A NOÇÃO DE CÁPSULA NARRATIVA

A ENTREVISTA, O TEXTO E O OUTRO

NA HERMENÊUTICA DO PRESENTE

 

            Alargamos, neste artigo, a noção de cápsula narrativa (Caldas, 1998: 39, 40; 1999: 100, 102) que, para nós da Hermenêutica do Presente, tem se tornado fundamental na constituição não mais de um documento, de uma entrevista ou de um corpus, mas de uma matéria de contato com o presente, o imediato do presente, as formações discursivas (Foucault, 1997), as classes, os grupos, as singularidades, as falas, o discurso, o texto, a ficcionalidade ontológica da nossa maneira de existir.

           Essa noção, ao mesmo tempo operacional e resultante das nossas perspectivas, mediando vários conceitos ao mesmo tempo, dispõe o outro e os outros enquanto dimensão plena, heterogênea, fragmentar e ficcional do diálogo para o diálogo no processo geral de colaboração e textualização (Meihy, 1990, 1991, 1996) como momentos da transcriação. É noção, por enquanto, essencial para a realização dos trabalhos no atual momento da Hermenêutica do Presente em sua configuração e atuação específica como História Oral, marcando não somente uma proximidade como um constante e franco distanciamento.

           O sujeito da minha atenção passa a não estar em mim nem ser uma realização do meu discurso, dos meus métodos, das minhas práticas, da minha posição; ele, no nosso diálogo, se opõe ao que sou com sua maneira de existir, e minha atuação não consiste em apropriá-lo, mas em deixá-lo afirmar todas as suas redes vivênciais, todas as suas determinações, caminhos e tecidos particulares, todas as suas diferenças, corpos, visões, desejos, sonhos, mentiras, sofrimentos, verdades, ilusões, crenças, devaneios, sintomas, palavras, limites e deslimites, importâncias e desimportâncias, ordens interiores, seqüências narrativas, temporalidades, voltas e revoltas; mas essa atitude não é para reproduzir o real, o como é ou como foi, ser mais fiel: não esquecemos que aquilo que é dito, pensado, lembrado ou sonhado é sempre uma narrativa, uma ficção e não o acontecido ou uma versão sobre o acontecido; essa ficção não reproduz nem representa o acontecido, sequer a seqüência do acontecido, mas como dizemos aquilo que entendemos como o vivido. O vivido mesmo, o realmente acontecido é sonho metafísico somente feito para o olho de um deus ou de um positivista camuflado, pois nos resta somente e sempre não mais que palavras, imagens, discursos (Por isso, Rigoberta Menchu (Burgos, 1987) e Binjamim Wilkomirski (1998) não mentiram, não falsearam: criaram ficção sobre ficção entre ficções: se eles mesmos e os outros acreditaram como realidade, o acontecido é diferente do narrado, temos tão somente o choque entre narrações e não o choque entre a "mentira" e a "verdade", entre o "acontecido" e o "não acontecido": para nossa maneira de ver há sempre um acontecido modelo (o realmente acontecido aguardando num lugar) que todas as "versões" devem se remeter para conquistarem o direito de serem verdadeiras, de serem reais).

           Tudo é sempre do presente e não do imediato do presente; por isso a dimensão humana por excelência é o discurso, a imagem, a palavra e não o real, a história, o mundo, também discursos. No imediato do presente fazemos tão somente a representação carnal e instantânea dos discursos, enquanto no presente preparamos o que nos faz mover, acreditar, desejar, sonhar e agir. Porque a nossa matéria de contato é nosso referente e não referência, é que podemos vê-lo atravessado e constituído por discursos que o antecedem e o ultrapassam. Mas nossa matéria de contato não representa, reproduz, indica ou documenta o que está fora dele. Sua condição de referente é fundamental para não se ver o texto como reflexo de um mundo real/matéria além dele, pois o mundo existe, mas não como coisa natural, realidade independente, matéria, sociedade e objeto. A sociedade não existe como concreto mas como ficcionalidade que pode ser completamente reconfigurada sem esperar nem a realização de leis sociais nem naturais, muito menos amadurecimentos revolucionários. Exatamente por isso é tão difícil modificá-la, pois não é o que chamamos sociedade, uma natureza mas uma virtualidade viva, tecido múltiplo e infinito de discursos em crença, trabalho, sonho e desejo.

           A nossa “vontade de conhecimento”, na perspectiva da entrevista e do processo de textualização, deve começar por acompliciar-se com o sujeito no poder que este tem de resistir-nos em sua singularidade, no poder que ele tem em dizer, dizer-se e dizer-nos, que o diálogo-entrevista deve apenas desenvolver e tornar mais nítido. A missão não é a de domar o sujeito, transformá-lo em conhecimento, em dado, em documento, em depoimento, em objeto do nosso estudo, mas dar mais nitidez aos horizontes e eixos dos nossos presentes, apreendendo melhor as ficções que somos, como desdobramos o presente no imediato do presente e em que e como o mundo nos transformou; como dizemos o mundo e como sua ordem se tornou, talvez inescapavelmente, a nossa.

           Para tanto, temos, depois do contato inicial com nosso interlocutor, contato social, explicado em linhas bem gerais nosso interesse em sua experiência de vida, deixando clara as questões técnicas e éticas da nossa entrevista, nosso interesse pessoal, mas evitando terminantemente falar no Título do Projeto, em História ou história, História Oral, História de Vida, cronologia, temas e assuntos, e até mesmo sobre nosso possível interesse maior (questão acadêmica e teórica), pois durante o trajeto, com certeza, seremos satisfeitos sem pedir, de antemão, o que queremos e queremos tanto saber; se bem que depois da primeira ou segunda entrevista devemos esclarecer o nosso interlocutor sobre tudo aquilo que ficou na sombra para não direcionar inicialmente sua construção e seu fluxo narrativo, a específica, única e delicada montagem ficcional que é sua vida.

            Dizemos normalmente, e não obrigatoriamente como uma frase-chave, ao nosso interlocutor aproximadamente como primeira “pergunta”: Agora que sabe por que estamos aqui, pode começar como quiser e por onde quiser. O resultado tem sido o de aparecer o eixo narrativo do próprio entrevistado; a sua temporalidade pessoal; princípio, meio e fim que dirigirá nosso trabalho de textualização (que conquista nova dimensão e outra maneira de ser feita), sem precisarmos mais refazer os eixos à nossa revelia.

           Temos, então, um nascimento voluntário para o início de uma fala, sem a interferência do hermeneuta, sem a condicionante de um nome, data de nascimento, uma filiação ou um momento qualquer de escolha do hermeneuta: tudo isso virá como decorrência. E, assim, iniciamos a configuração de uma cápsula narrativa onde poderemos, depois, inserir o restante da entrevista, das perguntas e respostas, escapando ao início e ao direcionamento inocente de todo interrogatório, tradicionalmente de toda instrução policial ou jurídica: Qual o seu nome? Onde nasceu? Qual foi o ano do seu nascimento? Qual é a sua idade? Qual é o nome dos seus pais? Qual sua profissão? Qual sua religião? Como foi isso? Como foi aquilo?

           Uma cápsula narrativa tem uma estrutura única, uma temporalidade específica; o depois da cápsula, onde, em sentido estrito, começa a entrevista de perguntas e respostas será, no processo posterior de textualização, incluído na cápsula narrativa, devendo fazer parte da sua temporalidade, estrutura e narratividade (ou não, pois o que vem depois do fim da cápsula pode continuar dali para diante, dependendo do que é dito, não dito mais ou constituído). O “antes” e o “depois”, aquilo que “aconteceu" antes ou depois do nascimento voluntário e do esgotamento da cápsula pela proximidade ao imediato do presente, deverão ganhar sentido somente dentro ou em relação com a cápsula narrativa, somente quando refizer as ligações simbólicas internas, onde não há estrutura, sistema ou ordem preestabelecida, mas uma organização narrativa onde tempos aparentemente dispares, coisas, homens e fatos, se dispõem, primeiro como dimensão particular de uma formação discursiva e, segundo, como o sentido e o significado singular pretendido.

           Porem, uma cápsula narrativa é instável, sem limite verdadeiro, sem um interior, em deslocamento constante, reconfigurando suas mediações a todo instante: a cápsula narrativa não é uma projeção ou uma expressão do real ou do sujeito, mas texto vivo, ficção de ficções, momento narrativo, singularização de contradições insolúveis, reunião de fantasmas, de discursos, de imitação e revolta, de rosto e massa, de uma memória e de um esquecimento, de uma permissão e de uma negação, de um espaço possível e de um lugar improvável.

           É o nascimento voluntário que dará sentido ao antes e não o contrário. A noção de nascimento voluntário é tanto uma origem da separação entre dois momentos da vida (reais ou não, mas instauração de uma temporalidade pessoal ou impessoal, início de uma fala, de uma ficção, de uma ordem, de um sentido e de um significado) quanto de uma vida vivida e contada como uma escolha narrativa, isto é, o ordenamento, princípio, meio e fim com seu encadeamento, expressão de um narrar e não de um ter vivido, mesmo que haja, para todos, uma inversão, onde o narrar e sua ficção fundante desaparece e o ter vivido toma seu lugar.

           O nascimento voluntário é uma escolha narrativa de origem do contar a vida por representar, tanto para o indivíduo como para sua "comunidade", uma dignidade, uma libertação, um crescimento, uma conquista, uma integração, uma realização, uma iniciação, uma dor, uma ocultação, uma vergonha, um protelamento ao núcleo, aos eixos, aos nódulos principais, que não pode ser invertido (a liberdade do hermeneuta na textualização diminui, pois nossa função é constituir o outro e não o outro-nosso ou o nosso-outro) para vir no começo ou em algum lugar deslocado a posteriori por que assim apagamos todos os passos e significados do protelamento, da ocultação, da mentira, da vergonha, da brincadeira, do medo, dos desvios, das indeterminações, erros, deslizes, estratégias, confrontações e dos labirintos narrativos que querem dizer e ao dizer se escondem e se mostram e são, por sua vez, autênticos nascimentos voluntários (uma das coisas que constituem o sentido é sua posição no texto e dele e seus fluxos na formação discursiva, suas relações à outros elementos textuais, discursivos e vivênciais). Portanto, o mesmo nascimento voluntário (e normalmente acontece, pois o dizer pessoal é antes de tudo formação discursiva) pode se reproduzir em várias entrevistas diferentes, como os "Desde que eu me entendo de gente", o "Quando eu era menino saía uma hora da madrugada prá cortar seringa", ou "Desde a idade de 10 anos que corto seringa ... só sei trabalhar na seringa" dos seringueiros que, normalmente, começam sua narrativa pela entrada no mundo do seringal, do trabalho e do mundo adulto; ou os Soldados da Borracha com sua vinda para a Amazônia com seu "Eu saí pra cá em fevereiro de 1943", ou sua dúvida "Eu tinha duas opções: vinha pra cá ou sentava praça pra embarcar pra Itália"; dos hansenianos com sua chegada no hospital: "Eu cheguei aqui em 76. Vinha um pouco doente"; ou os vários começos francamente "dignos e normais" dos presidiários: "Como um ser humano normal"; "Eu estudei no colégio padrão industrial profissional em Fortaleza no Ceara"; "Eu sou natural de Rosário O’este Mato Grosso"; "O problema deu tá aqui nessa região ... é que eu saí da Paraíba em aventura para melhorar a vida em Rondônia"; as benzedeiras e parteiras: "Meu pai conheceu uma senhora que incorporava espírito"; "Eu faço massagem ... faço passando a mão em cima do desmentido ... vou passando a mão com óleo. Deus me deu esse dote"; "Sou muito procurada por todo mundo ... todo mundo me conhece e eu posso dizer o que sei ... o que eu faço"; os moradores de uma comunidade a beira do rio Madeira "Sou filho daqui", "Aqui é farto de peixe".

           Mas ser o discurso, a cápsula narrativa e o nascimento voluntário, partes constitutivas das formações discursivas não quer dizer que encontramos sempre o mesmo começo, a mesma forma e a mesma formula, a mesma história ou "algo parecido". Não é o nascimento voluntário que integra alguém a um grupo, a uma classe, a um interdiscurso, mas o conjunto do seu discurso, onde o nascimento voluntário é mais um elemento, talvez somente o mais visível por estar no começo.

           O hermeneuta deve ter o imenso cuidado em não direcionar a temporalidade (nem sua leitura) porque é com ela e a partir dela que as singularidades ordenam e ordenam-se (n)a narrativa. As representações do tempo e a ordem vital específica de cada narrativa diz respeito a mais íntima estrutura, tanto da singularidade quanto das formações discursivas. É, antes de tudo, apresentação coletiva de tempo, de ritmos, de aconteceres e histórias; é como o indivíduo, a fala e o mundo dizem e se dizem como se tornaram o que são. Ao mesmo tempo, essa temporalidade específica é profundamente delicada. Dependendo da pergunta ou de uma "recomposição" numa textualização desastrada, o "eixo da vida", os "nódulos" podem mudar de sentido e de significado. A maneira como as imagens, os nódulos de significado, as palavras se constituem no e como texto, como elas se articulam, como se ordenam como cápsula narrativa não é aleatório, reorganizável numa textualização despreocupada. O trabalho da textualização não é o de espalhar ou concentrar "assuntos" e "histórias", mas garantir as articulações, os sentidos e o possível sentidos destas posições.

           Ao iniciarmos com perguntas sobre a origem, os pais, o nascimento, estamos não só direcionando mas, o que é pior, pondo no outro o nosso corpo, o nosso olhar, o nosso espaço, a nossa temporalidade ocidental, cristã, histórica, metropolitana, unilinear, encadeada e evolutiva sem haver percebido antes que tanto a naturalização universalizante dos tempos da phýsis, são, obviamente, tempos de determinada formação discursiva e inútil fora dos seus quadrantes, apesar de ter o poder de deformar outras temporalidades. Essa temporalidade dominante não é a única na ocidentalidade, mas o pesquisador age como se fosse. E não queremos marionetes mas homens para um diálogo além das meras objetificações tão comuns na Ciência.

           Nossa matéria de contato possibilita e abre-nos para leituras inesperadas, onde não encontramos somente nossas sombras projetadas sobre o papel, mas os fluxos vitais tanto das singularidades quanto do mundo que formatou e pôs em movimento cada uma delas. Mundo e singularidades ficcionais, mas ainda assim a única maneira de compreender, atuar e modificar a realidade, que não é coisa natural, mas presentificação de discursos e atuação deles enquanto imediato do presente. A nossa matéria, para se dizer exige outra forma de leitura, de interpretação, de diálogo. Essa leitura tem configurado, para nós da Hermenêutica do Presente, como um entrecruzamento entre as leituras de Bachelard, Barthes e Foucault por um lado, a Análise do Discurso por outro (sem se tornar parte desses discursos por partirmos de outro lugar e ter outros fins) e a própria Hermenêutica do presente com sua "ontologia", "método" e "perspectiva".

 

CADERNO DE CRIAÇÃO

ANO VI, Nº20, OUTUBRO - PORTO VELHO, 1999

 

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