AS HERMENÊUTICAS E A HERMENÊUTICA DO PRESENTE

 
 
            Tentaremos neste trabalho desenvolver os elementos para uma concepção que tente redimencionar as Ciências Humanas instaurando um conjunto interpretativo que trará elementos para uma Hermenêutica do Presente. Para tanto será necessário pelo menos dois grandes campos de atuação: primeiro, no “mundo das idéias”, onde se insere a questão filosófica da interpretação e, segundo, no “mundo das Ciências Humanas”.
            No primeiro campo, a Hermenêutica que chamaremos do Presente não é a Hermenêutica tradicional, aquela que interpreta o sentido das palavras, dos textos sagrados ou das leis; muito menos aquela que se quer como uma estrutura da existência humana, como gostaria Heidegger (IV: 1969, 1970, 1971, 1988), fazendo da interpretação o modo de ser do homem, criando uma teoria que se torna vítima da ocidental universalização da Razão, aparecendo aqui como constitutiva do próprio ser; ou aquela de Gadamer (III: 1977, 1993) e sua redução do ser à linguagem, criando um positivismo superdisfarçado e inteligente, mas caindo na mesma armadilha metafísica de Heidegger; nem a Hermenêutica Total de Eliade (I: 1972, 1983, 1989b, 1989c), principalmente pelo seu não enfrentamento dos paradigmas limitantes e paralizadores da ocidentalidade, aceitando-os sem contestação, criando um belo sistema geral das mitologias mas sem dissolver as armadilhas da “nossa” própria mitologia, tornando-se para as “outras” um pensador-cientista e para a “nossa” um crente sem contestação e consciência (Eliade:1983).
            Para Eliade a Hermenêutica “... classifica-se entre as fontes vivas de uma cultura” (I: 1989c: 80). Se para Heidegger é modo de ser do ser que é o Homem, para Eliade é modo de ser da Cultura. O mundo sai intacto dessas interpretações.
            A Hermenêutica de Freud (IV:1972a) mostrou-se insuficiente, ironia do seu próprio complexo de morte e castração. Sua aceitação dos pressupostos positivistas da ocidentalidade, só o fizeram radicalizar seus elementos, sem mudar-lhes o sentido; sua crítica, na verdade, é falsa-crítica: em vez de dissolver, constituiu em Ciência os velhos paradigmas ocidentais, universalizando-os mais uma vez. Como disse o tão “metafísico” Jung, “... o critério metodológico do tipo de psicologia que represento. Trata-se de um ponto de vista exclusivamente científico, isto é, tem como objeto certos fatos e dados da experiência. Em resumo: trata de acontecimentos concretos” (I: 1977a:8). O mundo ocidental, depois do falso e hipócrita horror à análise vienense, sai renovado e fortalecido. Sua lógica é a mesma de sempre. Seus “objetos de estudo” são os fantasmas da Razão voltando como objetos, como deformações doentias da consciência, não mais como razões e espírito; sua “volta” se dá como falsa interioridade, como exterioridade camuflada que deve ser estudada, ordenada, curada. Seus métodos não ultrapassam a positivista maneira de conceber e reproduzir o mundo.
            Bachelard (III: 1973, 1974, 1977a, 1977b, 1878a, 1978b), lutando bravamente contra os reducionismos cartesianos da ciência e da racionalidade, não consegue fugir ao cogito e ao logos, que, mesmo noturnamente poetizados, não se desmontam nas suas imensas mãos de anjo. No fundo sua poética parte de da Natureza e aceita a Ciência: seus horizontes.
            Levi-Strauss (I: 1976c, 1976d, 1976e, 1981) é a “conseqüência lógica” do longo trajeto aristotélico da nossa ampla mitologia ocidental; com ele a sedução do imóvel volta a nos cercar: seu olhar é o da medusa: sua Hermenêutica é tipicamente neo-positivista: sua meta é desistoricizar, caindo nos veios tradicionais do conceber o mundo tanto da ocidentalidade em geral quanto do horror ao vácuo da burguesia, tendo que preencher tudo mesmo que seja com significados imóveis e poesias matemáticas.
            Para Durand o processo de “... extinção do símbolo...” e “... o triunfo do “signo” sobre o símbolo...” (I: 1888: 24/25), assegurado inicialmente por Descartes (IV:1962a, 1962), coloca a imaginação no limbo, instaurando as virtudes científicas como método universal. Sua defesa da imaginação simbólica e sua análise de algumas Hermenêuticas são exemplares; a compreensão dos limites da Razão ocidental e da Ciência, embora não as supere, são fundamentais. No entanto, sua teoria paira no ar. Sua visão de mundo corta as amarras com o homem concreto, refugiando-se num além arquetípico. Uma História por sua perspectiva seria uma História de fantasmas, de sombras mitológicas, onde o mundo se desfaz em símbolo e significado, nada tendo a ver com as relações sociais concretas, com homens vivos, tendo como “fim teórico”, em vez de uma Hermenêutica, somente uma Teosofia camuflada. A Histórias do Imaginário é, na verdade, uma História estruturalista, uma História dos invariáveis, imóvel, vivamente idealista. O imaginário deve ser reconquistado como uma das dimensões, dimensão fundante, mas não exclusiva nem determinante, tão somente mais um elemento essencial na necessária multiplicação dialética dos sujeitos/objetos/significados/campos.
            Uma Historia do Imaginário só é possível porque estamos numa estrutura social onde os meios de comunicação de massas (Ortega Y Gasset: IV: 1957, 1960; Baudrilard: IV: 1985, 1990, 1991), a imagem, o signo, a informação tornaram-se a única visibilidade, deformando por fagositose todos os possíveis campos da temporalidade e do concreto, que só nos aparece agora como informação, imagem virtual, projeção televisiva, cosa mentaleque pensa que é o mundo e o único mundo. Sem essa concreta historia não seria possível essa imaginária história. Não que haja divisão entre as “duas”, porque na verdade são uma só e todas as duas só existem “mitologicamente”: é precisamente uma “determinação em última instância” o elemento deformador de qualquer estrutura histórica.
            Se o marxismo perde uma imaginação simbólica por ter os pés somente numa terra-imaginária que propõe ser a única realidade, comungando com o positivismo e a Razão ocidentais, as teorias do imaginário normalmente perdem o homem concreto, o fundamento vivo, em detrimento de um imaginário em-si, auto-gerador e gerador do mundo, substituindo assim os outros “universais” que dizia combater. Esses dois limites são, na verdade, dicotomias produzidas pelo campo de força do Capital.
            Com as Hermenêuticas Históricistas (Meineke, II: 1943; Lowy, IV: 1985) teoricamente tudo se tornou histórico. Essa historicização absoluta de tudo esqueceu de historicizar realmente a “História e a história”: tornou-se, sem querer, uma visão fechada em seu universalismo tipicamente ocidental, mito mistificado. Esse tipo de historicidade, que fundamenta muitas visões de mundo, é um trompe-l’oeil que faz do ser uma armadilha e da pretensa conciliação entre o real e o racional uma ponte entre “o mundo da identidade burguesa” e a racionalidade do senhor, fundamento de todas as racionalidades ocidentais. Na realidade, as visões da História são ainda etnocêntricas, mas depois de se haver superado os etnocentrismos mais explícitos, temos hoje matizes, restos de raízes e sutis inclinações imperceptíveis que deformam muito mais que a antiga xenofobia, principalmente porque se tornaram um verdadeiro espelho de Narciso purgado pelas agulhas de Édipo.
            A historicização da Razão não a salva de um necessário acerto de contas. Enquanto não se encontrar as armadilhas inerentes ao “nosso” modo de ser e de pensar, armadilhas que nos impõe acima de tudo e sobre tudo, não poderemos constituir uma Hermenêutica do Presente, aberta, polissêmica, real e vivamente histórica, podendo realizar sua sedução interpretativa, sem querer-ser ontologia, disfarçando a cancerígena universalidade do logos numa teoria que não faz mais que reproduzi-lo.
            Uma das funções da Hermenêutica do Presente não é de integração ou de simples interpretação: é antes de tudo crítica. Seu papel desintegrador é primordial. Sua negatividade é fundante: só assim pode se propor uma outra interpretação. Sua existência é demiúrgica: ela não colhe o sentido e o significado: ela cria o significado e o sentido do significante, cria o próprio ser, sem fugir de ser uma linguagem, de ser uma perspectiva em busca de sentidos e dissoluções. Os “estudos sociais” como Hermenêutica “reconquista” sua função primordial que é a de criar/interpretando o significado do humano e não somente o de “descrever o passado”, “estudar o homem”, “analisar conjunturas”, “entender o espaço”.
            No segundo campo, a situação das Ciências Humanas não é diferente do restante do conhecimento: está diante da esfinge: a universalidade da Razão e do Capital, sua mãe e seu pai; a identidade como princípio lógico hegemônico, não conseguindo compreender-nos como “mais uma perspectiva” mitológica; a Ciência como parâmetro de todo conhecimento e toda realidade, sendo na prática e no imaginário o único saber legítimo e verdadeiro; a inescapável e persistente perspectiva etnocêntrica; as racionalidades voltadas para si mesmo, sem força para resistir aos eixos produtivos; ontologias que na verdade são camuflagens da Razão ocidental; temporalidades prisioneiras das “percepções primárias” dessa mesma consciência fundada na Razão ocidental e nas formas sociais capitalistas, avalizando uma historicidade fragmentar reificada; a fragmentação dos saberes no interior do próprio conhecimento social. A conseqüência é que as Ciências Humanas têm sido variações em torno do “positivismo” mesmo ao se dizer contra e outra-coisa, principalmente porque a questão não é somente de perspectiva teórica mas se enraíza nos modos de ser da ocidentalidade.
            A defesa de qualquer Ciência Humana científica apresenta-se hoje de forma estranha: por um lado, os que a defendiam não mais a defendem, perderam as antigas esperanças de transforma-la em “ciência-natural do homem”; os que não pensaram no caso a defendem enquanto ciência e só enquanto ciência como cães danados, como se toda outra concepção fosse uma “traição de classe”.
            Nosso trabalho pretende ser a busca de uma Hermenêutica que, partindo de uma radical historicização dos campos teóricos, supere inicialmente algumas barreiras pratico-teóricas que são normalmente “não vistas”, tendo-se como certo algo que é, na verdade e bem antes de ser de classe, apenas perspectiva mítica, tomando os “altos ares” de Ciência e verdade.
 
CADERNO DE CRIAÇÃO
ANO VII, Nº23, SETEMBRO - PORTO VELHO, 2000