(PALESTRA)
Aqui, nesta estranha comemoração dos Cem anos sem Nietzsche, não pretendo dizer Nietzsche; aqui pretendo somente cravar um ferrão que nos atravesse, a mim e a Nietzsche, a mim que estou pensando o real, a fundação do ser, a revolução, o ser e a palavra, da mesma maneira que ao louco sagrado só importava o ser, tendo como única meta desvendar o caminho do ser, que é o caminho do homem sem Deus.
Dizer um autor é uma impossibilidade: ou melhor, só o podemos dizer nos dizendo a nós, ex-pondo o nosso horizonte, o nosso eixo, a nossa carne, sangue e alma: por isso e só assim posso dizer o outro: ao tentar dizer a mim, posso enfim, tentar dizer o outro. É este o caso: Nietzsche é um dos campos fundamentais para pensarmos aquilo que configuramos hoje como realidade e possibilidade de mudança além de um marxismo fajuto destroçado pelo mundo, por uma ocidentalidade que ele mesmo tratou de alimentar com todas as loucuras naturalizadas que conseguiu encontrar.
E é esse mesmo mundo ocidental que cria e alimenta um tipo de produção que é unilinear, unifocal, univocal; e essa Produção Geral é precisamente aquilo que aparece, aquilo que forma, conforma e formata nosso corpo, nosso desejo, nossa interioridade, nossos mistérios, nossos limites, nossas necessidades, nossas impossibilidades, nossas Ciências, Filosofias, Razões e Morais. Nós somos as ilusões e os simulacros dessa Produção que se apresenta e se quer e só se entende como irreversível, dessa produção praticamente intocada pelas leis de qualquer Utopia, de qualquer Revolução ou Vontade: nós, os criadores, nos perdemos nos labirintos projetados por nós mesmos e, perdidos, esquecemos o caminho de volta, principalmente porque pela lógica da produção não há caminho de volta, não há reversão, só há natureza e realidade.
Marx lembrou o Capital, o centro da produção, desmascarando grande parte das suas astúcias mas não podia desmontar o formatador: o Capital foi seu ponto hipnótico; as revoluções que nasceram da sua caneta e do seu ódio não conseguiram desmantelar o irreversível tradicional e necessário da Produção, o irreversível da história, o irreversível do Poder, o irreversível da Memória, o irreversível da Razão; as revoluções marxistas nasceram exata e precisamente para alimentar essa mesma produção unilinear e monstruosa; vivem para defendê-la e ordena-la, vivem para apagar qualquer oposição a essa produção. Pensando realizar uma sociedade livre seguiram, sem saber, os rumos do mesmo Capital que seduzia Marx e seduz, hoje, os marxistas da superfície, pois tudo que desejam é criar um sistema social fundado numa produção maravilhosa. Tudo continuou e continua como se uma força metafísica dirigisse o mundo, aquela mesma força também desvendada por Marx como alienação e ideologia, e que hoje parecem ser mais profundas. E o centro da fera, o eixo do monstro, continua o mesmo.
A palavra de Marx é pura Ciência, como ele desejava que fosse; as palavras dos marxismos são palavras científicas, isto é, palavras irreversíveis, palavras da verdade, palavras reais, palavras da realidade, palavras que parecem tocar o real, palavras de ordem, palavras que devem produzir o mundo com uma outra ordem: a ordem da produção, a mesma produção irreversível, o mesmo inescapável alienante. O outro mundo marxista tradicional e dos adolescentes revoltadinhos de classe média do mundo inteiro é somente o mesmo mundo, perverso e irreversível do Capital, camuflado, ou invertido como queria Marx, mas ainda assim o mesmo mundo. No marxismo não há o desmantelo da sedução, não há a circularidade, não há reversibilidade, não há nada além de uma natureza feita e bruta, de um homem que deve obedecer a uma ordem social maior, a um ser em consonância, em acordo, enquadrado no quadrado da norma, da verdade, da realidade, da maioria. As palavras dos marxismos são palavras da produção e o que nós, marxistas, buscamos depois deste século XX é como sair do atoleiro da produção, do campo de forças que nos impede de agir, de pensar, de revolucionar. Não é fácil! mas já temos muitas pistas. Uma delas está no próprio século de Marx. E as pistas não são somente marxistas, como querem os marxistas de carteirinha: o universo é maior do que aquilo que está nas cartilhas, do que aquilo que está escrito: certa dialética conseguiu sobreviver ao marxismo! A sedução, as soluções, envolve todos os elementos, estão em todos os lugares, em todas as palavras, idéias e clivagens. As pistas estão onde menos se espera. Em Nietzsche, por exemplo.
Ele instaura na Filosofia o mesmo que Michelet desenvolveu como História: a sedução literária, a sedução da palavra enquanto literatura. Para nós a literatura é somente um contar historia, algo para o lazer, para o domingueiro, pequeno burguês e filisteu descanso do corpo e da quase alma. Domesticada, a literatura se tornou um bibelô roendo um osso num canto da casa. A palavra deixou de poder ser ouvida, lida, instalada, dissolvendo e recriando: vivemos um tempo onde a palavra se revolve para sobreviver, se eqüivale e se equipara a uma produção: ela perdeu seu estatuto virtual, sua dimensão de realidade virtual, simplesmente porque a realidade é, essencialmente virtual e virtualizante. Produzida igual à produção, imitando os achaques e as certezas da Razão e da Ciência entre os séculos XVI e XX, a palavra, aquela que é a criadora da virtualidade, está em perigo. E Nietzsche é uma palavra que pode revolucionar ainda a palavra, é uma palavra que incomoda a palavra, é uma palavra que busca o retorno da palavra, o retorno do gozo ao prazer, do consumo ao antes da produção: Nietzsche proclama a palavra como fragmento, como iluminação, como aquilo que mina por não aceitar, criando um vírus dentro da certeza monolítica da palavra crente, da palavra da ordem, aquela que diz completamente, daquela que é inteira, total, totalizante, totalitária; daquela palavra que ousa somente dizer o mundo, esquecida que ela é da mesma substância do mundo. Há, também, estreita relação entre Nietzsche e as palavras enquanto um tipo de corpo. A mesma fragmentação, a mesma utilização de máscaras, a mesma simetria, descontinuidades, a mesma falta de centro, a mesma multiplicidade de centros, a mesma construção conjugada, livre e prisioneira dos outros e dos ordenamentos que mesmo não aceitos estão sempre presentes. Uma palavra que nasce como uma seiva, um esperma, um suor, uma saliva, ou mesmo sangue, escremento, urina: uma palavra secretada.
Balzac e Flaubert, ao inventarem a Literatura, delinearam também o poder que atrairá Nietzsche: a palavra que cria, mantém e dissolve o mundo, a palavra que martela a si mesma até sangrar o mundo, martela até desmantelar a palavra. Não demolir um mundo de palavra, mas arrasar o mundo dos homens, o mundo da natureza, o universo da matéria, o mundo do corpo, do desejo, da crença, da vontade, dos sentimentos, das virtudes, dos pecados, da palavra e da liberdade. E martelando com palavras a substância do mundo, quebrando sua superfície dada pela produção, Nietzsche encontrou o vazio fundamental: nós mesmos.
E nós, seres da ocidental perversidade, somos seres literários por excelência [ficção sobre ficção]: nosso eixo é ficcional: nele estão verdadeiros e legítimos personagens literários (criações da palavra e não do mundo que se vive), como Sócrates, Deus, Lucifer, Jonas, Jó, Jesus, Maria, Paulo, Dante, Quixote, Hamlet, Romeu, Iago, Fausto, Raskolnikov, Josef K, Bloom, Marcel: esse eixo ficcional formata nossa existência: eixo de palavras, imagens, crenças, literatura em sua mais profunda essência: é daí que advém nosso espelho, nossa carne, nosso desejo, nosso sonho.
E Nietzsche sente, percebe, toca pela primeira vez (se esquecermos o maravilhoso Schopenhauer), um mundo como virtualidade, como um tecido muito fino cobrindo o caos, que cada cultura cobre ao seu bel desejo e crença. E para entender, cortar, dissolver e remontar esse tecido-universo formatado por seduções e trocas que se apresentam a nós alienadas e revertidas numa irreversibilidade metafísica, Nietzsche intui que somente a palavra pode empreender essa aventura que o homem-comum aventura-se todo dia sem compreender: ele cria o mundo não com sua existência, mas com linguagens, as linguagens das trocas e das aceitações (que para nós é o trabalho); e essas mesmas linguagens se tornam mundo. São essas linguagens postas em movimento, im-postas como realidade, sedução e troca que vemos como produção, circulação e consumo, que exigirão a ação como princípio do ser: trabalho é rede de crenças postas em movimento.
O real, contra-feito de linguagem, irrompe em erupção, vindo desde o caos até os sentidos e a Razão, numa existência que nos é conhecida como palavra. Por sua vez a palavra é a erupção do real, do real nos aparecendo como sentido. O real se oculta na palavra / a palavra des-vela o real: linguagens (o real/a palavra) que se roçam se penetram, se lambem, se dissolvem para dentro: essa circulação é a fonte mesma da práxis, daquela que nos aparece como real: nós nos alimentamos desse circuito: a energia do trabalho que cria o mundo e nos aparece enquanto práxis advém de uma troca, de uma circulação de significados que, alienados, criam o ser.
Não há o mundo e o ser: não há linguagem e ser: o mundo é o mundo do ser: o ser é tão somente um ser de linguagem, uma pele de linguagem cobrindo o caos formatado por seus movimentos vitais, sedutivos e em circulação, em troca e permissões, em crença e riso, em dor e suor: para nada, mas ainda assim em movimento e ânsia de significado. O ser não pode ver, ouvir, tocar, pensar ou viver nada mais que um mundo formatado por ele: Nietzsche sentiu que as camisas de força de certa lógica e do cristianismo [nossa literatura central, ficção alienada aparecendo como a realidade], fundamento da ocidentalidade como uma tribo, é somente palavra sobre palavra, crença sobre crença, imaginário sobre imaginário, pele sobre caos: outras palavras criariam outro mundo, outras palavras, outra ação, outro homem, outra vontade, outra sedução livre de um não aparecer monstruoso.
Por isso Nietzsche não é um Filosofo: aquele que é amigo da sabedoria, aquele que é companheiro do pensamento, aquele que desenvolve a reflexão e o conceito, aquele que guia: Nietzsche é um Escritor: aquele que é, antes de tudo, um Libertino; aquele que se libertou do mundo enquanto realidade natural, realidade inescapável: somos, nós e o mundo, linguagens materializantes que podem criar outras linguagens, outros mundos. O Filosofo tem um compromisso com o conceito que o Escritor, enquanto Libertino, não tem nem pode ter: o conceito adora se agarrar ao natural, ao eterno, ao universal, ao Estado; e o Filosofo, enquanto Escritor, vive para dissolver, vive para martelar, desmantelar, vive para discordar, vive para tornar a sedução uma metáfora de destruição e clara criação: vive para não se satisfazer, vive para re-verter, vive para per-verter, vive para não crer e, acima de tudo, para não solucionar, mas pôr em êxtase aquilo que se vive somente como unidimencionalidade [diferente da literaturazinha brasileira com seus probleminhas de classe média].
E o mundo se dissolve numa possibilidade plástica de mudança, de revolução, de mutação. Não precisamos mais esperar as leis sociais ou as leis da natureza: basta-nos a vontade de poder, a vontade da palavra, o sentido da consciência e do mundo enquanto linguagens em modificação e resistência. Essa resistência somente a palavra pode se propor a dissolver. Derrubar ídolos, como diria Nietzsche; com verdades sangrentas, com martelo e fogo.
O Estado tem medo daquele que pensa: e o Estado não somente como governo, mas o Estado como uma síntese viva do aparecer da produção. O medo à reflexão que nega, dissolve, movimenta, apavora praticamente todo mundo. O vosso filisteismo é visceral, carnal, muscular, epidérmico e lógico: sentimos medo de toda sombra que se põe a pensar, que se põe a seduzir, que põe a sedução no lugar da produção.
Dizemos: O mundo ocidental é somente uma tribo entre tribos, cada uma criando um universo à sua imagem e diferença!
Dizemos: Jesus nunca existiu como homem, como história e lugar. É somente uma criação mítica, literária!
Dizemos: Deus não somente está morto como jamais existiu ou existirá a não ser enquanto imaginário de certas tribos, sendo, isso sim, o personagem literário central do nosso teatro vivêncial!
Dizemos: O mundo, a realidade, é somente um programa tribal!
Dizemos: O homem não existe, é outra ilusão dessa tribo ocidental, construído com a trama dos materiais ficcionais dos outros personagens através do tempo!
E poderíamos dizer muito mais! Mas tudo seria reencaminhado à nossa lógica: reencaminhado ao costumeiro sentido apaziguador, reacionário e imobilizador: tudo é consumido, apagado, assimilado pela recepção daquela lógica produtiva que aceitamos como verdadeira. São palavras! Dizem uns. Somente palavras, dizem outros. Um professorzinho querendo se amostrar. E ninguém pensa, ninguém sangra, ninguém se move num mundo trans-tornado em palavra imóvel: somente assim a produção, a circulação, o consumo e a burrice saem intocados.
Ler Marx é inútil! Ler Nietzsche é inútil! Ler Foucault é inútil! Ler Baudrillard é inútil! Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida ninguém exceto tu, só tu, nos diz um Nietzsche já cansado de falar para ninguém.
Ler Nietzsche é trilhar um cominho diferente do crente, do crente em tudo: Nietzsche instaura uma reflexão onde a autodeterminação é o sentido de uma verdadeira vida. Ler Nietzsche não é um aprendizado, um lazer, uma opção: é uma das poucas saídas ainda abertas dentro da estranha hegemonia da mais cruel e cada vez mais fascista realidade. Nietzsche não é uma saída ou um princípio. Nietzsche é a palavra com o poder e a vontade que somente ela possui para revolucionar o mundo. Mas isso já não conseguimos mais vislumbrar, e mesmo alguns de vocês irão perguntar se queremos mudar o mundo somente com palavras. É uma pena, mas isso é o nosso mundo! Mundo democrático que aos poucos vai se contorcendo, se torcendo para dentro de si mesmo fazendo aparecer, fazendo se romper de dentro da sua pele virtual os espinhos, as traves, os pilares fascistas da sua interioridade, e ninguém pode fazer nada porque todos nós aceitamos ser apenas um simulacro da produção que nós mesmos criamos e já não sabemos mais que a criamos. Para nós a sedução é somente uma ração de cobaia no laboratório do mundo. E essa ração, e essa Razão, para nós é sempre suficiente. É uma pena, mas ainda nos resta muito. Basta ter coragem. E Nietzsche é, sempre, um bom começo.
CADERNO DE CRIAÇÃO
ANO VIII, Nº25, MARÇO - PORTO VELHO, 2001