Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 20 Vol. 2 - 2018 - julho/dezembro



 Apresentação
 

Carlos Eduardo Ramos[1]

Eliaquim Timóteo da Cunha[2] 

 
 

A publicação deste Dossiê representa a concretização daquilo que os pesquisadores, profissionais, discentes e docentes que pensam a Psicologia Social por uma perspectiva crítica tomam como ponto de partida: que a ciência psicológica se articule com outras áreas do conhecimento, em especial a sociologia e a história, e, também, com outras esferas do saber, tais como a filosofia e a arte. Sem este diálogo, a construção de uma ciência que deveria ser pautada no compromisso social e ter como finalidade a busca pela garantia de dignidade a todos, corre o risco de tornar-se seu oposto: atuar em serviço de uma ideologia que justifica a dominação, e dessa forma, voltar-se contra si própria e contra seu objeto, a saber, o indivíduo em sociedade.

O final da década de 1970 marcou uma ruptura na Psicologia Social, no Brasil e em outros países da América latina, com a passagem de uma concepção do ser humano puramente biológica ou puramente abstrata, e com métodos e técnicas provenientes do pragmatismo científico estadunidense, para a consolidação de uma ciência crítica, de base predominantemente, mas não somente, materialista-histórica, com propostas concretas de ação e uma concepção de indivíduo como ser histórico e social.

No Brasil, desde 1980, a Psicologia Social tem como uma de suas principais representantes a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), composta por militantes que defendem ativamente ações no campo social, a promoção de encontros com pessoas dedicadas a práxis da Psicologia Social, a divulgação e desenvolvimento desta ciência, e a integração com outras áreas do conhecimento, uma vez que pautadas em uma perspectiva crítica. Esta instituição, no momento de sua criação, contribuiu com a ruptura acima mencionada, e fez dura oposição à Psicologia Social orientada por uma tradição pragmática e que não atendia à realidade dos países da América Latina. Ao longo das décadas, expandiu-se e formou núcleos em todas as regiões do Brasil. Atualmente conta com cinco núcleos na região norte: Belém, Santarém, Manaus, Rondônia e Roraima. Este último iniciou sua história no ano de 2013, formado a partir da iniciativa e interesse de professores, alunos, profissionais, membros de movimentos sociais e outros interessados. A cidade de Boa Vista atualmente possui dois cursos de Psicologia, e ambos apresentam em seu perfil de formação a valorização de um profissional/pesquisador atento às demandas da sociedade e compromissado com a atuação ética e cidadã. Dessa forma, a criação de um Núcleo da Abrapso no Estado pôde congregar essas pessoas e fomentar espaços de discussão e troca de experiências.

Com os anos, o Núcleo Roraima se expandiu, alcançando o objetivo de aumentar o número de associados da ABRAPSO e divulgar a Psicologia Social na região norte, com significativa participação nos Encontros Nacionais e Regionais, inclusive sediando o V Encontro Regional Norte-Nordeste, em 2016. Atualmente, sua coordenação constitui-se integralmente por alunos de Psicologia, engajados nas mesmas ações e princípios críticos que esta ciência defende. Acreditamos que, com a criação e expansão deste Núcleo, a Psicologia Social no estado pôde fortalecer-se ainda mais, por meio de ações, manifestos, pesquisas, enfim, participação e luta. No entanto, cabe reforçar que este campo da Psicologia no Estado não limita sua existência apenas ao Núcleo. Este apenas a potencializa. A Psicologia Social já tinha seus representantes no Estado muito antes da criação deste Núcleo, tanto no meio acadêmico, quanto na atuação profissional. E, de maneira independente, muitos psicólogos contribuíram e ainda contribuem das mais variadas formas para expandir e divulgar pesquisas que visam a compreensão da realidade social em Roraima pelo prisma da Psicologia. Desta forma, foram selecionados sete artigos neste volume, com diferentes temáticas, abordagens e formas de olhar para a relação entre indivíduo e sociedade. Cada reflexão apresenta um fragmento de uma realidade também fragmentada, e, portanto, impossível de ser compreendida de qualquer outra maneira.

No primeiro artigo, intitulado “Representações de Boa Vista: um estudo com professores da UFRR”, Leandro Roberto Neves e Naoma Gordon Melville buscam compreender as diferentes representações de professores da UFRR sobre a cidade em que residem. Pelo método materialista histórico, desenvolveram um questionário para a coleta dos dados e a análise do material empírico foi organizada em três grandes eixos: aspectos socioeconômicos dos professores; formação e profissão; e visão citadina. No primeiro, o fator de destaque foi o da distância dos professores de seus familiares como um possível fator de não permanência na cidade. O segundo eixo teve como foco os motivos que levaram à migração, relacionados a elementos profissionais. Destacaram-se a busca por realização profissional, estabilidade e um alto grau de satisfação com o trabalho desenvolvido na Universidade. O terceiro eixo apontou para a busca por melhor qualidade de vida, considerando a oferta de trabalho no setor público e os baixos índices de violência da cidade. Os resultados apontam para reflexões acerca da possibilidade desses professores fixarem-se na cidade. A grande maioria, ainda que se identifiquem com a mesma, pretendem deixá-la em determinado ponto da carreira profissional. Os autores ressaltam que a pesquisa apontou para uma confirmação da hipótese inicial do projeto, de que mesmo com uma visão positiva da cidade, está ainda abriga indivíduos que pretendem deixá-la em algum momento, o que os autores nomearam “um sujeito em trânsito”.

No segundo artigo, intitulado “Relato de experiência de acadêmicas do curso de Psicologia com um grupo operativo de jovens universitários em uma instituição superior pública no extremo norte do país”, as autoras Halaine Cristina Pessoa Bento, Melissa Seelig Pamplona Barros e Fernanda Ax Wilhelm apresentam relatos de discentes que participaram de um grupo operativo, cujo objetivo era acolher, amparar e integrar alunos a partir de suas dificuldades acadêmicas. As autoras puderam compreender o funcionamento dos grupos operativos e trabalhar temas como o ingresso no ensino superior, o distanciamento da família, o esvaziamento de sentido nas atividades acadêmicas em função do cansaço e da insatisfação com o desempenho, dificuldades em conciliar a vida pessoal com os estudos. Aos poucos, temas como o estresse, a ansiedade e o suicídio também pautaram as discussões do grupo, o que mostra a importância de se criar espaços em que as pessoas possam ser ouvidas e terem suas experiências compartilhadas.

 O terceiro artigo, intitulado “O direito à creche universitária: desafios da permanência de mães no ensino superior público”, foi escrito por Carlos Eduardo Ramos e Wellen Crystine Lima Peixoto. Os autores levantaram e discutiram os desafios da permanência de mães universitárias no ensino superior, bem como as políticas que possam contribuir para a qualidade do ensino e da formação em uma instituição pública de ensino superior. A partir do método materialista histórico, realizaram entrevistas com três discentes, e os resultados foram classificados em cinco categorias: maternidade, estudo e trabalho; deslocamento entre residência, universidade e trabalho; apoio da família/amigos/professores; políticas de permanência na universidade; e benefícios de uma creche universitária. Nas conclusões, os autores reafirmam a ampla defesa das políticas de acesso e, especialmente, a criação de uma creche universitária, para conduzir o ensino superior cada vez mais à uma educação pública e de qualidade para todas e todos.

No quarto artigo, “As filhas de Eva: um estudo sobre as relações de gênero e o lugar da mulher na igreja católica”, a autora Náiades da Mota Lima buscou  compreender as relações de gênero dentro do catolicismo, em especial, o lugar delegado às mulheres nesta instituição social. Partindo do método materialista histórico, a autora coletou dados, em um primeiro momento, por meio de um questionário on-line, aplicado às lideranças das comunidades católicas periféricas de Boa Vista, que contribuiu para mapear a atuação feminina nestes espaços; em um segundo momento, foi realizado um grupo focal feminino e um masculino com lideranças católicas locais. Os resultados apontam que o machismo na Igreja Católica, além de cultural é estrutural, se encontrando na hierarquia, na divisão sexual do trabalho e na representação do feminino. Finalmente, a autora destaca a necessidade de se trabalhar a temática de gênero nesta instituição e de se pensar na reforma política desta instituição social.

O quinto artigo, “Os sentidos da maternidade para jovens de Roraima, o estado brasileiro com o maior índice de gravidez na adolescência do país”, de Talitha Lúcia Macêdo da Silva e Halaine Cristina Pessoa Bento, traz os sentidos da maternidade para adolescentes residentes em Boa Vista em uma perspectiva fenomenológica-existencial. Por meio de entrevistas realizadas com mães adolescentes, as autoras encontraram diferentes aspectos acerca da vivência na maternidade: o primeiro trata da percepção de si mesmas como mãe; o segundo, os atributos que as participantes consideraram importantes ao exercer a maternidade; o terceiro aspecto são os sentimentos que perpassaram na gestação e que atravessam no exercício da maternidade delas; e o quarto e último, a importância das figuras de apoio e/ou referência. As autoras concluem que os sentidos da maternidade para estas mães adolescentes vêm sendo ressignificados juntamente com o cuidado da criança, na medida em que elas buscam a superação de dificuldades e barreiras, tais como preconceitos sociais.

O sexto artigo é de autoria de Tamiris Rayani Santos Barros, intitulado “O trabalho e suas implicações nos modos de subjetivação: um olhar sobre indígenas que trabalham na cidade”. Em sua pesquisa, a autora parte da constatação de que Roraima é o estado brasileiro que, proporcionalmente, tem a maior população indígena, ao passo em que, hegemonicamente, há uma representação da figura dos indígenas como entraves ao desenvolvimento e o progresso. Desse modo, a autora buscou refletir sobre efeitos psicossociais do mundo do trabalho nos indígenas que moram em comunidades situadas nas proximidades de Boa Vista, capital de Roraima, e que desenvolvem atividades produtivas nessa cidade. A análise teve como lastro o método materialista histórico, dialogando com autores da antropologia e da sociologia. Como resultado, a autora aponta que os impactos psicossociais que o trabalho imprime nos modos de vida e na comunidade dos indígenas entrevistados, dizem respeito à experiência de estarem divididos entre dois universos distintos, sendo que o anseio de virem para a cidade é sempre uma aposta e uma cobrança. Em relação aos valores sociais capitalistas, eles são incorporados tanto quanto são negados, e no meio desses lugares os entrevistados vão (re)constituindo-se e reelaborando alguns de seus dilemas e planos.

O sétimo e último artigo é de autoria de Pamela Alves Gil, “Suicídio de indígenas em Roraima: cultura e intervenção”. Discute questões do fenômeno do suicídio indígena no estado de Roraima e realiza contextualização com o tema em outras regiões do Brasil. Este trabalho demonstra como a temática é delicada e necessária, além de sua complexidade no campo social e acadêmico.

 


Notas

[1] Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professor do curso de Psicologia da UFRR. E-mail: carlos.ramos@ufrr.br

[2] Mestre em Antropologia. Doutorando PPGAS/UFAM. Bolsista na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) E-mail: cunha.antropologia@gmail.com.