (após o Distrito Federal).
Destaca-se a vulnerabilidade pelo risco de óbito por suicídio na
população
indígena brasileira, o que corresponde 15,2 por 100 mil habitantes,
sendo 23,1
por 100 mil na população masculina e 7,7 por 100 mil na população
feminina, e
notadamente a condição dos adolescentes, pois
44,8% dos suicídios foram cometidos pela faixa
infantojuvenil, entre dez
e 19 anos (Ministério da Saúde, 2017).
A
literatura mundial reflete esse fenômeno em muitos romances. Um desses
representantes, Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), deu visibilidade ao
fenômeno ao escrever Os Sofrimentos do jovem Werther (1774),
personagem
que se suicida devido a um amor não correspondido, o que provocou o
fenômeno
Werther, que se refere ao fato de muitos jovens sentimentais dessa
época
cometerem suicídio após a leitura desse romance. No romance, Goethe e
Werther
se confundem, pois criou o romance a partir de uma história verdadeira
no
momento em que vivenciava a própria rejeição pela amada. Neste sentido,
o autor
descreve o desejo de se matar como “uma raiva interior, desconhecida”,
que
ameaça dilacerar o peito e que sufoca (Goethe, 1990: 314-315). Goethe,
provavelmente, identificou-se com Jerusalém, jovem que se matara,
tomando-lhe
emprestado o motivo para sua história de amor. “Por meio dessa
fantasia,
protegeu-se das consequências de sua experiência” (Freud, 1897/1996:
306).
De
fato, o médico psicanalista Sigmund Freud (1856-1939), enfoca em vários
de seus
textos essa temática. Sem pretender aprofundar a perspectiva freudiana,
cito
notadamente a discussão sobre a ocorrência do suicídio entre jovens,
“época da
vida em que as condições de seu desenvolvimento os compelem a afrouxar
seus
vínculos com a casa dos pais e com a família”, sem ter o apoio da
escola, que
substitui os traumas (Freud, 1910/1996: 243). Para Freud, o
recalcamento de
impulsos poderia produzir melancolia (1897), que implica em depressão
profunda,
cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar,
inibição de toda a atividade e diminuição dos sentimentos de
autoestima,
culminando em expectativa delirante de punição (Freud, 1917/1996: 250);
nesta
condição, um investimento de objeto é substituído por uma identificação. No suicídio “o ego é
dominado pelo objeto”; é
“capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um
objeto”
(Freud, 1917, 1920, 1996: 257) Em um caso de homossexualidade feminina,
Freud
(1920/1996) analisa a tentativa de suicídio de uma jovem, cujo ato é
cometido
quando seu pai descobre o caso e a companheira tenta encerrar a
ligação, Como
Werther, a jovem desespera-se em função da perda do ser amado. Freud,
porém,
interpreta o ato como determinado por: “a realização de uma punição
(autopunição) e a realização de um desejo” (Freud, 1920/1996: 173).
Por
outro lado, Albert Camus (1913-1960), enfatiza em O mito de Sísifo,
ensaio
publicado em 1942, o suicídio como solução para o absurdo. Camus
descreve o
mito grego no qual Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar
incessantemente
uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a cair devido ao
próprio
peso. Dessa forma, esse autor considera que “as pessoas se matam porque
a vida
não vale a pena ser vivida” (Camus, 2010: 22).
Pela
perspectiva antropológica cultural, Bronislaw Malinowski (1884-1942),
em obra
publicada em 1926, assinala os modos de suicídio utilizados pelos
habitantes
das Ilhas Trobriands. O ato é praticado por meio do lo'u
(atirar-se do
alto de um coqueiro) ou soka (pela ingestão de um
veneno da vesícula
biliar de um peixe) para escapar de situações sem saída, abrangendo o
desejo de
autopunição por transgressão das regras da exogamia; pedido de vingança
pelo
insulto público sofrido; um meio de fuga e reabilitação; e queixa
sentimental
(Malinowski, 2008: .74).
Do
ponto de vista sociológico, Émile Durkheim (1858-1917), em O
suicídio,
publicado em 1897, considera o suicídio um fato social e propõe uma
tipologia
do suicídio, sendo que a cada tipo corresponde uma constituição moral
determinada: egoísta (caracterizada pela excessiva individuação),
altruísta
(conduta situada no grupo, como um dever) (Durkheim, 1897: 238) e
anômico
(estado de desregramento e paixões menos disciplinadas) (Durkheim,
1897: 281),
Cada sociedade é predisposta a fornecer um contingente determinado de
mortes
voluntárias (Durkheim, 1897: 15).
Para
Georges Devereux (1961/1996), cada cultura tem seus conflitos típicos
assim
como suas defesas típicas contra esses conflitos. Os meios utilizados
para se
suicidar estão ligados à determinação do indivíduo a morrer (Devereux,
1996:
540).
Com
referência a estudos realizados no Brasil, merece destaque o estudo de
Roger
Bastide (1898-1974)
sobre
o
suicídio do negro. Adotando a tipologia de Durkheim, Bastide considera
que o
africano escolhe o suicídio sob a forma tanto altruísta como egoísta,
como
solução para as situações de ciúme, vingança ou de cativeiro,
recorrendo aos
meios que a natureza lhe oferece, tais como jogar-se na água, saltar de
um
lugar alto, deixar-se atropelar, mas principalmente enforcar-se ou
envenenar-se
(Bastide, 2016: 329). Uma cena do filme Vazante exemplifica um outro
meio de
cometer suicídio adotado por escravos africanos, em ato de desespero
por não
suportar a tortura e exploração de seu corpo, a vítima engole terra até
o
sufocar-se (Thomas, 2017). De fato, Bastide concebe o suicídio como uma
“interpenetração do psíquico e do social” (Bastide, 2016: 330). O
suicídio indígena no Brasil
No
Brasil, a população indígena corresponde a 896.917 pessoas, distribuída
em 305
etnias, que se comunicam por meio de 274 línguas.
(Ibge, 2010). Esta diversidade cultural
apresenta um contexto similar, pois, recentemente, tem-se verificado um
aumento
gradativo de casos de suicídio em
diversas etnias no Brasil, como apontam os Relatórios de Violência
publicados
pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), notadamente entre os
Guarani
Kaiowa, Guarani Nhandeva e Terena (MS); Ticuna. Tucano, Baré, Kanamari,
Mayoruna, Cocama, Caixana, Zuruaha, Kulina (AM); Karajá, Paresí e
Tapirapé
(MT); Katukina (AC); Karajá (TO); Ka'apor
(MA);
Kaingang (PR); Xukuru (PE); além dos Macuxi, Yekuana,
Wapichana e Ingaricó (RR).
Segundo
o Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de
2016
(Cimi, 2016), houve 106 casos de suicídio em 14 dos 34 Distritos
Sanitários
Especiais Indígenas (DSEI), sendo que 74% ocorreram nos DSEI Mato
Grosso do Sul
(30 casos); DSEI Alto Rio Solimões (30 casos); DSEI Leste de Roraima
(dez
casos) e DSEI Yanomami (oito casos).
De
acordo com dados do Ministério da Saúde, a taxa de suicídio entre
indígenas no
Brasil, no período compreendido entre 2011 e 2016, corresponde a 15,2
por 100
mil habitantes, sendo que 48% corresponde a faixa etária compreendida
entre dez
e 19 anos. O meio mais utilizado é o enforcamento, sobretudo entre os
homens,
além de intoxicação exógena e uso de arma de fogo. Já as tentativas de
suicídio, mais frequente entre as mulheres (69%), correspondem a
envenenamento/intoxicação, uso de objeto perfurocortante e enforcamento.
Entre
os Guarani Kaiowa houve 244 casos de suicídio entre 1986 e 1997; e 782
casos de
suicídio entre 2000 e 2016, sendo que 20% desses casos correspondem à
faixa
etária dos cinco aos 14 anos (Cimi, 2016). Sugere-se que o suicídio
decorre de
“uma explicitação mítico religiosa de uma situação político
econômico-social”,
em função de falta de terra, necessidades geradas devido ao contato,
baixos
salários, terra descaracterizada, falta de apoio de políticas de
desenvolvimento, marido ausente da aldeia por longos períodos,
desintegração da
família, desentendimento entre casais, violência sexual e abandono de
jovens
(Pauletti; Schneider; Mangolim, 1997: 39). Outras possíveis causas,
tais como
esfacelamento da cultura, exploração econômica, presença de igrejas
carismáticas, consumo de bebidas alcoólicas, falta de trabalho,
representam
valores externos. As formas preferenciais de autoextermínio pela
garganta
(enforcamento, asfixia e envenenamento refletiria os dilemas do jovem
que se mata
no momento da mudança de voz ao mesmo tempo em que deve optar por
permanecer ou
sair da aldeia (Bom Meihy, 1994: 249). O suicida, às vésperas do ato,
apresenta-se triste, isolado, revoltado, até que desaparece, sendo
depois
encontrado pendurado em um galho de árvore ou envenenado. O fenômeno
está
referido ao âmbito cosmológico e sobrenatural, mítico (Levcovitz, 1998:
21) Os
indígenas costumam a explicar o suicídio como resultado de “feitiço”,
morte
provocada pelo inimigo, que deve ser vingado. O mito da busca pelo
Paraíso
Terreal, a Terra sem Mal, influencia o modo de ser Guarani, mas não
explica os
ciclos de fases de suicídio. Na verdade, a história de contato desse
povo
acarretando a exclusão e não reconhecimento do direito à terra e
condições
sanitárias precárias somadas ao alcoolismo e violência agravou a
vulnerabilidade e o risco de suicídio. Por outra perspectiva, os Zuruaha, ou Sorowaha, conhecidos como o povo do veneno, por cometerem suicídio por meio da ingestão do sumo da raiz de timbó (konaha) vivenciam um etno trauma, segundo o antropólogo Gunter Kroemer, pioneiro nos estudos sobre esse povo (Kroemer, 1994: 78). A partir do contato, os Zuruaha perderam suas referências mítico-religiosas, com a perda dos pajés. E Dawari foi o primeiro a tomar o veneno (Kroemer, 1994: 148). Para eles, a existência humana só tem sentido quando se visa o suicídio (Kroemer, 1994: 78). Uma análise de seis gerações, antes do contato com os não indígenas acusou a ocorrência de 122 suicídios (75 do sexo masculino e 47 do sexo feminino). Já entre 1980 e 1985, período posterior ao contato, houve 38 suicídios (18 do sexo masculino e 20 do sexo feminino). Os aparentes motivos podem ser banais, um descontentamento, comentários, fofocas, dessa forma a transgressão de normas como falta de respeito a propriedade alheia é pretexto para alguém recorrer ao suicídio (Kroemer, 1994: 76). Para os Zuruaha, expressar a raiva como o suicídio têm o sentido de autodestruição (Kroemer, 1994: 79). Por outro lado, Dal Poz assinala o ritual autoagressivo; o suicídio acomete predominantemente jovens do sexo masculino com precocidade do sexo feminino, ao atingir adolescentes de 12 anos; podendo ser relacionado aos ritos de passagem, controle da sexualidade, status sociais, expectativas matrimoniais, desentendimentos conjugais (Dal Poz, 2000: 102); sendo uma resposta suicidógena ao luto e à tristeza (Dal Poz, 2000: 114). Na verdade, a ameaça latente do suicídio regula as relações interpessoais (Dal Poz, 2000: 129). O
suicídio indígena em Roraima
Em
Roraima, a população indígena corresponde a 49.637 pessoas (Ibge, 2010)
ou 60
mil, segundo o CIR. Neste Estado, podem-se identificar diversas etnias,
que
vivem de modo tradicional em seu habitat, as quais estabelecem
diferentes
situações de contato: Yanomami (subgrupos Yanomami, Sanuma e
Ninam/Yanam),
Macuxi, Ingaricó, Patamona, Wai-Wai, Ye'kuana, Sapará e Waimiri-Atroari
e
Wapichana, sendo que em várias comunidades da região leste membros de
etnias
diferentes estabelecem matrimônio.
Neste sentido, esse artigo enfoca o
suicídio de indígenas na Amazônia, no estado de Roraima, notadamente
entre os
indígenas Makuusi (Macuxi), que se
autodenominam Pemonkon (Raposo,
2008), termo que significa gente,
pertencentes ao
tronco linguístico Karib. Os Macuxi, por sua vez, somam 30.295 indígenas
aldeados no Brasil, pois
eles
compartilham seu território tradicional, que
engloba áreas de lavrado (savana), serras e floresta, entre regiões
pertencentes tanto ao Brasil como à República Cooperativista da Guyana.
Atualmente, os Macuxi vivem em
contato permanente com a sociedade envolvente, conservando as
tradições, porém
submetidos à economia regional. Por outro lado, os Macuxi compõem
agrupamentos
de famílias mistas com outros povos da família linguística Karib, os
Ingaricó; os
Taurepang e Patamona; e mesmo com os Wapichana, (de família linguística
Aruak),
cujos descendentes costumam se autodenominar jocosamente “macuchanas”.
No entanto, o cenário tem
transformado-se, uma vez que verifica-se um aumento de casos de
suicídio entre
as pessoas macuxi de Roraima, notadamente entre crianças e jovens, de
ambos os
sexos, moradores de diversas comunidades, tanto aquelas isoladas,
localizadas
nas serras, como aquelas de fácil acesso, o que gera angústia na
população
indígena (Gil, 2006). Avaliarei os dados sobre o suicídio em Roraima
entre 1995
e 2005 ao abordar minha intervenção em saúde nas comunidades indígenas.
No
momento, avalio a ocorrência de suicídios de indígenas nesse estado
entre 2006
e 2017, a partir de dados revelados por relatórios especiais, “Relatório
Violência contra os Povos Indígenas no Brasil , entre 2006 e 2016,
elaborado
pelo Conselho Indigenista Missionário, e Relatório
Anual de Gestão. Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste
de Roraima, que traz dados de 2011 a 2017.
Entre 2006 e 2010 não houve
referência a casos de suicídio em Roraima (Cimi, 2006-2007; 2008; 2009;
2010).
Por outro lado, em 2011, assinala-se casos entre macuxi, ingaricó e
wapichana,
citando-se um wapichana de 15 anos e destacando-se três macuxi entre 22
e 24
anos (Cimi, 2011); já outro relatório assinalou um caso de um homem
macuxi de
35 anos que suicidou-se por enforcamento (Dsei-Leste, 2016). Em 2012,
verificou-se cinco homens macuxi entre 17 e 42 anos, predominando o
enforcamento, com um caso de disparo de arma de fogo (Dsei-Leste,
2016). Porém,
para o CIMI, teria havido um outro caso de um macuxi de 18 anos nesse
mesmo ano
(Cimi, 2012). No ano de 2013, três casos de homens macuxi, entre 24 e
31 anos,
todos por enforcamento, são assinalados (Dsei-Leste, 2016). Em 2014,
por outro
lado, houve seis casos, sendo quatro macuxi, entre 14 e 37 anos, e dois
wapichana, de 15 e 26 anos, predominando o sexo masculino, três por
meio de
enforcamento, um por disparo de arma de fogo e dois por meio não
especificado.
A mais jovem foi uma adolescente macuxi
de 14 anos, por enforcamento (Dsei-Leste, 2016). Em
2015, por sua vez,
houve um aumento de casos, verificando-se 11 casos, sendo seis
wapichana, entre
13 e 21 anos, e cinco macuxi, entre 12 e 72 anos, com predominância
masculina,
todos por meio do enforcamento. Entre os macuxi, houve os casos mais
jovens, um
menino e uma menina, ambos de 12 anos (Dsei-Leste, 2016). Em 2016,
houve
novamente 11 casos, sendo seis mulheres e cinco homens, sete macuxi,
entre 14 e
35 anos três wapichana, entre 15 e 46 anos. e um ingaricó de 19 anos,
todos por
enforcamento. Os casos da etnia macuxi correspondem a quatro do sexo
masculino
e três do sexo feminino, entre as quais a mais jovem de 14 anos
(Dsei-Leste,
2016).
Segundo dados do relatório anual de
gestão, em 2017, houve oito casos, entre treze e 75 anos, quatro do
sexo
masculino e quatro do sexo feminino, provavelmente, metade macuxi e
metade
wapichana, tendo como referência a localidade. A mais jovem, uma macuxi
de 13
anos, reside próximo à fronteira (Dsei-Leste, 2017).
Ao acrescentar dados sobre o
suicídio no DSEI Yanomami, referente a casos de suicídio de Yekuanas de
Roraima, assinalo que houve sete (2010); seis (2011); três (2012); sete
(2013);
três (Cimi, 2014); oito (Cimi, 2015); oito casos nesse DSEI (Cimi, 2016). Os suicídios
de jovens entre 14
e 25 anos ocorreram por envenenamento por ingestão de timbó, por
enforcamento e
um caso por uso de arma de fogo. Algumas mortes são decorrentes de
ataques de kanaima
(Moreira, 2006: 356).
Embora esses dados sejam
incompletos,
fornecem um cenário do suicídio de pessoas indígenas em Roraima nos
últimos
anos. Destaca-se a ocorrência de suicídios entre jovens de origem
Karib, de
ambos os sexos, de forma sistemática, tanto de Macuxi, notadamente por
enforcamento, quanto de Yekuana, por enforcamento e envenenamento ao
tomar
extrato de timbó, e a ocorrência mais recente de suicídios entre jovens
Wapichana, de ambos os sexos, por enforcamento. O
suicídio de pessoas Macuxi em Roraima à luz da Psicologia:
Projeto
de Intervenção
Antes, é preciso assinalar que a
atenção à saúde indígena é realizada de forma diferenciada pela
Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI) por meio de Distritos Sanitários
Especiais
Indígenas (DSEI), de acordo com a política nacional indigenista. Desde
2007,
intensificou-se a abordagem da “saúde mental” no contexto indígena nos
DSEI,
obedecendo-se a Política de Atenção Integral à Saúde Mental
das Populações
Indígenas (Ms, 2007), em função da ocorrência de casos de
suicídio,
violência e abuso de bebidas alcoólicas nas comunidades indígenas do
Brasil
(Gil, 2016).
Minha intervenção em saúde, que foi
desenvolvida por um de mais de seis anos, ocasião em que eu trabalhava
no
Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste de Roraima (DSEI-Leste),
como médica
e responsável pelo setor de saúde mental e medicina tradicional,
favoreceu a
observação dos Macuxi nas comunidades situadas em região de serras e de
lavrado, tanto em localidades mais isoladas como em áreas próximas de
vilas. Do
mesmo modo, eu pude conhecer a trajetória desses indígenas em diversos
cenários, ao acompanhar os casos diagnosticados como transtornos
psíquicos,
supervisionando tanto a adesão ao tratamento psicotrópico em área
quanto o
encaminhamento aos serviços de referência do Subsistema de Atenção à
Saúde
Indígena no Sistema Único de Saúde, ao acompanhar os macuxi em trânsito
ou
residindo na cidade de Boa Vista, a partir de visitas a Casa de Saúde
do Índio
(CASAI), visitas a domicílios, participação de reuniões das
organizações
indígenas, tanto do Conselho Indígena de Roraima (CIR) como da
Organização das
Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR), como da Pastoral Indigenista da
Cidade e
de oficinas da Organização dos Indígenas da Cidade (ODIC).
Por
ocasião de visitas a famílias macuxi, pude constatar a realidade dos
problemas
socioculturais e históricos e a coexistência de fatores de risco nas
comunidades, tais como conflitos e violências.
Percebi,
na verdade, entre eles uma instalação gradativa da violência
no interior da comunidade, decorrente de contatos interculturais
desiguais com
a sociedade envolvente, baseados em domínio econômico, decorrente da
exploração
da mão de obra indígena e uso da cachaça, usurpação da terra indígena
para
garimpo, pecuária, cultivo do arroz e “invasão política e
cultural”(Cidr,
1990), acarretando influências nefastas. Nessa perspectiva, o confronto
com a
modernidade promoveu mudanças no cotidiano da vida comunitária. Esse
era o
cenário nas comunidades indígenas por ocasião do projeto de intervenção.
Além
disso, nas comunidades, muitas mulheres e meninas eram vitimadas pela
violência
doméstica, o que é desencadeada pelo abuso de substâncias psicoativas,
em
especial a bebida alcoólica. Portanto, constata-se a coexistência de
fatores de
risco de conotação destrutiva nessas comunidades, em especial a
existência de
casos de abuso sexual contra meninas e adolescentes, praticados por
familiares,
notadamente por pai, padrasto, avô e irmão (Gil, 2006). Esses fenômenos
psicossociais, acrescidos de condições de precariedades quanto a
nutrição e
violação de direitos, geram sofrimento psíquico individual e coletivo
na
população, que demanda ajuda.
Vale destacar que a identidade
cultural macuxi se baseia na mitologia de origem, centrada em dois
irmãos, pois
o sol que se casou com a filha do Jacaretinga, feita de breu branco,
teve dois
filhos: Inxikiran (primogênito) e Ani'ke”(algumas versões citam
Macunaíma e
Inxikiran; outras, Inxikiran e Ani’ke; enquanto outras citam Macunaíma
e Yawoi)
(Diocese de Roraima, 2011: 99-109).
Esta
formação da pessoa macuxi envolve um corpo tradicional que é moldado
segundo a
mitologia macuxi, sendo valorizado e respeitado.
Neste sentido, Anthony Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Viveiros de
Castro
enfatizam a construção da pessoa entre indígenas brasileiros,
privilegiando a
corporalidade individual e coletiva, social e natural, o que articula
noções
sociais e cosmológicas e reforça a complementaridade com a sociedade
(Seeger;
Da Matta; Viveiros de Castro, 1979: 9).
Como,
atualmente, o jovem macuxi percebe-se e a seu corpo ao conviver com os
valores
e necessidades do mundo ocidental, sentindo-se inseguro quanto às
mudanças
culturais que atingem seu universo cotidiano, sem que esta condição não
o leve
a apresentar baixa autoestima e conflito de identidade, como pode-se
verificar
nos casos de suicídio de jovens?
O
jovem vivencia uma crise marcada por lutos pela perda do corpo
infantil, perda
da identidade infantil e perda da relação dos pais da infância, que
tornam-se
ambivalentes (Aberastury, 1983: 24). O jovem macuxi, durante esse
ritual de
passagem, igualmente experimenta um processo de lutos.
Com
o intuito de elucidar os suicídios e entender esse fenômeno, fiz um
levantamento dos casos conhecidos pelos membros das comunidades. Porém,
há
provavelmente subnotificação e inexistência de informação suficiente,
uma vez
que esses indígenas evitam se expor e tratar abertamente desse tema,
como se
houvesse um pacto de silêncio. Além disso, nesse período, o atendimento
à saúde
era precário, pela falta de médicos em todas as regiões, rotatividade
das
equipes, atraso do envio de materiais e distância entre as comunidades,
o que
prejudicava o acesso.
Para
a coleta dos dados, elaborei um instrumento, denominado ficha de
notificação de
violências, que os agentes indígenas de saúde passaram a preencher
rotineiramente. Essa ficha permitiu a contextualização da agressão, o
que
englobava a identificação do agente, da vítima, as circunstâncias da
violência,
o uso de armas e as providências realizadas pela comunidade (Gil, 2006;
Gil,
2016). Com
o intuito de conhecer o perfil dos suicidas,
foram coletados dados nas comunidades e no setor de Epidemiologia do
CIR/DSEI
Leste de Roraima.
Dessa
forma, idealizei um projeto de intervenção no intuito de tentar
prevenir esse
fenômeno, e procedi à coleta de narrativas junto a familiares e amigos
do
suicida, por meio da autópsia psicológica, além de fazer o levantamento
das
violências e um inquérito sobre o consumo abusivo de substâncias
psicoativas,
pois em muitos casos os comportamentos violentos e o alcoolismo são
fatores que
estimulam as desavenças.
O
projeto foi estruturado a partir das necessidades locais,
respeitando-se os
valores referentes às culturas da região; e incentivando-se a
participação dos
agentes tradicionais de tratamento indígena e de lideranças indígenas,
notadamente das mulheres da OMIR e professores indígenas. A intervenção
acontecia através de palestras e participação a convite de reuniões
comunitárias, visando prevenir e alertar sobre as violências em geral e
o
suicídio em particular. Com isso, houve aumento da procura de ajuda e
da
participação indígena nas reflexões.
Entre
1994 e 2005, houve 46 casos de suicídio em 32 comunidades da área leste
de
Roraima, vitimando de forma predominante os Macuxi na faixa etária
juvenil.
Ressalto a distribuição da ocorrência de casos de suicídio ao longo
deste
período: um caso em 1994; um caso em 1995; quatro casos em 1996; em
1997 nenhum
caso foi assinalado; dois casos em 1998; oito casos em 1999; cinco
casos em
2000; cinco casos em 2001; seis casos em 2002; dois casos em 2003;
cinco casos
em 2004; e seis casos em 2005.
Dos
46 casos, 33 correspondiam ao sexo masculino e 13 ao sexo feminino; que
estavam
compreendidos na faixa etária entre nove anos e 64 anos. Dentre os
quais se
notou 21 casos com idade entre 09 e 18 anos.
Os
suicídios acometeram duas etnias, correspondendo a 33 Macuxi e três
Wapichana.
Além de dez casos sem identificação étnica, provavelmente macuxi, por
ser a etnia
predominante e com histórico de casos conhecidos.
Em
uma mesma comunidade ocorreram tanto casos isolados como tendência a
repetição.
De fato, observei o caráter repetitivo dos suicídios em sete
comunidades; sendo
que em três dentre elas o fenômeno se repetiu no decorrer do mesmo ano.
Neste
caso, retrato uma das comunidades. Trata-se de uma comunidade próxima
da
fronteira, caracterizada por ser uma localidade pequena, pluriétnica,
composta
pelas etnias Taurepang, Macuxi e Wapichana, em condição de
vulnerabilidade
social, com o agravante de estar sob a influência de várias entidades
religiosas e constatar-se um contexto de violência doméstica, com
predominância
entre os jovens de abuso de substâncias psicoativas quanto a ocorrência
de
casos de abuso sexual de meninas e suicídios, um rapaz de 17 anos se
suicidou e
uma moça de 14 anos também se suicidou 50 dias após o jovem ter
consumado o
ato. Por conseguinte, essas particularidades referentes a violências,
abusos e
influências sociais devem ser consideradas ao abordar-se o fenômeno do
suicídio.
Nessa
amostra verifiquei, quanto aos meios mais utilizados, que 39 foram por
enforcamento. Destaco, portanto, o uso da corda de curaua
ou o punho da
rede karânai
para
a prática
de suicídio, materiais facilmente encontrados em todas as casas e em
qualquer
local.
Por
outro
lado, ocorreram dois suicídios masculinos por uso de arma de fogo; um
suicídio
masculino por uso de arma branca; e um suicídio feminino por queda,
precipitação de altura. Em três casos o meio não foi mencionado.
O
local de suicídio é sempre dentro de casa ou em uma árvore bem próxima,
geralmente a mangueira, que é muito comum na região; mas também já
verifiquei a
ocorrência de suicídio em caimbé. A árvore escolhida está geralmente
localizada
logo atrás da casa ou em lugar um pouco afastado, no caminho para a
realização
de necessidades fisiológicas ou banho. E o suicídio sempre ocorre em
presença
de outras pessoas da família ou próximo delas. Esta escolha de local
próximo e
período diurno para execução do ato pode refletir a necessidade de
reconhecimento do próprio desespero por parte de seus parentes.
Neste
sentido, Malinowski destacou o caso de suicídio de um jovem trobriandês
de 16
anos, que após cometer violação do tabu do incesto, no caso de
primos-irmãos
matrilíneos, e ser insultado diante da comunidade, vestiu sua roupa de
festa,
enfeitou-se, subiu em um coqueiro de uns vinte metros de altura,
explicou seu
ato de desespero, acompanhado de choro muito alto, e atirou-se do alto
desta
árvore, morrendo no ato (Malinowski, 2008: 63).
Algumas
vítimas, desse cenário de suicídios de indígenas em Roraima, deixaram
relatos
na forma de avisos. Entre eles, encontram-se pessoas tanto solteiras
como
casadas, com ou sem filhos. Destaca-se o caso de uma adolescente, já
casada,
que, antes de se enforcar, se despediu de toda a família pela
radiofonia, sem
que ninguém percebesse sua intenção. Outros deram algum sinal. Como o
caso de
um adolescente solteiro que queimou as próprias roupas antes de se
enforcar. Para
a pesquisadora de suicidologia no Brasil Blanca Susana Guevara Werlang
(1955-2013), o suicida emite em suas relações interpessoais sinais
verbais ou
comportamentais, em que comunica a sua intenção letal, no entanto, em
estado
perceptivo de constrição, sua única opção é a saída do sofrimento
(Werlang,
2004: 85). Além disso, tentativas de suicídio, anteriores ao ato
consumado,
notadamente tentativas de suicídio entre jovens do sexo feminino, sem
êxito,
tem sido relatadas.
Do
mesmo modo como explicam a doença como sendo extravio ou roubo do stekaton
(princípio vital) de alguém, os Macuxi, em caso de suicídio, sempre
procuram um
culpado, quem teria causado essa morte.
Os
aparentes motivos desencadeadores de suicídio podem incluir desde: o
consumo
abusivo de bebidas alcoólicas, notadamente a substituição da bebida
tradicional
fermentada, o caxiri, por bebida industrializada, destilada, a cachaça;
violência doméstica; violência física e psicológica contra a mulher;
abuso
sexual de meninas em família; abuso sexual de menino e jovem;
descontentamento
provocado por desavenças familiares; dificuldades de relacionamento
afetivo,
levando ao rompimento e abandono; e afeto não correspondido. Assinalo,
igualmente, a existência de conflitos relacionados a decisões
contrárias ao
modelo de conduta culturalmente desejado quanto às tradições, como
migração
para a cidade na perspectiva de dar continuidade aos estudos e escolha
do
parceiro sem interferência familiar.
Nessa
perspectiva, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde 22
etnias
convivem, narrativas Iauaretê sobre a alta taxa de suicídio na região
(41,9 por
100.000) se ancoram em aspectos socioculturais e históricos, que
remetem a
tensões intergeracionais, de gênero e relacionadas a parentesco, sendo
o
alcoolismo um catalisador desses conflitos (Souza, 2016: 156).
Ressalto
ainda um caso de suicídio de um jovem macuxi masculino, ocorrido em
2001, em
que fatores culturais e reações individuais devem ser consideradas. Durante o recesso escolar, o
adolescente, que frequentava a escola na Missão Católica, retornou a
sua
comunidade e cometeu suicídio dentro de sua casa. Este jovem se matou
por
enforcamento com uma corda, usada para atar a rede de dormir, a qual
pendurou
na viga da porta, enquanto seus familiares se encontravam no terreiro,
ao lado
da entrada da casa. O corpo do jovem permaneceu pendurado a poucos
centímetros
do chão, o que denota o esforço e a determinação na execução do ato
suicida.
Antes do episódio, esse adolescente teria se desentendido com uma
jovem, colega
de escola, e apresentava uma sintomatologia depressiva sob a forma de
retraimento e tristeza. Por outro lado, constato a dificuldade de
adaptação do
jovem ao ambiente escolar rígido, em regime de internato, face ao
convívio com
jovens, de ambos os sexos, oriundos de diversas comunidades, em
desacordo com
as regras sociais macuxi. O jovem ainda lida com a diversidade étnica,
distanciamento de sua comunidade e atração por profissões urbanas.
Por
conseguinte, tanto os
fatores psicopatológicos e a vulnerabilidade psíquica, como os
modos de lidar com as emoções, e aqueles culturais (Devereux, 1996),
relacionados
a mitos e crenças, devem ser considerados.
Mesmo
a influência religiosa, alheia a cultura, pode interferir na percepção
da
passagem ao ato autodestrutivo. Dessa forma, houve um incidente em uma
comunidade Waiwai, outro povo karib, que provavelmente teria sido uma
tentativa
de suicídio. Um menino waiwai tinha saído para pescar com o irmão mais
velho,
porém na ausência momentânea deste irmão, pegou uma arma que estava
carregada,
apontou para a própria cabeça e atirou. Para os membros da comunidade o
ato foi
considerado uma “brincadeira”. É provável que a convivência desde os anos 1940 com a Missão Evangélica
da Amazônia (MEVA) tenha influenciado essa população a não ter
considerado o
fato como um ato suicida, que seria um pecado.
Nessa
perspectiva do brincar, uma criança wapichana executou um gesto de
simulação de
suicídio por enforcamento com o punho da rede de dormir em sua
comunidade, o
que surpreendeu seus familiares. Teria sido uma brincadeira? O que
verifica-se
é um convívio da criança com a prática e gestos suicidas, tendo em
vista um
aumento gradual do enforcamento como método para cometer o suicídio
entre os
wapichana após 2015.
Ao
refletir sobre o aprendizado da criança e modos tradicionais de lidar
com a
morte, Gunter Kroemer notou que entre os Zuruaha, as crianças brincam
de morrer
asfixiadas com timbó e encenam a maneira de preparar o cadáver e de
fazer a
sepultura (Kroemer, 1994: 78). Na
verdade, o fenômeno suicida sempre ocorreu entre os Macuxi, segundo os
pajés.
Dessa forma, por ocasião do Encontro Estadual de Medicina Tradicional,
que
realizou-se em dezembro de 2002, na comunidade Cantagalo, etno região
do
Surumu, na qual já houvera ocorrido alguns suicídios, deixando as
pessoas
angustiadas, os anciões, pajés e rezadores que participavam do evento
tentavam
entender o fenômeno do suicídio. Antes do contato com a sociedade
envolvente,
lembravam os pajés, o suicídio sempre ocorria entre os Macuxi, por
interferência de espíritos malignos, ataque do kanaimî,
feitiçaria, como
estratégia de vingança, por envenenamento e por afogamento. Entretanto,
atualmente, houve mudança no padrão cultural de manifestação do
suicídio, com a
mudança de método.
Assim,
se um jovem, tanto uma moça como um rapaz, tinha inveja de outra
pessoa, tomava
o sumo da massa de mandioca, que é venenosa (ácido cianídrico), e
dizia: “hoje
você está me vendo, amanhã não; hoje eu estou aqui, amanhã eu não
estarei mais
aqui”. Com efeito, em Roraima, continua a ocorrer o suicídio por
intoxicação
exógena, representada por envenenamento com raiz de timbó, entre os
Y'ecuana
(da mesma família karib), fato também verificado entre os Zuruaha.
Outro
motivo mencionado pelos pajés seria a pessoa estar “com desgosto”.
Nesse
momento, a pessoa “pegava uma corda de curaua e
amarrava em uma pedra,
se jogando em um poço fundo, na água”. Havia, assim, a precipitação de
um lugar
elevado, como rochedo, seguido de afogamento.
Uma
condição frequentemente observada era o ataque de kanaime,
por
intermédio do feitiço, que levava ao suicídio. A morte voluntária
decorre de
ataque de kanaimîye'.
Por
outro lado, pelos relatos desses pajés, não existia antigamente o
enforcamento
(i'mîtunîku);
este fenômeno
teria
surgido “após o contato com a civilização”, ou seja a sociedade
envolvente.
É
preciso entender qual é o significado do gesto suicida para cada pessoa
e o
valor deste gesto para a cultura a qual pertence, a partir da
cosmovisão e da
explicação dos próprios indígenas. Os rituais proporcionam um meio de
expressão
e alívio das emoções, além de simbolizar apoio psicológico e coletivo.
No
entanto, o suicídio seria um recurso cultural ou uma alternativa
individual
para o enfrentamento de uma crise?
Segundo
uma narrativa mitológica karib, a qual foi coletada por Koch-Grünberg
(2006), o
mito
Macuxi
(também encontrado entre os Tembé e os Wapichana) “O Homem que casou
com a
filha do urubu rei”, há o relato de uma tentativa de suicídio devido a
sentimento
de desgosto. Após uma epidemia de doenças (febre, catapora/varicela,
sarampo,
gripe, coqueluche) muitas pessoas morreram, ficando os corpos
apodrecendo, só
sobrevivendo um rapaz denominado Estevão, que desgostoso, atirou-se
entre os
cadáveres na expectativa de também ser comido pelos urubus. Na história
ele foi
salvo pela filha do urubu para o trabalho forçado (Koch-Grünberg, 2006;
Medeiros, 2002). Assim, um comportamento autodestrutivo surgiu como
modo de
enfrentamento da perda dos familiares em um momento de crise social.
Nesta
perspectiva, para os Mohave, segundo Devereux, há uma origem mítica da
morte de
acordo com o mito de Matavilye, que decidiu que o homem deveria ser
mortal, a
fim de que a terra não se tornasse tão populosa. Estando doente, ao
sentir
necessidade de defecar, se dirigiu até a porta de saída, porém no
caminho tocou
nas partes genitais da filha, o que a irritou, deixando-a ofendida, uma
vez que
seu pai queria defecar. A filha, considerada a primeira feiticeira,
mergulhou
no chão e submergiu sob seu pai e engoliu suas fezes, enfeitiçando-o.
Matavilye
morreu, trazendo a morte para a existência. Na perspectiva da
autodestruição, a
primeira morte, que é a causa e o protótipo de todas as mortes sobre a
terra,
ocorreu devido a um ato de vontade: Matavilye decidiu morrer. Portanto,
a morte
prototípica foi um suicídio vicariante de substituição (Devereux, 1996:
484).
Por
outro lado, pode-se refletir sobre o espírito apîîko'
que leva a um
quadro de tristeza, inquietação e insônia entre os Macuxi. Estes
indígenas empregam o termo
“desgosto”, no sentido de mágoa, tristeza,
como sendo um estado vinculado ao fenômeno do suicídio. Apîiko'
é
um O'ma' wî'tawon, um espirito agressivo, que
habita serras e rochas.
Segundo o relato de um pesquisador indígena, Apîiko'
recolhe o espírito
humano e prejudica a aparência da pessoa, causando tristeza,
inquietação,
insônia e pesadelos. Apenas o Piya'san
ou Pajé
pode curar a pessoa, reintegrando o seu espírito (Raposo, 2008).
Essa
crença em uma causa mitológica para a tristeza é um modo cultural de
enfrentar
o suicídio. Perceber os conflitos e dificuldades de relacionamento como
desencadeadores de sofrimento psíquico que contribuem para uma atitude
autodestrutiva é um outro modo de lidar com o suicídio. O Piya'san tem
sensibilidade para
notar essas modificações no meio ambiente e
na relação com o meio espiritual.
Quando
os Omá:kon aprisionam a alma humana (Stekaton),
a vítima adoece e
acaba morrendo. Somente o Piya'san, o pajé, pode
neutralizá-los, pois
tem a capacidade de vê-los. O pajé pela ação terapêutica, em sessão
xamânica,
de “bater folha”, quando emprega as folhas de planta mororó, pode curar
feitiço, ao resgatar a alma aprisionada e impedida de retornar ao
corpo, uma
vez que transita entre os planos cosmológicos, pois domina as forças
espirituais na relação entre os mundos real e sobrenatural, e
decodifica as
diferentes percepções. De acordo com a crença macuxi, o temido kanaime
representa um espírito maléfico, que por vingança, raiva, ataca uma
pessoa sozinha,
batendo-lhe até matá-la. Esse kanaime, cujo
espírito pode se transformar
ou invadir o corpo de um animal, age por intermédio do feitiço, vivendo
em
ostracismo social; decide matar alguém, atacando também crianças. O
ataque
fatal envolve lesão genital e anal da vítima (Diniz, 1972; Raposo,
2008; Santilli,
2001).
Em
síntese, o suicídio vitimou sobretudo crianças e jovens macuxi do sexo
masculino, ocorrendo geralmente por meio do enforcamento, dentro de
casa ou no
entorno, em árvore próxima, tanto em situação de isolamento como na
presença de
familiares. Uma abordagem antropológica desse fenômeno auxilia a
perceber como
o ato suicida acontece na comunidade indígena. Um Caso
de Suicídio infantil
Para
situar minha intervenção, apresento apenas um caso do material
compilado do
estudo retrospectivo, baseado na autópsia psicológica. Adoto um nome
fictício
para a criança em função da necessidade de sigilo. Trata-se de um caso
de
suicídio infantil ocorrido em 24 de abril de 2000 em uma comunidade
indígena
macuxi localizada na etno região Surumu, do norte de Roraima.
Ricardo,
um menino macuxi de nove anos, cometeu suicídio por enforcamento com o
punho da
corda da rede de dormir, que estava pendurada. Ele realizou o gesto na
presença
de outras crianças, no alpendre da casa da tia materna, onde sua
família
residia, no início da tarde. Uma criança pequena notou o corpo do
menino
suspenso próximo ao chão e alertou os outros, porém Ricardo não
resistiu. Na
ocasião os adultos não se encontravam na comunidade. Antes do episódio,
pela
manhã, esse menino ficou contrariado por arrumar os vasilhames do
almoço e
anunciou que interromperia definitivamente essa tarefa.
Com
o intuito de elucidar o suicídio, estive na comunidade nos meses de
julho e
outubro do mesmo ano, ocasião em que realizei uma autópsia psicológica,
entrevistando sua mãe, sua professora e agentes indígenas de saúde da
comunidade. Verifiquei, a partir dos relatos, que Ricardo apresentava
uma
sintomatologia depressiva nos dias que antecederam o gesto suicida, sob
a forma
de retraimento, desinteresse e tristeza.
Segundo
a agente de saúde indígena, “um dia antes ele estava
triste, pelos cantos”.
Ricardo
era o segundo filho do jovem casal macuxi, o pai com 28 anos e a mãe
com 26
anos. Ele tinha um irmão mais velho, de 11 anos e cinco irmãs: de oito
anos, de
sete anos, de cinco anos, de três anos e a caçula de 11 meses. Sua mãe
estava
gestante e havia viajado para Boa Vista, onde teria permanecido por uns
três
meses. Nessa ocasião, seu pai estava ausente, acompanhando a esposa.
Segundo
a mãe, a prima e a agente de saúde, Ricardo “era uma criança séria,
obediente,
com hora para brincar, diferente dos irmãos”; parecia ser disciplinado,
“com
jeito de adulto”. Ricardo tinha bom relacionamento com as outras
crianças e com
seu pai. Ele costumava “caçar à noite e pescar com o pai e a família”.
Sem
dificuldades na escola, parecia uma criança responsável, dizendo que
“não
queria se casar cedo; queria estudar e ser vaqueiro”; ele “gostava de
lidar com
o gado” e “costumava usar faca desde mais novo”. Segundo a tia materna,
“igual
uma mãe”, considerada mãe nas relações de parentesco macuxi, os pais de
Ricardo
sempre viajavam; e as crianças costumavam ficar com ela. Na casa desta
tia, ele
costumava “arrumar a casa”. Pode-se questionar se Ricardo queria
realizar esta
tarefa ou se ele teria sido obrigado a executá-la, uma vez que havia
meninas no
local, habilitadas na atividade, que poderiam realizar essa atividade,
considerada uma tarefa feminina.
Assim,
na comunidade, que estava praticamente vazia, pois os adultos estavam
ausentes
da comunidade, trabalhando na roça, só as crianças, incluindo os irmãos
de
Ricardo, permaneciam reunidos na casa de sua tia materna. Portanto, no
dia em
que Ricardo praticou o ato suicida, suas irmãs menores estavam em casa
e seu
irmão mais velho dormia no quarto.
Pela
manhã, Ricardo teve uma frustração, pois “pediu mingau”, segundo a avó
materna,
entretanto a tia materna com quem Ricardo morava temporariamente não
havia
preparado esse alimento.
Da
mesma forma, Ricardo teria expressado uma emoção de contrariedade, ao
comentar
nessa mesma manhã, com as crianças, que interromperia definitivamente
sua
tarefa cotidiana de lavar as vasilhas: “não é todo dia, eu só vou lavar
hoje”,
disse Ricardo, que poderia estar no limite da tolerância com relação a
inadequação das normas de conduta masculina, aprendidas no processo de
socialização ou enculturação.
Por
volta de meio dia, enquanto as crianças estavam na varanda da casa,
encostadas
na mureta, assistindo a um desenho animado pela televisão, Ricardo
terminou
suas tarefas na cozinha e se dirigiu para a varanda, se sentando ao
lado das
crianças (irmãs e primas) na mureta, na extremidade esquerda, em frente
do
aparelho de televisão, que estava posicionado a um metro e meio de
distância
delas. No canto esquerdo do recinto, lateralmente e bem próxima desse
aparelho,
havia uma rede de dormir pendurada. Então, Ricardo enfiou o pescoço no
punho da
rede. De repente, uma garota olhou para ele e comentou que ele estava
“fazendo
bicho”. As crianças perceberam que Ricardo estava com a língua
projetada,
externamente, se sufocando. Elas tentaram socorrê-lo, sem obter êxito,
uma vez
que houve fratura do pescoço. Segundo os relatos das crianças: Ricardo
estava
pendurado pelo punho da rede, com os pés pendurados e balançando, ainda
estava
respirando, “com a língua para fora”, o corpo estava “mole”, Elas
tentaram
tirá-lo, mas ao cair, batera a cabeça no muro, “quebrando o pescoço”.
Uma
outra versão, trazendo a possível causa segundo os moradores, foi
mencionada
por uma prima adulta do menino. Ricardo teria sido vítima de ataque de
Rabudo,
ou kanaime, que faz mal aos outros. Ela comentou
que o irmão de Ricardo
teria ficado um período “temporariamente escondido no mato, com medo de
um
rapaz que estaria na região seduzindo crianças”.
Destaco
o impacto na comunidade dessa morte precoce e planejada. Pelas
narrativas da
família, percebe-se uma construção do significado do evento, pois
procura-se
apontar um culpado. Do mesmo modo como explicam a doença como sendo
extravio ou
roubo do stekaton (princípio vital) de alguém, os
Macuxi, em caso de
suicídio, sempre procuram um culpado, quem teria causado essa morte.
Portanto,
os familiares de Ricardo ficaram assustados, por atribuírem o suicídio
à
interferência de espíritos malignos, por ataque do kanaimî.
Nessa
comunidade havia um pajé/xamã/ Piya'san nos anos
1970. Ele poderia curar
feitiço e afastar os maus espíritos (Diniz, 1972). No entanto, por
ocasião do
suicídio de Ricardo, não havia mais Piya'san na
comunidade. Dessa forma,
os familiares de Ricardo ficaram sem referência espiritual para
orientá-los
quanto à conduta frente aos acontecimentos.
Por
outro lado, pela especificidade da dinâmica familiar indígena, frisa-se
que
essa etnia adota a divisão sexual do trabalho. Portanto, Ricardo não
apreciou realizar
uma tarefa considerada feminina, o que contrariava as normas sociais,
gerando
conflito e desvalorização. Pode-se falar em reação depressiva pela
expressão de
tristeza e desânimo que apresentava. Mas, para a família, Ricardo
parecia estar
bem, mantendo um bom relacionamento com as pessoas da comunidade,
fazendo as
atividades adequadas para um menino, como pesca e caça, brincando, sem
apresentar dificuldades na escola. Contudo, o fato de Ricardo ter sido
uma
criança “muito séria” parece indicar alguma dificuldade de lidar o
processo de
amadurecimento e inserção social.
Pela
passagem ao ato verifica-se a vontade de morrer da criança e o
sentimento de
impotência da população.
Como
já destaquei, o fenômeno é multifatorial, entretanto pode-se
enfatizar uma das explicações locais para o suicídio que é o
“desgosto”. Uma
vez que a doença se manifesta pelo viés da cultura, destaca-se entre os
Macuxi
a expressão direta de emoções. Por outro lado, cada indivíduo adoece
com sua
própria história. Dessa forma, enfatiza-se a trajetória de Ricardo,
como
acontecimentos, experiências, vivência psíquica, como sendo
determinante para o
gesto suicida. Algumas
reflexões
O
projeto de intervenção enfocou tanto
a ideação suicidária, os mitos e os modos de resolução de
conflitos (Devereux,1996), Por conseguinte, recorri às
ideias de Devereux (1996), segundo as quais o conhecimento da
mitologia indígena internalizada (sonhos, fantasias e modos de
percepção), além
da representação etnocultural, permitem uma compreensão da significação
inconsciente do fenômeno da violência intracomunitária e familiar, do
suicídio
e das condutas abusivas. É preciso entender qual é o significado do
gesto
suicida para cada pessoa e o valor deste gesto para a cultura a qual
pertence,
a partir da cosmovisão e da explicação dos próprios indígenas. Porém,
enfatizo que não
tenho a pretensão de esclarecer neste artigo as causas do suicídio de
pessoas
indígenas, em especial das pessoas macuxi.
Nota-se a
ocorrência do fenômeno do suicídio de crianças, em diversas culturas,
atingindo
desde um período precoce a crianças no início da adolescência. Neste
sentido,
modos de representação da criança, como a mitologia e o grafismo,
possibilitam
uma investigação indireta da população vulnerável em seu ambiente
cultural.
Neste sentido, o conhecimento da mitologia interna (sonhos, fantasias e
modos
de percepção) permite uma avaliação da intencionalidade da criança, da
ideação
suicida, do desejo de aniquilamento.
Por
sua vez, verifica-se
um conflito de gerações
nas comunidades indígenas, em função de novos valores e novas
necessidades que são impostos, afastando os jovens da vida em
comunidade, tais
como: a migração dos jovens para a cidade que acontece tanto devido à
demanda de
continuidade nos estudos, sobretudo quanto à educação superior,
contrariando os
mais velhos que consideram o aprendizado formal inadequado, tendo em
vista as
atividades tradicionais para a vida em comunidade, quanto à falta de
oferta de
lazer e de geração de renda na comunidade. Além
disso, o convívio de alguns jovens
com o mundo urbano acarretou novos conflitos e violências decorrentes
do abuso
de substâncias psicoativas (ingestão de bebidas alcoólicas destiladas,
sobretudo a cachaça, uso de maconha – canabinoides, inalação de cola e
gasolina
– solventes voláteis). Na verdade, eles estão vivenciando um momento
histórico
diferente de seus antepassados, o que acentua a vulnerabilidade social
dessas
crianças e jovens indígenas, que necessitam retraçar o próprio caminho
cultural. A comunidade deve pensar em alternativas para manter o jovem
integrado à comunidade (Gil, 2016).
Assim, enfatizo
alguns fatores de risco envolvidos nessa conduta, tais como: perda de
vínculos
culturais, transmissão intergeracional de história de exploração,
preconceito
étnico e violências na comunidade, fatores estes relacionados a abuso
de
substâncias psicoativas, o que favorece o conflito de identidade e o
sofrimento
psíquico (Cimi, 2013; Devereux, 1996; Gil, 2006).
Valendo-me
da abordagem interdisciplinar que permite uma reflexão
sobre padrões culturais de expressão das emoções e mecanismos próprios
de
resolução de conflitos, optei pela estratégia preventiva na interface
da
medicina, psicologia e etnologia., através da articulação com o principal agente do
sistema tradicional
indígena de tratamento, o Piya'san, no intuito de
conhecer a explicação
etnocultural do fenômeno suicídio, o que possibilitou a valorização das
estratégias tradicionais, especialmente a pajelança, para lidar com o
suicídio.
Realizei debates em reuniões comunitárias sobre o universo juvenil e fatores de risco,
com vistas a fortalecer a rede comunitária de apoio
psicológico. Destaca-se que nessas reuniões
comunitárias, as crianças se expressavam por meio de desenhos, nos
quais a
representação da violência e do alcoolismo estavam manifestados. Por
outro
lado, o suicídio estava presente nos diálogos apresentados e encenados
pelas
crianças.
Durante os
encontros
algumas soluções foram propostas para
o controle das violências, tais como: vigilância das crianças e
formação de
grupos de jovens. Essas estratégias de enfrentamento devem ser
valorizadas, uma
vez que são propostas coletivas locais que visam resgatar o convívio
tradicional, baseado nos valores culturais de transmissão
intergeracional (Gil,
2016).
Atualmente,
no âmbito da saúde indígena privilegia-se, pela perspectiva do modelo
biomédico, a abordagem do suicídio pelo viés da psicopatologia,
entretanto,
dessa forma têm-se possibilidades insuficientes para entender o
fenômeno do
suicídio. Sendo assim, faz-se necessário a complementação pela visão
antropológica e etnopsicológica, tendo em vista a especificidade dos
comportamentos no contexto de diversidade cultural.
Como
psicóloga e médica na comunidade apoiei o Piya'san e os agentes indígenas de saúde
(AIS) na compreensão das emoções e atitudes autodestrutivas
dessas crianças e jovens. Por
fim, o projeto de intervenção
propiciou
uma sensibilização da população indígena, com a discussão da temática
em
diversas comunidades e a
construção de estratégias de enfrentamento que respeitassem a
cultura e visassem o fortalecimento de respostas locais, ao
incentivar o fortalecimento da rede de apoio psicológico inerente
a cada comunidade.
Tentei
organizar uma oficina para orientar o AIS em sua conduta ao lidar com a
questão
da saúde mental e os casos de suicídio, no entanto, fui impedida pela
chefia
imediata no DSEI de abordar tais temáticas. Atualmente, esta é a
estratégia
adotada pelo Ministério da Saúde, no sentido da qualificação das
equipes em
área. Talvez, muito sofrimento pudesse ter sido poupado, se minha
iniciativa
tivesse sido aprovada. Considerações
finais
À
guisa de conclusão, o suicídio de pessoas macuxi tem vitimado sobretudo
crianças
e jovens do sexo masculino, ocorrendo geralmente por meio do
enforcamento,
dentro de casa ou no entorno, em árvore próxima, tanto em situação de
isolamento como na presença de familiares. Dessa forma, decidi realizar
intervenções, sob demanda local, no intuito de amenizar o sofrimento
dessa
população.
Embora
os Macuxi apresentem mecanismos próprios de resolução de conflitos,
alguns
fatores de risco nas comunidades, tais como: abuso de substâncias
psicoativas,
violências, abusos sexuais e conflitos de identidade étnica e de
geração, em
decorrência do contato intercultural, favorecem os comportamentos
autodestrutivos, o que implica novas estratégias de enfrentamento.
A
estratégia preventiva, através de debates em reuniões comunitárias, sob
demanda
da população, com o apoio de representantes das organizações indígenas,
OMIR,
AIS e professores indígenas, permite uma abordagem mais eficiente,
tendo como
foco da intervenção a escuta e avaliação dos sentimentos de crianças e
jovens,
os padrões coletivos de expressão das emoções e resolução de conflitos
e o
fortalecimento da rede de apoio psicológico inerente a cada comunidade,
valorizando-se estratégias de
enfrentamento que respeitem a cultura. Referências
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Artmed, 2004. Recebido
04/7/2018 Aceito
para publicação
04/8/2018 Notas [1] Algumas ideias
preliminares, em uma primeira versão
deste ensaio, foram apresentadas no evento I
Congresso Brasileiro de Prevenção
do Suicídio (Belo
Horizonte, ABEPS, 2015). [2]
Pamela Alves Gil, Doutora
em Psicologia (Universidade de Paris, 1997), Professora Associada do
Curso de
Psicologia da Universidade Federal de Roraima. Publicou: 1. Mulher Indígena: novos
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Higuchi, Maria Inês G.. (Org.). Nos interiores da Amazônia:
leituras
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indígena: tentativas de prevenção e intervenção. In Neuza F. Araújo
(Org.), Relações sociais e gênero: olhares
cruzados
América Latina Europa . Natal/RN: EDUFRN, pp.225-236, 2006. E-mail: pamela.gil@ufrr.br.
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