*. o espírito do “diálogo socrático” é o estofo dessa dimensão da literatura (que não começa com menipo de gandara ou termina com machado de assis, um sutil traidor da literatura menipéia) que, sendo essencialmente dialógica, se contraponhe ao plástico monologismo da oligarquia das letras e do lócus de inspeção. não é somente a “genealogia” da literatura menipéia, mas sua condição inescapável {como dizia ortega, “esta crítica de las costumbres vigentes, esta flagelación de la sociedad (...) con fiero ojo de cazador furtivo. (...) Le mueve el rencor. (...) en su forma extrema una literatura corrosiva, compuesta con puras negaciones”: o ressentimento tenaz, a ferocidade, o intratabilidade, a busca cruel e carniceira, a negação radical: sem concessão, sem negociação, sem consentimento, sem transação, sem cumplicidade}: sua trama, mesmo podendo se fazer fora da forma tradicional de diálogo, busca “dar a luz”, partejar o real não percebido, o real disperso em tempo e discurso, fazer o outro encontrar tanto seu programa pessoal (como, quando, por que, pra que, pra o que, pra quem fomos inscritos, tornados persona) quanto o próprio real enquanto virtualidade social sem perder sua essência ficcional: a sátira {a oferenda de vários frutos}, a paródia, o drama, a tragédia se unem pra “tornar patente” o viver. vai em busca de nódulos perversos, monofônicos, monodimensionais, lineares pra expor, pra se expor, tornando visível o que não é visto, mas é vivido como natural, social, pessoal, histórico ou divino. a teatralização interna {por personas, planos de oposição, temporalidades, radicais alteridades em autêntico confronto} é sua arma polifônica contra a voz única que não representa muitas outras vozes e posições, outros corpos e experiências: é uma voz que não se esconde, mas se revela e se supera.
*. a literatura menipéia não é feita pra alegrar o rei; alisar governos e instituições; satisfazer amigos e companheiros; receber prêmios depois de cantarem em pé e emocionados o nossohino; completar e dignificar o trabalho da repartição; realizar a lógica do senhor com a palavra dos servos; descansar leitores; enriquecer mercadores e mercados; criar espaço na mídia ou realizar vocações: é parte vital da busca pessoal, terrorista, masturbatória, de compreensão e interferência na existência. o escritor {funcionário, membro da oligarquia das letras} desaparece pra se torna um parresiata, um libertino: a parrhesia é sua língua e sua meta.
*. a literatura não está/não se encontra na língua, no povo, na tradição, na nação, no cânone, na cultura, mas “entre os homens”: se faz numa ação contra, em coagulações momentâneas de ficção, transversais de negatividade. sua forma de existência é de interstício {cavidade, abertura, fenda, fissura, fragmento, fratura, fresta, frincha, greta, racha, rachadura, resquício, rombo, ruptura, vazio}: entre-nós, o que penetra e reúne, o que rearticula pra ser, o que se esvazia pra se tornar, o que se torna por não ser, logo, traz o além de nós: o antes, o agora e o depois: o tempo como adensamento vivo da virtualidade: literatura é diálogo {o que não cessa, o que não para no limite}.
*. pôr em disputa as perspectivas: essa disputa requer uma forma: essa forma deve ser dialógica, fragmentar, polidimensional, hipertexto, tanto na “forma”, quanto no “conteúdo”: uma se transforma na outra, as duas se indicam numa luta inseparável: o resultado dessa guerrilha é a articulação do disperso, deixando de haver “a sociedade” pra se chegar à virtualidade.
*. não somente o confronto de pontos de vista, de corpos, de sexos, de tempos, de explorações, de idéias, mas articulações conflituosas das multiplicidades em devires da virtualidade, unindo os nódulos perversos, possibilitando a consciência do disperso e da alteridade, mas não pro “conhecimento” ou o prazer, e sim pro arsenal da negatividade.
*. forma flexível: forma-confronto: mutável, misturando, con-fundindo e penetrando todos os gêneros: presença do humor, do riso, do ridículo, do farsesco, da paródia, da paranóia, do grotesco {mas não pra fazer rir, pro prazer sutil do rei, pro deleite gordo dos que podem, dos que têm tempo}: forma geral livre das limitações espacio-temporais, da história, da dimensão jornalística do imediato: liberta do simples memorialismo: não se prende à verossimilhança ou usa ela contra ela mesma: não cai na descrição bairrista dizendo que é universal ou global: invenção temática e filosófica criando hipertexto onde se experimenta a articulação do inarticulado {o articulado é a idéia schopenhaueriana e o desarticulado é o real}, provocando a verdade, os sentidos, a vida social, as naturalizações e universalizações.
*. dimensões da forma menipéia: reordenamento: palimpsesto: escrever sobre outro texto, com outro texto, reordenando seus materiais, sua forma, suas palavras e imagens: corpo de aranha infestado por ovos de vespa: articulação entre tempos, corpos, intertextos, vidas diversas: método cinematográfico, técnica onírica, interferência e substituição: a ordem a ser seguida depende das escolhas pessoais: partes separadas se unem e juntas se separam: a estrutura nasce da reorganização virótica da outra: fundir personagens: separar em muitos um só personagem: misturar falas: substituir elementos: desdobramento do que está dobrado e dobramento do desdobrado: condensação, desdobramento, exageração, deslocamento, permutação, montagem: cortar, separar, unir: juntar planos, reestruturar cenas, criar seqüências nos vazios, esvaziar os cheios: cortar e recompor com sutileza, com lentidão, com violência, com suturas visíveis e invisíveis: não há corte errado: um novo sentido é construído durante a escrita do outro texto: o tempo é refeito: a reordenação cria nova seqüência e novas relações entre o “texto matriz” e o novo texto, que se tornam entre si tão distantes ou tão próximos quanto com qualquer outro texto: um texto se escreve sobre outro texto ao sabor da leitura-escrita: palavras chamam frases, denunciam idéias, atraem imagens, mistura parágrafos sobre parágrafos: o resultado é sempre o que se escreveu, não sobre o que se escreveu: o texto é somente pré-texto.
*. seres no limiar, em situações limites, em dimensões psicológicas, éticas e morais “anormais”. aquilo que destrói a integridade: o duplo, a loucura, o sonho, o campo de concentração, a tortura, a doença, a velhice, a coisificação, a exploração: mas tudo pra criar e recriar o hipertexto que é o real: não é criar o espetáculo dos horrores, mas desvendar o horror do espetáculo.
*. “violação dos discursos”, a “palavra inoportuna”, a franqueza, o des-mascaramento, a profanação, o desrespeito: “contrastes agudos”, passagens bruscas: “gêneros intercalados”, fusão de discursos, “multiplicidade de estilos”, estilos da multiplicidade, per-furação dos limites tornando tudo, toda estabilidade, relativo. tudo é “levado ao extremo”. pra desvendar, por exemplo, os tons pastosos, senhoriais, bacharelescos e servidores da Literatura brasileira é preciso levar eles até seu limite, suas contradicções, suas temporalidades viciadas, suas harmonias de tumor não percebido.
*. na literatura menipéia a essência do diálogo socrático, com sua dimensão irônica e a maiêutica, permanecem como matéria constitutiva, não como elemento descartável. não são “origem”, superados depois. são dimensões fortes: o encontro, o confronto, com a própria consciência, com a dos outros, com o mundo; a luta contra crenças, desejos, naturalizações; explorações, humilhações; a luta por uma cada vez mais clara consciência. a ironia não é jogo engraçado e sutil, mas demolição, enfrentamento; não é catarse, estilo, espiritualidade, mas compreensão do turvo, do equívoco, da dor, da distância entre nós. a maiêutica continua com sua força de parturiar (a Literatura pastoreia) a consciência (uma das principais “funções” da literatura), fazendo aparecer os programas básicos da singularidade e da virtualidade. essa literatura é libertina: não esconde o escravo, a escravidão, o horror das explorações, dos preconceitos numa boa escrita, num “bem escrever”, num “contar bem uma história”, numa confusão primária e ideológica entre aparência e tempo, não escreve pra “meu bom leitor”.
*. {o libertino não é aquele que tem bons costumes, o que inspira bons costumes e doutrina a moral, o obediente, o pio. o libertino escreve e lê a libertinagem: ele desdobra a libertinagem, o não querido por “fora dos panos”, mas o desejado por “dentro dos panos”. o libertino pode se dar o direito [ele mata também sem se dar ao direito, longe dos direitos] de matar o outro pro seu prazer, e esse direito não emana de uma permissão, de uma concessão, de um respeito a uma ordem constituída: o libertino constitui sua ordem e essa ordem se esgota na expectativa, no prazer e no gozo: sua vida é se libertar libertando o outro dos seus limites [os cordeiros têm horror-pânico ao liberto-lobo que lhe devora o bolo]. o libertino afasta, dilui, destrói os limites. faz fluir os limites: o limite não é o texto, não é o corpo masculino, feminino (todos dois são performances de papéis sociais travestidos de gênero natural ou cultural) ou homossexual (outra performance): o limite pro corpo não é nenhuma das novidades velhas: formicofilia, amalgatofilia, anastemafilia, autopederastia, ecouterismo, frottage, higrofilia, misofilia, acrotomofilia, zoofilia, dendrofilia, enema, tafefilia, necrofilia: também performances de discursos e de possibilidades de corpo, de desejo, de deslimite, de desrespeito: o limite é a melancia e o além da melancia; o tronco da bananeira, a banana, a cenoura e o além dos vegetais, além da brecha e da aresta das pedras: o limite é tão somente uma per-versão dos devires: sade emparedado sonhando corpos aprisionados [sade sabia a menipéia, era a menipéia: eixo formal da literatura menipéia: seu extremo e seu espírito]: caixas dentro de caixas: o vazio e o silêncio no centro. restam todos os limites sonhados no desejo: e o texto é bem mais que um corpo: o texto é um corpo de papel e tinta ou bits ou qualquer coisa que possa multiplicar ele: é um corpo de desejo negativo. pro libertino a grafia (texto e pré-texto) é porno-grafia. [nada mais querido e desejado que a pornografia e a obscenidade e nada mais negado e escondido (a sedução do lobo: ver e viver e desejar aquilo que vê, deseja e vive o lobo): há sempre muitas coisas sobre o pornográfico: ele é algo esmagado (entre) sobre outras coisas: escondido. dos textos do mundo nenhum é mais pornográfico que aquele da literatura: transgressão viva dentro dos devires da linguagem que se põe a gozar, pra nada, por safadeza, por pura maldade, por perversa-idade: há uma ofensa maior que escrever? kafka assim feria o pai: o pai que era ele mesmo.] a porno-grafia é linguagem trans-a-gressiva: é um constante levar ao limite, intermitente afastar limites, é um des-velar, mas o ve-lar do des-velar se faz no limite e no se afastar do limite, não num simples en-cobrir. o ve-lado do porno-gráfico é o mais des-velado dos en-cobertos: é o des-velado que não cessa de se des-velar e des-ve-lar seu próprio velamento: seu prazer, seu gozo ad-vém deste des-cobrir. o libertino é obsessivo e obsceno. até mesmo a normalidade é pra ele uma trans(a)gressão. sem a trans(a)gressão não há libertinagem, não há leitura, não há interpret-ação, não há a literatura menipéia. sem a pele, sem o buraco da fechadura, sem o esgar de prazer, sem a palavra rasgada em sua normalidade, não há o libertino. o libertino é aquele que vive com a con-tr-adição, com o i-lógico, o para-doxal, o des-medido: seu fluxo é cri-ar textos pra nada, pro gozo, pra respirar, pra des-dizer, pra contra-dizer: o seu é um dis-ser.}
*. ironia é denuncia, é exposição das monofonias, das dualidades satisfeitas, é sutileza que, ao “dizer uma coisa por outra”, não deixa de enfrentar, de con-testar essa coisa: é recusa à toda aquiescência, a toda passividade. a ironia socrática questiona o outro, o mundo e a si mesmo, aceitando o outro até o momento de fazer com que ele mesmo encontre seu fundamento vazio, suas crenças no ar, seus sentidos feitos por um mundo mutável, onde nós mesmos somos nódulos discursivos. ironia sem crítica, sem ação corrosiva, sem chicote na mão, sem guerrilha, sem vírus pra infestar sistemas, sem negatividade radical não é ironia, é exercício de estilo, é jornalismo, é crônica: “é para você, leitor amigo”.
*. a literatura menipéia é incômoda; ela sempre tem razão porque não tem partido, facção, grupo, bando: sua razão é contra todos; nem vencidos nem vencedores; sua acidez, sua cólera, sua indignação, seu ataque, seu terrorismo se dá contra racionais e irracionais, escravistas e abolicionistas, republicanos e monarquistas, ruralistas e metropolitanos, direitas e esquerdas, modernistas e anti-modernos, comunistas e capitalistas, nazistas e anti-nazistas, negros e brancos, judeus e árabes, homens e mulheres, amigos e inimigos, teistas e ateus, pós-modernistas e nacionalistas.
*. não há em “memórias póstumas de brás cubas” nenhuma “genialidade analítica e construtiva” (schwarz, 2000: 171), mas sabedoria de agregado, servidor e funcionário público, da perspectiva do escritor e, da obra, uma conseqüência da sua visão de mundo, construindo um pastiche de forma (que não era tradicional pra uma oligarquia das letras ainda em consolidação), que a crítica teima em ver como consciência (da obra e do autor), mas que não passa de estratégia de classe se tornando ficção pra servir dando a entender que é independente (estratégias do agregado e também da sua Literatura). o próprio schwarz desvenda a questão (como esse desvendamento vai contra sua visão não é “percebido”), mas rapidamente faz ouvidos de mercador quando diz que os personagens “ficam parecendo títeres” e o todo oculta “o arcabouço realista do romance” (2000: 171), que pra ele é uma virtude, não um sintoma {como se machado houvesse deixado uma consciência por dentro do texto, como se essa consciência não fosse índice da covardia senhorial e funcionária tanto do autor defunto quanto do próprio autor}. o espírito de escravo caseiro, de agregado, de servidor, de funcionário público, de empregada doméstica, de doméstico, de serviçal, de criado não são dimensões críticas internas do romance ou da sua obra inteira: ela, a obra, e ele, o romance, foram construídos com esse espírito, por esse espírito, pra esse espírito, com esse espírito, não contra ele, não pra desvendar ele ou deixar uma chave de consciência contra esse espírito: daí a posição central dessa obra no lócus de inspeção. “memórias póstumas” não é crítico ou filosófico, mas efemérides de um senhor com o mesmo espírito de “seu povo” (brás cubas e machado; don casmurro e machado). o que machado encontra e produz não é uma crítica ao seu mundo, não é a ironia voltada contra aquele universo, a produção de uma máquina ficcional capaz de destruir e iluminar, mas a maneira do escrever educado, contido, seco, respeitoso, capacho, mas ao mesmo tempo dando a impressão de liberto daquele mundo, espirituoso e independente (mostra y dizendo x quando realmente é y e diz y e somente y): agrada senhores e escravos, agregados e bacharéis, senhoritas e professores, alunos e trabalhadores. pra isso a forma menipéia serve como escudo, como camuflagem. sua plasticidade consegue esconder, inclusive, sua antítese, o que não se dá numa forma mais compacta, mais densa, mais fechada, mais explicitamente monofônica. a separação entre “os dois machados” não é porque antes havia um escritor menor e depois passou a atuar um grande escritor, mas é a luta de um espírito de funcionário público que lutou desesperadamente pra encontrar o “espírito de nacionalidade”, que era o seu, o do seu grupo e de uma imensa fatia da população. ele materializou esse espírito de agregado, de escravo covarde, de funcionário que “quer subir na repartição”, no conceito dos outros e da “sociedade”, quer ser respeitado “pelo que é”: sua escritura, sua Literatura, é escrita com o mesmo método usado pelos “brasileiros” pra sobrevivência diária num mundo hostil, autoritário e perverso.
*. a forma menipéia poucas vezes se realizou porque ela não é somente, como queria merquior, a) a “ausência de qualquer distanciamento enobrecedor na figuração dos personagens e de suas ações”: b) a “mistura do sério e do cômico”: c) a “absoluta liberdade do texto em relação aos ditames da verossimilhança”: d) a “freqüência da representação literária de estados psíquicos aberrantes”: e) o “uso constante de gêneros intercalados” (1998: 226);
ou como quer rouanet (2004), chamando a literatura menipéia de “forma shandiana” (simples e culto reducionismo), que é “uma atitude entre libertina e sentimental, um sensualismo risonho, um humor afável e tolerante, capaz de perdoar transgressões próprias e alheias, mas também de zombar, sem excessiva malícia, dos grandes e pequenos ridículos do mundo. Nessa significação, o shandismo é uma maneira de ver e sentir, no fundo, uma questão de temperamento, e, nesse sentido, podemos falar em personalidades shandianas, sem pensarmos em Sterne, do mesmo modo que aludimos a personalidades pantagruélicas ou quixotescas, sem em nenhum momento pensarmos nem em Rabelais nem em Cervantes”: e completa seu raciocínio com uma síntese machadiana: “Nessas linhas, Machado delimita uma família intelectual, composta de todos os autores que aderiram a uma certa "forma": Sterne, patriarca da família, dois dos seus "descendentes", Xavier de Maistre e Almeida Garrett, e a ele próprio. E vai mais além: dá contornos conceituais a essa forma. É uma forma caracterizada 1) pela presença constante e caprichosa do narrador, ilustrada enfaticamente pelo pronome de primeira pessoa: "Eu, Brás Cubas; 2) por uma técnica de composição difusa e livre, isto é, digressiva, fragmentária, não-discursiva; 3) pela interpenetração do riso e da melancolia; e 4) pela subjetivação radical do tempo (os paradoxos da cronologia) e do espaço (as viagens)”: e completa: “Machado de Assis definiu exaustivamente essa forma, mas não a nomeou. Para preencher esse déficit terminológico, decidi usar o adjetivo "shandiano", para deixar claro que a origem da forma está no romance de Laurence Sterne, Tristram Shandy”: incluindo e excluindo: “não me parece que Sterne possa ser incluído, sem maiores mediações, no veio central da tradição menipéia, porque esta, tanto em sua maneira clássica quanto na renascentista, aplicava-se essencialmente à sátira, à comédia, ao diálogo filosófico, enquanto Sterne extraiu da literatura menipéia uma forma aplicável especificamente ao romance. A forma shandiana é a refuncionalização romanesca da tradição menipéia. A esse título, podemos dizer que Sterne inaugurou efetivamente uma forma”: e arremata: “quatro características estruturais da forma shandiana: a hipertrofia da subjetividade, a digressividade e a fragmentação, a mistura de riso e melancolia, e a subjetivação do tempo e do espaço”:
poucas vezes se realizou a literatura menipéia porque quase todos eles (escritores e críticos aqui citados) se esqueceram não somente seu fundamento e eixo sempre em movimento (o diálogo socrático), mas sua “função corrosiva”, ácida, incontrolável, insatisfeita, deslocada, guerrilheira, terrorista, busca radical da verdade (não é só uma “uma questão de temperamento”, uma forma de ver ou um ver a forma): as duas condições essenciais, que podem e devem se somar às perspectivas de merquior e rouanet, redefinem (via bakhtin, 1981), os autores citados, excluindo tanto machado de assis, quanto xavier de maistre e, até mesmo, quem não poderia estar aqui, como garrett, incluindo o esquecido sade porque ele é incomodo demais, daí a preferência por sterne: filhos do mesmo século, mas um deles integrado, enquanto o outro é a libertinagem em estado literário puro, a menipéia em seu estado essencial.
*. machado de assis usou um pastiche de forma menipéia porque era um liberto {não era um libertino}, um agregado e um funcionário acostumado com as negociações, os arranjos, os dribles, os acertos, os ideais dos senhores, o que eles gostavam, queriam, desejavam, sonhavam, o quanto ele mesmo comungava com aquele mundo ridículo do “império”, da escravidão em paz, da república de todos. a forma menipéia usada por ele {também por xavier de maistre e almeida garrett com a mesma maestria de servidor ou de filho de alguém} não ofende ninguém, não desrespeita e, ao mesmo tempo, demonstra autonomia, liberdade, que também agrada ao senhor {o bobo da corte pode muita coisa, pode quase tudo, inclusive usar uma cambalhota inesperada, uma piada pós-mortem, um estilo atrevido}, sendo irônico quando devia ser terrorista, sendo romântico quando devia ser realista, sendo realista quando devia ver além, sendo nacionalista quando devia reconhecer a máscara do senhor, os dentes do senhor e não rir pra ele, não fazer parte do seu mundo com todo o desejo do corpo e da alma. machado não usou seu pastiche de forma menipéia pra combater seu mundo (e seus textos também, independentes do autor, também “não fazem nada”: ficam ali parados suspirando na treva, coniventes com o monstro), a si mesmo e aos outros, mas pra ser respeitado, pra se tornar um igual, um mais. nele a forma menipéia foi usada apenas pra camuflar, pra confirmar o espírito de agregado, pra fazer parte do arsenal do funcionário público, confirmando aquele mundo. “memórias póstumas” é o “grande momento” da Literatura brasileira porque representa seu instante-instaurador {seu eixo, seu ideal, seu orgulho}: quando o “espírito nacional”, amadurecido pelo “instinto de nacionalidade”, domina a forma, a escrita, o ritmo, a temporalidade, o corpo, o estado, a oligarquia das letras, a escola, o território, a língua, passado e futuro: o lócus de inspeção está maduro, está pronto pra se reproduzir.
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