MITOLOGIAS

 

 

AS IDÉIAS DE MITOLOGIA

 

            A Filosofia Grega “reinterpreta miticamente” os elementos mitológicos. Esse tipo especial de “mitificação”, “resultado” do trabalho do mito que vai se constituindo e se chamará Razão, instaura uma dicotomia alienada (dicotomia porque esquecida do seu próprio fundamento, estrutura e função) que acompanhará a cristalização dialética tanto da identidade quanto da diferença que marcará tanto a Antigüidade Clássica quanto a cristandade, dando-lhes uma das faces essenciais da ocidentalidade. Essa dicotomia entre o racional e o mítico é o reflexo de um processo, não de uma “evolução do Mito à Razão”, mas da instauração de um novo mito fundamental para a universalização da teoria como manifestação do ethos grego ou, posteriormente, cristão. Para isso a Razão apresenta-se como o anti-mito, a anti-mitologia por excelência, o “universal” do ethos grego enquanto pensar do humano. Aquele “algo” que pensa sobre sem ser aquilo sobre o qual pensa, sem nada comungar com seu tipo de existência, criando a metafísica própria da Razão, meio e atmosfera onde ela consegue viver, ter validade e legitimidade. Nessa separação, nessa dicotomia fundante, nessa “primitiva” lógica digital, encontra-se, estranhamente, a origem que formatará toda a Razão grega e mesmo as Razões posteriores. Na verdade, não há uma separação entre a Razão e o Mito, ou o descolamento da racionalidade do mitológico, mas a instauração de uma projeção viva mitológica que se chamará Razão.

            Platão opõe a “Mitologia Popular” à sua interpretação filosófica. Ele simboliza-os, apreendendo seu fundamento ao invés de dissolve-los. No entanto, o platonismo retém algo do mitopoético, criando, na ocidentalidade, um campo de tensão entre a Idéia e o Real. Para ele a mitologia se enquadra no âmbito da poíésis, o que é extraí-la do “seu mundo” e enquadra-la um conceito vindo de um mito esquecido que é mito. Poíésis que constrói parte de sua identidade conceitual dizendo-se depositária das histórias sobre deuses e heróis, sendo a mitologia, portanto, apenas uma parte dessa mesma poíésis enquanto arte separada, modelada por seu conteúdo. No entanto, Platão condena o mythos como prejudicial, preferindo o logos que representa a divindade “como ela é”. Enquanto “literatura” o mythos pode ter direitos, não enquanto realidade, enquanto aquilo que diz o verdadeiro.

            O logos tornou-se um tipo de mythos que se pensa no “cérebro” em vez de ser pensado no “coração” e no “coração da comunidade e da tradição”: ele representa um deslocamento virtual que corresponde aos processos sociais do mundo grego: não só para o “cérebro” de todos, primitivamente ou em estado larvar, mas fundamentalmente nos “cérebros” privilegiados daqueles que pensam com a Razão e o rigor da lógica: o poder do senhor tornou-se natural e um privilégio essencial e distintivo.

            A esse deslocamento corresponde outro: há um deslocamento do “verso” para a “prosa”, do poético ao filosófico (e o poeta é expulso do Éden público da República): o sagrado se desloca desse deslocamento: deixa de ser palavra de ritmos, imagens e deuses para ser palavras sobre o visível tornado universal e invisível metafísico. Lógica tornada Ontologia.

            Para Aristóteles “... o mito é tecido de maravilhas...” (1969: 40). Demonstra sua importância na ação trágica e o faz parte constitutiva da tragédia (1966: 74), colocando-o em relevo ao dizer que “... o mito é o princípio e como que a alma da tragédia...” (1966: 75). Sua perspectiva do mítico é racional e racionalizante: “É necessário portanto que os mitos bem compostos não comecem nem terminem ao acaso, mas que se conformem aos mencionados princípios" (1966: 76).

            Sua idéia de mito é a de narrativa primordial. Para ele mito é utilizado como arquétipo. Mas sua ação racional sobre o mítico se faz por inclusão, jamais por equivalência ou por igualdade; visão que, no fundo, caracterizará, junto com a paralela perspectiva judaico-cristã, toda a ocidentalidade. A “... estrutura interna do mito...” (1966: 80) é racional, lógica, funcional, externa e objetificavel.

            Com Aristóteles a estrutura do mito já começa a ser julgada segundo critérios dicotômicos (digitais - 0 ou 1). A Razão pensa-se enquanto antítese do mítico: ela já é outra coisa: bem superior e mais complexa, caminho lúcido à verdade enquanto o mito passará a carregar todos os fardos noturnos, ctónicos, deformados do mundo: será cada vez mais o outro en­quanto infantil, bárbaro ou primitivo.

            Aristóteles inclui o mito em seu sistema, mas apenas enquanto estrutura domada, com “... princípio, meio e fim (...) bem composta...” (1966: 76). Tornando o mito uno (1966: 77), Aristóteles o devora numa lógica adestradora, linear, especular, onde a face da Razão já não vê outra coisa que a si mesma. O mito é, na verdade, classificado (1966: 79) como qualquer coisa, exterioridade, podendo assim ser manipulado (1966: 83). Seus componentes são definidos (1966: 80/85). Com a constituição da tragédia vai também se instaurando a Razão e sua identidade.

            A narrativa histórica (Aristóteles cita Heródoto) separa-se da poética; torna-se um dizer “... as coisas que sucederam...”, critério pretensamente fundado no mundo mas que é o mesmo que dizer na Razão porque o mundo será julgado pelos critérios racionais. Ao poeta cabe cantar “... as coisas que poderia suceder” (1966: 78). Imaginação criativa e História não mais se unirão (na verdade todas as “matrizes” míticas da ocidentalidade são realistas, seja o verdadeiro deus hebraico, seja o histórico deus-homem cristão, seja a razão, o mundo ou a história, tudo isso não pertencendo mais ao poético, ao acreditar ou ao “nosso mundo”, mas a um existir universal e não a qualquer existir mas a um existir que devora os outros e abre imensas possibilidades de expansão e domínio não somente “ideais” mas torna-se fundamento ideológico de todos os tipos ocidentais de colonialismo).

            Na verdade Aristóteles é um dos iniciadores do processo de fabulização do mito, fechando o ciclo lógico que dissolverá o entendimento de si mesmo enquanto mítico, universalizando seu modo de pensar, inaugurando a prisão racional sem limites.

            Na verdade já não há mito, mas uma idéia de mito, um véu conceitual que capturou a sombra do mítico e o confunde platonicamente com o mito vivo: teremos, de agora em diante, um mítico criado pela Razão: é com esse fantoche que a Razão ocidental manterá acirrado e longo combate (estranho combate esse de um mito contra os mitos), lutando, na verdade, com suas próprias ilusões: esse fantoche nos chega até agora na forma etnocêntrica ou objetal de tratar o mítico e a mitologia. Ao mesmo tempo a Razão se estabelece: com as devidas oposições a face da Razão se delineia. Tendo um outro a que se opor consegue estabelecer sua identidade e diferença, principalmente enquanto mítico descarnado e anti-tradicional: a Razão aparece por ser uma estrutura estranha ao tradicional, criando, com sua pretensa universalidade e rigor, uma autonomia perante sua própria criação que é ela mesma: a novidade da Razão é que ela nasce de forma “cerebral” e não das “normais” maneiras da tradição: seu local de nascimento é o “cérebro” e não a poíésis tradicional, mesmo que esse “cérebro” seja uma poíésis tradicional esquecida do que é: o que instaura a Razão é a alienação da criação grega do seu próprio ato de criar: essa alienação será também a mesma da cristandade, se bem que com outros fundamentos e razões. Mythos e Logos não se opõem mas são faces da mesma coisa.

            Na “idade média”, há um “desaparecimento”, pela literalidade interpretativa da Bíblia, do “universo pagão”, do mítico tradicional, num processo de demonização, erro ou ilusão dos “deuses antigos” ou das culturas cristianizadas. Para a cristandade seu eixo mítico, jamais entendido assim, é o único e o verdadeiro e a experiência e a vivência com seu eixo mítico é pleno.

            No “Renascimento” a Mitologia, aquela mitologia criada pela lógica digital e de domínio do logos grego, torna-se alegoria, poética e moral, expressando sentimentos e paixões, alegorizando verdades filosóficas, religiosas, científicas ou históricas, mas sempre no eixo cristão e suas oscilações.

            O “iluminismo”, expressão viva do mundo burguês em franca expansão, compreendia negativamente a Mitologia, sendo a emanação do erro e da ilusão, do engano e da ignorância. É um dos momentos ocidentais de recriação universalizante do corpo, da sociedade, de deus e da Razão nos moldes burgueses ainda com validade geral.

            Tanto a vertente filosófica grega quanto a vertente cristã ou mesmo a racionalidade burguesa, sempre viram a si mesma como a verdade, racionalidade que supera a fantasia, o equívoco, a “primitividade do mítico”, criando para si mesmo a certeza e o sentimento de que sua órbita era onde poderia se encontrar a verdade, a realidade.

            Com Vico (1978) inicia-se a interpretação mítica de outra perspectiva, já que o mundo burguês além do seu centro ordenador, vive as mais díspares teorias e modos de viver e sentir. Ele ataca diretamente a idéia cartesiana de progresso histórico. O cartesianismo opunha uma “época da imaginação” a uma “época das artes mecânicas”, com evidente supremacia desta última. Vico, ao contrário, parte da dialeticidade do desenvolvimento histórico, onde ganho e perda são inseparáveis, tendendo para uma idéia de história cíclica, ao mesmo tempo reprodutora dos ciclos “humanos” de infância, juventude e maturidade, ou, segundo ele as épocas divina, heróica e humana. Cabe, segundo ele, à infância da humanidade a criação do mito e da poesia como “... uma faculdade que lhes era conatural...”, mas Vico via essa Mitologia como “... de uma ignorância de razões ...”; o mito como correspondendo “... a natureza das crianças...”; ou “... em virtude de defeito do humano raciocínio...” a Mitologia nasceu e vigorou. Relaciona a um “estágio atrasado”, cultural e historicamente, a vigor da Mitologia e sua própria existência. Essa idéia vai ter eco em toda ocidentalidade, desde Marx, que considera tragédia grega atraente por expressar a infância sábia, até o pensamento antropológico e histórico, que não sabem ver outras Mitologias sem abandonar o persistente sentimento de que os “outros” estão “num estágio primitivo, bárbaro ou simples”.

            De qualquer maneira para Vico o mito é uma verdade histórica, expressando formas básicas do humano. Para ele o pensar mítico era identificado com o pensar poético, nesse ponto não diferindo de Aristóteles.

            Em Vico encontramos em germe muitas idéias que “antecipam” Herder, princípios da filosofia da História de Hegel e sua teoria cíclica renasce em Splengler e Toynbee. E quase todas as tendências no estudo do mito, como as idéias de Durkheim, Cassirer e o pré-logismo de Lévy-Bruhl.

            Com a concepção romântica temos Herder, para quem o mito representa a naturalidade, a emocionalidade, o poético e a singularidade nacional que o interessava, mas a mitologia não o interessava por si mesma mas como parte da alma de um povo. Para o Romantismo a Mitologia é vista sobre o prisma estético, modelo de criação artística, dando ênfase ao simbólico do mito, “superado” o alegórico como centro interpretativo.

            Para Schelling (1966) a Mitologia “... é condição indispensável e matéria primária de toda arte ... universo independente e totalidade poética ... o solo único em que podem brotar e medrar as obras de arte...”. A estetização da Mitologia não a resgata como dimensão humana, mas a reduz a “depósito primário” do poético. Para Schelling a Mitologia é uma das maneiras de revelação do absoluto na história.

            A abordagem romântica ao privilegiar o Simbólico em detrimento do Alegórico, aprofundou e abriu as portas para as teorias simbólicas da Mitologia em nosso século.

            Hegel (1972, 1986) deu o passo da historicização, não criando uma teoria do mito, desenvolvendo, no fundo, as idéias e intuições de Schelling. Para ele, a Mitologia antecede a Arte, sendo superada pela História e pela Filosofia. Todo seu grande sistema é em si mesmo uma grande mitologia moderna.

            Marx (1976) fundava sua idéia de Mitologia na linha Romântica, destacando o caráter artístico-inconsciente e sua importância como base e acervo da arte. Para ele a Mitologia e a Poesia Heróica surgiram numa “fase baixa do desenvolvimento” e se mantêm como modelo de criação, não podendo reaparecer novamente, indo de encontro a própria noção de mitocriação romântica, a eterna criação do mito. Para ele Mitologia é a “... infância do gênero humano”, fase perdida, morrendo quando o homem passa a ter domínio e compreensão das forças da natureza. De qualquer maneira, o entendimento marxiano da Mitologia não excede sua idéia geral sobre a religião como instância secundária ao fundamento econômico-social. Ela é somente uma “ilusão” ideológica, inversão do mundo real, não tendo história da mesma maneira que nenhuma “instância mental secundária” também possui.

            Seu sistema, ou sua Ciência, aceita a Razão ocidental integralmente, não havendo, por haver “adotado” a perspectiva do trabalho em detrimento da perspectiva do capital (Lukács: 1974, 1979a; Löwy:1987), uma “superação dialética” da Mitologia ocidental e ocidentalizante, havendo da sua parte um fascínio constante não somente pelo capitalismo mas por aquilo que é a ocidentalidade viva, não apenas na “cultura” mas, principalmente, quanto aos componentes utópicos e míticos que a sustentam sem a superarem, tornando-se o próprio marxismo, em grande parte, um dos suportes dos principais sistemas míticos da ocidentalidade.

            Todas essas tendências anteriores tem em mira, e como horizonte, a Mitologia greco-romana. Sua tendência básica é a persistência da essência etnocêntrica, nos gregos por sua propalada “superioridade filosófica”, desaparecendo “o mundo bárbaro” como interesse real, e no mundo cristão pela exclusividade religiosa da sua perspectiva, existindo somente o seu Deus, o seu cânon, a sua forma de ver e viver, todo o resto precisando ser urgentemente cristianizado.

            A segunda metade do século XIX viu surgir duas escolas no estudo do mito: a primeira, a de “Mitologia Comparada”, explicava a origem do mito como erro, ilusão ou por deslocamentos semânticos, numa espécie de patologia da língua, tendo Max Müller como líder da escola, para quem a Mitologia era um produto inconsciente da linguagem, sendo, portanto o homem sua vítima, não seu criador.

            A segunda escola, antropológica, foi o resultado da Etnologia Comparativa e da Antropologia. “Seu elemento principal era os povos primitivos e selvagens”, fora do tradicional círculo Europeu, num acirramento da busca da alteridade. Essa “busca compreensiva” de outros povos não ia de encontro a “vocação” do cristianismo, mas exatamente por sua “universalidade”, acolhia todos os povos numa totalidade cristã. Colonialismo e religião fundavam esse ecletismo permissivo, onde se consolidava as idéias de Humanidade vindas de várias matrizes.

            Tylor, por exemplo, partia do princípio da uniformidade mental do humano e com uma idéia de evolução cultural linear em progresso. Sua própria cultura era o ponto final desta evolução. O que entre os “povos primitivos” era estrutura viva, nos “civilizados” era uma “sobrevivência”, um “vestígio”. Para ele, a Mitologia nasceu por uma elaboração mental lógica e racional, como resposta ao incompreensível. No conjunto da Escola, elementos mitológicos são os germes da “concepção superior” do monoteísmo e da religião cristã assim como da racionalidade. Essa idéia evolucionista identificava a Mitologia como uma “ciência primitiva”, reduzida portanto a ser somente uma “realidade” pré-científica, privada de qualquer significado autônomo, novamente vista como erro e vestígios primitivos, uma realidade muito pouco partilhada por “nós”.

            Seu método comparativo partia do pressuposto de que os “selvagens Contemporâneos” representavam “estágios primitivos” do “desenvolvimento cultural” já atravessados pelos “civilizados”. A Mitologia era uma sobrevivência infantil, tentativa bruta, mas racional.

            Tylor dá corpo científico a um pensamento antigo e atual sobre Mitologia. A persistência dos outros como infantis e primitivo estágio nosso; Mitologia como seus pensamentos, crenças e costumes e o “nosso” como Religião; a certeza da “nossa” superioridade diante dos “selvagens”; a separação entre a Ciência/Filosofia da Mitologia; a ocidentalidade como unidade teórica, cultural e religiosa diante da diversidade primitiva e mítica.

            Todas estas idéias ainda estão vivas dentro da História, da Filosofia, da Ciência e do senso comum. Não são apenas “idéias”: elas representam, pela sua persistência, uma forma de afirmar a si mesmo e ao “nosso” mundo a identidade única de nós mesmos, nossa certeza de superioridade e ponto final da “Evolução”, orgulho cultural. Como Mitologia é identidade. A nossa Mitologia afirma-se diante das outras negando-as, principalmente depois de domina-las de todas as maneiras bélicas, religiosas sociais, criando nesse processo idéias, sistemas e mentalidades que, expressões vivas dos nossos deuses e dos nossos modos de produção expansivos, além de nos eximir de tudo que possamos fazer com os “outros, impõe essa identidade, não somente como única, mas essencialmente como superior.

            Quanto ao Método Comparativo, elemento fundamental de várias Ciências humanas, carrega a lógica do valor de troca: pressupõe que coisas dessemelhantes podem ser comparadas: podem ser trocadas: o que não pode se comparar não pode ser trocado, não troca substâncias: não tem preço: é único. Para que haja eficiência no método comparativo foi antes necessário que um determinado “homem” pudesse ser trocado e uma igualdade abstrata do Homem fosse constituída, no caso, pela burguesia; foi necessário ser criado o Homem, enquanto entidade natural universalizada. A igualdade entre “culturas” provém da igualdade burguesa, subjetividade universal. Cada Galáxia Mitológica é incomparável. O método comparativo, etnocêntrico, é filho da Idéia de Progresso e de História Universal: humanidade idêntica a si mesma, diferindo somente nas “Manifestações Culturais”, na aparência, na forma. Esse “evolucionismo mítico”, essa pan-mitologia deságua tanto em Mircea Eliade quanto em Joseph Campbell e praticamente em todos os estudos antropológicos que entendem e estendem “os outros” numa ampla rede mítica separada de “nós”, tendo com fundamentos conceitos como humanidade e uma lógica binária das mais pobres.

            A idéia de mito no século XIX foi uma riqueza espantosa. De um lado as concepções românticas, do outro a ciência. No entanto não eram concepções essencialmente diferentes, há uma apologia do mito e ao mesmo tempo um horror ao mito, juntamente com um desdenhar o mito. O elogio do mito vinha da esfera filosófica e artística, principalmente do teatral, demagogo e genial Wagner e do louco iluminado Nietzsche e suas concepções do Apolínio e do Dionisíaco. Mas Nietzsche (1978) identifica a Mitologia ainda como o irracional, o caótico, o instintivo, fazendo uma oposição com a simetria racional, a harmonia da arte, que tem, segundo ele, aproximação com a primeira idéia do mitológico. Para ele Sócrates “destruiu”, com seu racionalismo, comumente cético, a dinâmica viva da Mitologia grega, contribuindo, já que a privou da força criadora, para dissolução da cultura antiga. Quanto a relação entre os conceitos de mito e história, temos, com a concepção Nietzschiana, a idéia do Eterno Retorno e do caráter ilusório das categorias filosóficas, havendo necessidade de uma nova época do mito, para que se renovasse a “decadência moderna”. Tanto Wagner quanto Nietzsche antecipam vários aspectos das concepções de mito e Mitologia posteriores. Sua “adesão” a uma “filosofia da vida”, o levou a uma apologia do mito, mesmo não escapando da ocidental maneira de conceber a Mitologia como alteridade ou origem.

            Spengler (1964) e Toynbee, aproximando-se da concepção cíclica de Vico, exercerão influência nos estudos tanto de História quanto da Etnologia. Juntos com Bergson são “representantes de uma Filosofia da Vida”. Para este a inutilidade principal da Mitologia é a sua condição de oposição ao intelecto em sua caminhada a si mesmo e à liberdade. Representaria uma defesa natural contra a condição desintegradora da Razão, tendo a função de manter a vida e dosar os excessos da Razão que ameaçam a sociedade.

            Os “herdeiros” da filosofia da vida, como os existencialistas, não fi­caram indiferentes à questão do mito, como no Sísifo de Camus, algumas peças de Sartre e na concepção dos pré-socráticos em Heidegger. Mas cabe dizer que o mítico na filosofia não se reduzia a idéia do irracional como princípio ou fundamento, havendo mesmo uma certa transformação do político em mito atual, como em Sorel, onde o mito da greve geral serviria para “mover as massas”, e os mitos políticos estão também em Cassirer e Thomas Mann.

            No século XX há um renascimento do mito e da Mitologia, abrangendo vários terrenos teóricos, com várias conseqüências filosóficas e históricas. Há um re­conhecimento do mito como permanência viva, desempenhando uma função concreta na sociedade ocidental. Uma identificação do mito como um eterno repetir-se e em íntima relação com o ritual mas tudo isso muito longe de uma compreensão mítica da ocidentalidade ou da ocidentalidade enquanto uma Galáxia Mítica. Todo o esforço me parece um garantir científico e filosófico tanto dos limites de do eixo dessa mitologia específica quanto resguardar sua legitimidade, realidade e universalidade. Com isso mantemos não somente uma possível identidade mas o poder dessa mitologia sobre si mesma e sobre outras mitologias. Garantimos a persistência de determinado poder e dos processos econômicos de produção e reprodução de capital, tudo isso numa espiral que agora não é mais realmente necessário para ajudar ao capital, mas o carnaval teórico não pode parar de dançar. Defende-se mesmo quando não é mais preciso.

            Sobre mitos políticos, entre outros, falaram Cassirer (1976), Barthes (1985), Eliade (1989), este último inclusive, interpretando o socialismo como um mito escatológico no mundo moderno. Barthes, concebe a idéia de que o mito transforma a história em ideologia, havendo uma despolitização da direita através dos mitos. Ele vê o mundo atual como um campo privilegiado, para o que ele chama mitologização. Ele entende mito no seu tradicional sentido de “falsa evidência” ou mentira admitida sem questionamento por uma comunidade. No entanto faz uma apurada e estilística crítica às naturalizações desses elementos que ele chama de mito.

            Para a mentalidade científica tudo aquilo que não pode ser verificado cientificamente, surgindo independente da experiência, é um mito, sendo, portanto, um pré-conceito. Essa dicotomia, já nossa conhecida desde pelo menos o Iluminismo, não pertence somente ao passado, nem desaparece completamente, sendo recriada constantemente pela “psicologia social”.

            Mitologia é a religião dos outros. A nossa é a verdadeira, ou, no melhor dos casos, carrega sempre algo de mais verdadeiro. O conhecido torna-se parâ­metro mínimo-desconhecido para formação tanto da individualidade quanto do próprio pensamento. No ocidente, dessa maneira, separamos o "religioso" dos fatores que fundam o campo do nosso modo de existir, compreender e criar. Com "a nossa inconsciente adesão", torna-se "invisível" a nós nossos mais radicais fundamentos. En­frentamos "o religioso" sempre dentro da órbita da religião, o social sempre nos limites do sociológico, o existir sempre nas cinzas do histórico.

            No século XX, Mito tornou-se um conceito que expressa mentira, crendice, ilusão; termo polissêmico, polêmico, multisignificativo, no entanto, sempre visto e sentido de um ponto de vista “pejorativo” por referir-se ou ao “mundo dos primitivos”, trazendo uma idéia de passado não evoluído e origem superada, ou a uma deformação ideológica. O mitológico também, juntamente com todo o “universo conhecido”, foi transformado em um feixe dialógico de signos da mídia e de uma mais perversa forma de exploração.

            A Etnologia no século XIX concebia a Mitologia como algo pré-científico ou anti-científico, “explicação selvagem” de um mundo terrível, não-civilizado. Já os novos enfoques do mito no começo deste século foram dados por Frazer, Durkheim e Boas. Destas grandes nascentes fundaram-se os “sistemas” de Malinowski, Lévy-Bruhl, Cassirer, Jung, Lévi-Strauss, Campbell, Eliade, Dumézil, Gusdorf.

            Para Franz Boas a propalada “insuficiência lógica” do pensamento selvagem ou primitivo advinha da natureza das idéias tradicionais, fundando um intelecto heterogêneo, emocional, simbólico. Para ele, o pensamento primitivo interpreta como real aquilo que “para nós” é representação. Vê o mito com uma função elucidativa, mas formando-se como um processo inconsciente e automatizado.

            Frazer (1982) institui um “sentimento” em sua obra: o “universo primitivo tendo existido como um erro ingênuo, infantil, literário. O mito para ele não é uma explicação do mundo mas um modelo de um rito em extinção, havendo uma prioridade do ritual sobre o mito. Entretanto, nos labirintos do seu “Ramo de Ouro”, não deixa de aparecer a sedução ocidental pelo “mítico”, pelo outro.

            O outro tornado “história”, “ficção”, pode ser apreciado, compreendido e aceito, pode ser incluído como base, deformada, é verdade, mas fundamento vivo da nossa realidade histórica; o outro, tornado discurso racional, que é o mesmo que dizer ocidentalizado, pode ser aceito e reconhecido. A mitologia é esse discurso ocidental sobre o outro como forma de dominação desse outro através da imposição da sua identidade superior, vivendo esse outro na ficção enquanto vivemos no verdadeiro universo.

            Frazer utilizou o “espírito de comparação” com todo seu poder invisivelmente deformante. Sua obra é um amalgama de materiais heterogêneos e “fragmentos etnográficos” tendo como horizonte “o Homem”, “a Humanidade” e as conseqüências lógicas dessa “metafísica humana burguesa” que permite “roubar” pedaços de territórios subjetivos essencialmente diferentes e antagônicos, soldando-os numa mesma “História”, que, ao final, não deixa de ser, pateticamente, um mosaico muito pouco convincente para os desejos do autor, que era tratar da Realidade, criando apenas um mundo de gabinete.

            Para Malinowski (1988) o mito não provém do rito nem é ação investida das palavras. Ele tem unidade enquanto cosmovisão, tanto funcional quanto estrutural, havendo nos ritos a reprodução dos acontecimentos sagrados do passado. Portanto, na “cultura primitiva” tanto o rito quanto o mito são aspectos vivos do prático e do teórico. Malinowski estabelece para o mito uma função psicossocial. Não é meio de conhecimento pré-científico como na etnologia do século XIX, mas mantenedor de tradições e de processos culturais, desempenhando funções práticas na identidade cultural ao codificar o pensamento, reforçar os comportamentos sociais e pessoais propondo certas regras que justificam e sancionam as instituições, garantindo a reprodução do indivíduo e da sociedade. O mito torna-se, para ele, uma “escritura sagrada” que é o espírito funcional dos aborígines que tão secretamente ele detestava e se horrorizava.

            Durkheim (1989) não buscava a “base da religião” no animismo mas no “sociológico” do totemismo. Uma mitologia totêmica é quem modelaria a “organização tribal”, servindo à sua permanência e continuidade. A ênfase recai, não na função como em Malinowski, na gênese das “representações mitológicas” através da qual o “grupo social” se afirma periodicamente. Com Durkheim não há uma superação por ter-se inserido a mitologia no social, ao contrário, as dicotomias básicas da ocidentalidade continuaram intactas apesar de sua “sociologização”. Essas dicotomias agüentaram tanto sua inclusão no “social” quanto no histórico” sem perderem sua dimensão básica que é a forma como a ocidentalidade trabalha e mantém os elementos da sua identidade e sua diferença. Essas dicotomias, inclusive, marcam a “visão do sagrado e do profano” como instâncias separadas, dicotomias conflitantes e familiares, como se o “mundo mítico” fosse a casa do sagrado e do profano, tendo os dois elementos suas simbólicas particulares. A mitologia não somente é uma dicotomia da busca de identidade como “ela” mesma traz em si todas as dicotomias ocidentais. Além de tudo, aquilo que entendemos como Mitologia não é mitologia, mas um “sistema teórico” projetado nos “outros” ou na “nossa origem”. Jamais uma realidade viva e perene de nós mesmos, da nossa vida, do nosso pensar e acreditar, fundamento dos nossos limites e deslimites, da nossa diferença e maneira de ser.

 

CADERNO DE CRIAÇÃO

ANO IX, Nº27, MARÇO - PORTO VELHO, 2002

 

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