FRAGMENTOS DE UMA LEITURA NEGATIVA
1 - Para que o imediato do presente seja significante, para que supere sua in-significância, para que se torne mais do que o-nada-que-é; para que venha a se tornar presente; para que haja elementos, modelos, fluxos, tecidos, redes; para que se vejam ligações, conexões, mediações; para que represente; para que seduza; para que produza um campo de força; para que se formate com nome, destino, seqüência; para que se torne tempo, memória, história, técnica, passado, experiência, documento, Ciência - é preciso que seja produzido, vivido, guardado, capturado, ou recordado (aceito, ouvido, visto, respeitado, posicionado, relacionado) por discursos que se especializaram em naturalizar o quase traço nadificante da vivência, seja para continuar e fundamentar o próprio viver quanto para naturalizá-los, tornando, o imediato do presente, uma dimensão cheia, sempre lida para significar. Essa leitura se torna objeto de discurso e, ao mesmo tempo, o próprio imediato do presente, agora como presente.
O imediato do presente já não é uma ocorrência sem significado, sem espessura, pois além de ser objeto de discurso ele só é por ser um desdobramento do presente, nódulo infinito de discursos, de formações discursivas. Ele já é atualização de discursos. A sobrevivência desse desdobramento depende dos discursos que produzem ou resgatam essa produção. Inclusive sua visual, táctil, auditiva existência depende não da existência ou do existir, e sim do saber a existência, o existir e o estar. Fazer parte de uma rede de discursos é que faz o imediato do presente existir. A sensação de existência, de estar, de perceber o existir em seu imediato, o estar aqui para nós, não é natural nem se dá no natural. Não há os discursos que produzem o imediato do presente e um arquetípico e natural imediato do existir. O existir, para nós, é sempre existir humano, existir em discursos. Além, antes e depois há somente o caos, também proposta discursiva, ou inexperiência do discurso.
Para que o imediato do presente seja modificação, seja proposta de modificação, seja modificado, pelo destino, pelo Estado, pelos deuses, pela natureza, pelo trabalho, pela crença, pela revolução, pelas leis da história, pelo indivíduo é preciso que esse imediato seja produzido por discursos, já anteriormente em andamento. O imediato é o ponto de realização do presente, seu projeto, seu plano, seu fluxograma. O lugar de todos os lugares, o tempo de todos os tempos: o espaço vivo da procriação: o lugar do humano por excelência.
Sem o imediato do presente, sem os discursos que o produzem, reproduzem ou capturam, não há o presente, que é somente quando desdobrado, em desdobramento, em tenção, em atualização. Não há o presente como depósito, arquivo, baú. A forma de existência do presente é a da virtualidade ao se desdobrar, não a se desdobrar. Não há a língua antes do seu exercício, somente a língua em exercício, a atualização em desdobramento que a faz ser. Virtualidade viva no viver.
2 - A irrupção do presente, condição da práxis (ao mesmo tempo da singularidade), é clivagem no caos, instaurando aquilo que entendemos como as múltiplas e incessantes vidas humanas, sociedades, história, comunidades, natureza, realidade.
3 - A processualidade virtual, comunidade como ficcionalidade ontológica, é a consciência. A consciência não é natural.
4 - Essa virtualidade não é uma resposta ao mundo objetivo, mas a fundação e a forma de ser desse mundo objetivo. Aquilo que entendemos como sociedade.
5 - Uma possível distinção entre a virtualidade que é o homem e o mundo orgânico e o mundo inorgânico é sempre posterior (historicidade do conhecimento) e não fundante (coisa natural, tornando-se natural sempre depois). É parte de um discurso, não de uma ontologia radical em sua historicização.
6 - O homem luta sempre num processo de formatação do caos, nunca numa luta na ou contra a natureza, o orgânico e o inorgânico: a estrutura onde ele luta é sempre um cosmos, um ordenamento histórico-social, um vi-ver da práxis. Sua formatação se faz a partir dessa práxis formatadora e não de um encontro, de uma descoberta, mas de um gerar sempre social.
7 - Colocar o real, a natureza, o mundo objetivo, o orgânico, o inorgânico, como base do humano é, ingenuamente, fundar o existir num discurso cristão, burguês, objetivista, científico e datado. Não é basear a história, mas tornar essa perspectiva discursiva, esse discurso ocidental por excelência, inescapável, desistoricizado.
8 - O existir humano é criar uma natureza, criar naturezas, criar territórios que lhe escapam como se fossem antes da sua criação: natureza é alienação da práxis.
9 - Se podemos falar em esfera ontológica teríamos a ação formatadora da práxis como fundamento não somente do existir mas da própria existência, aonde as outras esferas (inorgânica e orgânica) vêm depois, tanto como discurso quanto como práxis, pois se torna o outro, interno e externo, do processo.
10 - Mas a formatação, que cria o orgânico e o inorgânico para o homem, não pode se desarticular dialeticamente da sua criação porque se torna constitutiva da sua própria forma de existir, parecendo, dependendo do discurso, virem antes, às vezes, num processo evolutivo.
11 - Uma ontologia do ser social não poderia ter partido da idéia de uma ontologia do ser natural, pois comete uma inversão-fatal (que vem a derrotá-la tanto na luta revolucionária quanto na sua realização política - encaminhando-as para serem instrumentais tanto de uma reflexão quanto de uma ação totalitárias, periculosas e tão somente imagens invertidas do mundo que diz negar).
12 - Os materialismos ingênuos, os materialismos marxistas e os idealismos não se distinguem senão por serem articulações de uma mesma grande dimensão discursiva.
13 - Uma ruptura ontológica não se dá entre esferas (o biológico, o inorgânico, o humano) mas só e unicamente na virtualidade e sua práxis.
14 - A virtualidade não é evolutiva, não dá saltos evolutivos, não salta da quantidade para a qualidade; a práxis não é progressiva, positiva ou construtiva; não acontece em obediência a leis; não existe como coisa natural ou coisa social. A virtualidade será sempre outra, será sempre diferente dependendo do olhar sobre ela, das relações, dos fluxos, dos poderes em formatação. A virtualidade não é.
15 - Uma ontologia não pode ser, jamais, sobre o ser, somente sobre um como se vive, se percebe, se pensa o ser e o existir em sua multiplicidade in-apreensível, pois o existir não é um ser nem um vir-a-ser, não é em-si nem para-nós. Sua historicidade radical, sua condição de virtualidade, de ficcionalidade, impossibilita qualquer dimensão estabilizadora que naturalize um discurso-esquecido-que-é-discurso como ser, como natureza, existir, objeto, sujeito, mundo objetivo, idéia, matéria, energia.
16 - Quando "ouvimos": tal "animal existe apenas como resultado de longo processo evolutivo"; ou: "Somos parte de um processo histórico", não estamos em contato com explicações sobre o existir "animal" ou "social", mas diante de discursos invertidos e esquecidos de sua dimensão discursiva, colocando-se "na origem", não o que explica, mas a si mesmos como garantias da realidade, da verdade, do saber, do realmente acontecido.
17 - Vejamos: "A organização das substâncias orgânicas possibilitou que algumas moléculas se reproduzissem a si mesmas, originando o ser vivo." Essa explicação é verdadeira, é real e deve ter acontecido assim mesmo; os "avanços da Ciência", "com toda certeza", partiram desse ponto até esclarecê-lo. Definir-se-a "algo que aconteceu", um "conhecimento precário", como querem os epistemólogos, mas ainda assim "capaz de explicar", de "responder", de "satisfazer": é um conhecimento. Esquecem todos de algo bem simples (esquecimento que garante tanto a legitimidade e a validade quanto a realidade e a verdade): isso não é sobre um acontecido, não é um conhecimento sobre algo, e sim um discurso que manterá somente sua razão dentro dos quadros sociais da existência da "cultura" que a produziu, da lógica que a constituiu e da "sobrevivência física" dos membros da "sociedade" que a faz ser "real".
18 - Nenhum conhecimento é sobre algo além de si mesmo, além dos quadrantes ficcionais da práxis que a faz existir, que necessita do seu existir.
19 - A "tentação" de colocar a "categoria do trabalho" como "forma originária" e "fundamento ontológico" é quase inescapável; é sedutora e cativantemente real, geradora de sistemas explicativos dos mais sólidos, politizados e científicos. É uma tentação porque é verdade para nós; é real e visível; é perceptível.
20 - O momento que antecede e dirige a ação, a prévia-ideação lukacsiana, onde as conseqüências da ação são previstas na consciência antes que se resolva na prática, não é momento abstrato, mas dimensão discursiva, ponto focal de discursos e formações discursivas, de práticas discursivas, de ações discursivas. Não é uma antevisão ideal, e sim possibilidade discursiva, seja como permanência seja como modificação, seja como criação. A prévia-ideação não exerce um "papel fundamental na determinação da práxis social": ela é interior da práxis, ou melhor, é ponto de discurso, onde o imediato do presente desdobra o presente e suas possibilidades inesperadas; onde o "discurso" se materializa criando e mantendo objeto, sujeito, mundo.
21 - A "objetivação" da prévia-ideação e a própria prévia-ideação não são objetivas, reais, mas processos internos da virtualidade e da formatação incessante da práxis: o real só é real-para, real-com.
22 - Não há um objeto, uma ação, como "idéia objetivada". Essa é uma necessidade de teorias que precisam de uma natureza como suporte (quase sempre um desmesurado deus morto), um sujeito idealizador criando objetos: natureza, sujeito e objeto fazem parte constitutiva dos fluxos ficcionais do "nosso existir", sem se separarem num antes, num dentro, num fazedor e num feito, sem dicotomias ingênuas e úteis.
23 - Entre a "consciência", entre o sujeito - e o "objeto" - não há uma diferença ontológica. As duas categorias são dimensões ficcionais da virtualidade, de determinada virtualidade e determinados momentos dessa virtualidade. A separação, a distinção é real (porque histórica?), mas não é natural.
24 - Quando Marx (Sagrada Família) diz, "... ao operar sobre realidades - maçãs, pêras, morangos, amêndoas ..."; ou "... o que há de essencial na pêra ou na maçã (...) é o ser pêra ou maçã. O essencial nestas coisas (...) é o seu valor real, perceptível aos sentidos ..." (s/d: 85), mesmo sendo crítica e negativa sua exposição, pois pretende dissolver o idealismo da 'sagrada família', a quem se dirige, não esconde sua concepção de mundo, sua ontologia. Ao partir do mundo-dado como mundo natural, Marx comprometeu sua ontologia com os mesmo "vícios" da "filosofia burguesa" e da Ciência. Marx não conseguiu a ruptura ou a diferença, e sim uma variação sobre o mesmo tema. Para ele havia uma natureza que era transformada pelo homem; havia uma realidade que se transformava em idéia, em representação. Um dos seus problemas era esta representação, que ele via como podendo ser deformada, sendo chamada de ideologia. Ele não podia compreender o real sendo da mesma natureza das representações, guardando mais segredos do que podia sua pretensiosa objetividade adivinhar. Sua instância era a da realidade-mesma; todas as deformações ou acertos teria esta realidade como parâmetro, como fundamento, como garantia, como aviso seja do acordo seja do desvio. Sua perspectiva era intrinsecamente ocidental sem pôr essa mesma dimensão em dúvida, em dissolução, em luta, em questão. Aceitou, simplesmente, a mesma base. A natureza, a história, o homem, o real, a razão: todas escaparam por seu imenso ralo.
25 - A distinção entre sujeito e objeto, a existência de sujeito e objeto, o estranhamento entre sujeito e objeto não é ontológico mas de como a virtualidade se ordena, relaciona-se, produz, reproduz, permite, condena, circulam percebe, vê, reflete, deseja. A existência e o estranhamento de sujeito e objeto não é histórica, social ou natural, mas de como as formações discursivas criam-se e criam o mundo e como esse mundo, alienado da sua criação-fundamento, cria-se e cria discursos. Ao mesmo tempo, a identidade sujeito-objeto, perspectiva Hegeliana e parte da utópica marxista, também não é projeto político, mas momento discursivo de uma virtualidade que não pode resolver ou propor o vislumbre de resolução, de resposta, para algo que, se fosse respondida ou solucionada, dissolveria sua forma, sua eficiência de existir.
26 - A mecânica da objetivação da prévia-ideação não poderia jamais ser ontológica, mas tão somente meio de fluxo, ponto de tenção, desdobramento do presente, atualização do imediato.
27 - O trabalho não é origem mas articulação central e desdobramento do presente em imediato do presente: no entanto sempre um momento historicizado.
28 - A matéria prima, os elementos da natureza pedra, madeira, terra, água, fogo não são antes de se tornarem parte da virtualidade por razões internas.A inversão matéria-virtualidade é própria das nossas formas de explicação, não de como a virtualidade procria a matéria, formata o caos, nomeia o nada. Para a formatação, para o desdobramento do presente no imediato não é preciso matéria, natureza, energia, trabalho, mas todas, essas categorias se materializam como condição inescapável da práxis, numa inversão que apaga o demiúrgico da práxis enquanto historicidade radical, enquanto ficção fundante.
29 - Sem ser social sem virtualidade, não há natureza, não há matéria.
30 - O Homem não transforma a natureza: a virtualidade põe a natureza como seu inescapável, sem suporte, a determinada virtualidade virótica chegam ao seu limite, devorando todas as outras e a si mesma. Natureza é um tumor que aparece somente quando determinada virtualidade constitui-se como dicotomias e esse tumor pode ser visto como antes do corpo dentro do corpo depois do corpo: a sociedade e a natureza o homem, a humanidade.
31 - Os Nexos do real as causalidades, os acasos, as estruturas e nervuras do real, o ser-existente, o conhecimento correto do real, a Ciência, são instâncias discursivas.
32 - Não há concepção de mundo falsa, há sim um mundo falso que oprime, faz sofrer, enlouquece, explora, mata, tortura: mas não podemos esquecer que não há dois mundos na virtualidade (os exploradores e os explorados): todos compartilham as mesmas formações discursivas, os mesmos discursos, as mesmas ilusões, buscam os mesmos fins com as mesmas palavras, desejam as mesmas coisas, lutam pelas mesmas realidades. De um ponto de vista se perdem completamente os que poderiam fazer a revolução: todos hoje querem fazer o Choping Center, o supermercado, a mídia. É preciso repensar, superar, ousar uma outra visão das possibilidades de mudança.
33 - As relações sociais, as classes, o mercado e suas leis, são exteriores e independentes do indivíduo como uma montanha, um rio, uma árvore, como se fossem uma segunda natureza, pelas mesmas razões que geram a primeira natureza. Sem a primeira natureza (virtualidade alienada) não há a segunda natureza (virtualidade alienando). Nas duas naturezas o que está em questão não é o natural, mas como o virtual cria o natural como seu fundamento e seu próprio funcionamento, garantindo assim sua universalização, poder e legitimidade. A virtualidade pode ser compreendida em suas astúcias, o que não pode é ser aceita, rejeitada e protegida.
34 - Não há ontologias falsas ou fictícias no sentido tradicional. As religiões, as mitologias, as crenças, fazem parte constitutiva do universo da virtualidade. Não é mais verdadeira ou mais falsa que qualquer elemento. Um mito como Jesus, historicamente inexistente, pois não há documentos que provem sua existência, havendo provas suficientes para sua inexistência e desnecessária existência, é mais real, mais concreto, mais vivo do que eu, do que Napoleão, do que Greta Garbo. Um mito como Jesus, que se tornou um dos eixos da ocidentalidade, como a virtualidade projetada, formada, delimita, abre, multiplica, prepara o indivíduo nesta virtualidade. O existente só é por fazer parte constitutiva da virtualidade, dos discursos, e não por deixar ou não documentos. A irrealidade histórica de Jesus retorna a ele como realidade histórica imprescindível. Não conseguimos ver, acreditar em sua inexistência, pois a dele é parte da nossa.
35 - Não há um desenvolvimento do conhecimento ou um constante aumento de capacidade humana em modificar a natureza; não há ontologias cada vez mais reais, objetivas, verdadeiras; ciências, saberes, disciplinas, conhecimentos, artes, técnicas, tecnologias cada vez mais lúcidas, conscientes, racionais. A inversão das utopias burguesas, pondo-se na origem ou no fim, são conhecidas, mas essas impressões, essa maneira de compreender o conhecimento não é um episódio burguês, ideológico, mas parte essencial da virtualidade ocidental.
36 - A natureza da Ciência, do marxismo, das filosofias não diferem das naturezas religiosas míticas, metafísicas: todas elas seguem a mesma lógica, a mesma ontologia, e se fundam sobre a mesma virtualidade.
37 - O trabalho, como meio de desdobramento, só pode se realizar no interior da virtualidade, como sua atualização, permanência, circulação e modificação. É ponto focal de discursos no conjunto de relações que procriam no antes, o durante, o depois: a natureza, os instrumentos, os meios, os homens, as necessidades, as razões, as crenças, os saberes, os poderes. Todos os elementos dimensões de desdobramento do presente no imediato, como um jogo, um tiroteio de luzes, uma multiplicação de cores num canhão de raio laser onde cada foco é substituído por outro e cada elemento se torna o outro num movimento incessante de ficcionalidades que parecem independentes e naturais.
38 - O alheamento entre sujeito e objeto, a sangria causada no sujeito pela perda do objeto no processo de produção não se dá porque o sujeito perde para outro o objeto mas porque ele já é produzido como sangria, como sujeito, como alheamento da sua dimensão virtual, ficcional, revoltável, negativa. Sua naturalização de origem, sua formatação se dá como alienação, que não é nem um momento do trabalho nem das relações de produção. A alienação do trabalho é somente a visualização de uma forma que se visualizam em determinado momento da virtualidade ocidental, mas que não é a fundamental.
39 - O sujeito é criado como natureza. Esse é seu alheamento básico. Sua utilização pela sociedade será natural, e ele mesmo vê-se como natural; corpo, animal, trabalhador, homem, mulher, homossexual, organismo, matéria, carne, sangue, cidadão, indivíduo. A virtualidade ocidental não aliena num momento determinado do trabalho, da produção material, mas na própria constituição de cada elemento, de cada sujeito do seu campo de criação.
40 - Não há a produção material como primária, o processo de produção econômica, e a produção não material, como secundária, atividades não econômicas, ou atividades teleológicas primárias fundamentando as atividades teleológicas secundárias de Lukács. Não há nem o antes e depois e não há os dois em interação. Não há produção material e produção não material. Não há a base econômica e os aparelhos ideológicos de Estado. Não há infraestrutura e superestrutura. A lógica material, como ordenamento explicativo, como exemplo, modelo primal, teoria, faz somente reproduzir acriticamente as próprias formas discursivas que formatam a virtualidade sem tocá-las, sem ofendê-las, sem compreendê-las. Armar um manequim não explica nada, somente esconde o virtual, o discursivo, os fluxos ficcionais, apresentando tão somente o interior dos discursos como se fossem o real. Como são objetivos, exemplos materiais, causalistas, positivos, são convincentes, verdadeiros, talvez inescapáveis. Tanto os marxismos quanto os positivismos, e até mesmo a vida comum, trabalham com essa mesma lógica, essa mesma ontologia, essa mesma gnosiologia, essa mesma pedagogia.
41 - Não é preciso um conceito específico como o de ideologia para explicar a regulação da práxis social, tornando possível a reprodução econômica e cultural ao elaborar um ideal de realidade. Os componentes do conceito de ideologia mais que pertinentes devem migrar de sua operacionalidade, de sua especificidade, de sua utilidade, para a própria fundação e reprodução da virtualidade como procriação de ficções de toda dimensão.
42 - A realidade não se oculta em determinados momentos, lugares, ocorrências, atuação. Aquilo que se entende como realidade, sociedade, a virtualidade, é ocultação. [Mas não devemos esquecer que nosso horizonte de negação é o marxismo, não para criar um liberalismo, um positivismo, uma ciência, mas para retomar sua produção revolucionária, sua raiva metodológica, sua insatisfação não concluída. Nosso trajeto pessoal, a constituição da Hermenêutica do Presente, não se faz simplesmente contra o marxismo, mas como uma retomada para um além das derrotas. A radicalização da historicidade e a refundamentação da Dialética é uma das nossas bases. E como é a Dialética que deve nos caracterizar, segundo Lukács, e não as teses, imagens, idéias particulares de qualquer dos marxismos, a Hermenêutica do Presente é um marxismo retomando seu curso. O diálogo aqui empreendido é com momentos fundamentais da obra ontológica de Lukács, pois é ela não somente uma síntese de outros marxismos, mas um dos seus momentos, mais complexos e significativos.]
43 - Aquilo que se entende como ideologia é tão somente um truísmo que todos imediatamente concordam e aceitam. O que fazem todos concordarem e aceitarem e justificarem e desejarem é constitutivo, não é ideológico.
44 - As classes dominantes jamais precisaram criar, amamentar e fazer crescer uma ideologia para justificá-las e justificar sua opressão, tornando razoável, operativa a práxis social, fazendo-a atender aos seus interesses. Essa separação é inconcebível e protege todo o sistema de ser revolucionado. Essa visão é incompetente, ou melhor, serve para que depois da revolução se crie o mesmo, pois é assim que se ordena as sociedades humanas. Desalojando o clima ideológico da fundação da práxis social, da procriação de todos os elementos, da própria virtualidade, operacionaliza-se como alheamento. As classes dominadas são iguais, absolutamente iguais. A ilusão política, messiânica, cristã, essencialmente ocidental em sua tolice inútil, não pode ofuscar não a impotência ideológica e política dos dominados, mas sua igualdade, que se traduz numa impotência de quem gosta, de quem deseja, de quem não se diferencia. Não estamos tratando de tribos dentro de um mesmo espaço (classes numa sociedade, mas de uma virtualidade que se apresenta, se materializa nas teorias, nas mídias, nos discursos como algo). Essa projeção-de-si da virtualidade não é aspecto descartável, postiço, ilusório, falso, mas a própria virtualidade ocidental como ela é. Dai o inescapável. Uma ontologia, uma ciência, uma filosofia, não podem escapar porque seus resultados são objetivos, concretos, verdadeiros. Não há um erro em positivismos e marxismos. Eles dizem aspectos reais da virtualidade, do interior dos fluxos discursivos materializados, vivenciais. A operacionalização objetiva dos saberes é sua melhor garantia. A positividade da ciência é inescapável. É essa inescapabilidade que nos leva não ao mundo, mas à virtualidade e sua específica maneira de ser. Para revolucioná-la não se pode partir de como ela funciona, operacionaliza-se, prima-se; como ela vive, trabalha, vê-se. O pensar a revolução não é um pensar interior, mas um de dentro que sai e nessa saída compreende os limites, os eixos, os fluxos, a própria virtualidade como uma atmosfera ficcional, específica, móvel, polifônica, múltipla, holográfica, plástica.
45 - Dentro a virtualidade é objetiva, material, econômica, funcional, cotidiana; fora a virtualidade é holográfica, atmosfera viva de discursos, discursos objetivos e discursos objetivando-se, o presente vivo num desdobrar monstruoso no imediato.
46 - Ideologia não é função social ou falsa consciência. Ideologia é a própria atmosfera holográfica da virtualidade. Não é conceito operacional a não ser em circunstâncias específicas.
47 - Dentro da virtualidade há todos os fins, todas as éticas, todos os princípios, todas as razões, todos os significados e significantes. Fora nada significa, pois não há o fora do dentro que é a virtualidade.
48 - A história (desenvolvimento do gênero humano) é uma das maneiras fundamentais da virtualidade ocidental se apresentar, se ordenar, se articular, se relacionar, se projetar e introjetar. É parte da atmosfera holográfica e não teoria, idéia, imagens, elemento descartável, como certo ou errado, verdadeiro ou falso.
49 - O trabalho não é uma atividade, mas a realização da virtualidade posta num ponto.
50 - A compreensão da virtualidade não passa pelo estudo da Ciência Política, da História, da Ciência ou da Filosofia. Não é a compreensão negativa da virtualidade para modificá-la, uma leitura positiva, um saber, mas um trajeto negativo, virótico e incessante que não se conclui, não cessa, não se esgota, não se satisfaz numa Ciência, numa filosofia, numa teoria, num saber, numa disciplina, num método.
51 - A virtualidade não é dialética, estrutural, sistêmica ou funcional. No entanto qualquer teoria explica e obtém respostas objetivas da virtualidade. Todas são satisfeitas e provêm da própria virtualidade. Todas as políticas são aplicáveis; por mais antagônicas que pareçam são aplicáveis sem destruir a virtualidade. Múltiplas crenças não afetam sua integridade. Sua condição holográfica, sem origem, sem foco, sem ponto de escape, permite tudo, mas esse tudo é tão somente o tudo da virtualidade, o tudo que é por ela aceito, permitido, localizável, visível e invisível, possível e impossível, real e irreal. Nossa leitura negativa deve encontrar as resistências, os vírus que consigam destroçar o campo de força que a caracteriza. Dissolver, apagar, interromper, deformar o holograma, dis-torce-lo.
52 - Não sendo nada, na virtualidade, natural, não havendo evolução, progresso, desenvolvimento, desenvolvimento da consciência, humanidade, conceitos da própria virtualidade no seu esconder-se, no seu estranhar-se mais genérico e mais íntimo, não pode, a virtualidade, chegar a uma modificação, a uma revolução, naturalmente, tendencialmente, socialmente, economicamente.
53 - Aparentemente sujeito e objeto são ontologicamente distintos; cotidianamente também. Mas sendo a forma de existir ficcional e não concreta, a distinção é interior à virtualidade, isto é, como a virtualidade se vê, se projeta, se considera funcionando.
54 - A consciência não é um reflexo do real, não representa o real, não é uma dimensão do real, não é uma expressão do real.
55 - Não é a totalidade da virtualidade que cria, significa, direciona, modifica. A totalidade é indiferente, inexistente a não ser como postulado, pois não atua, não limita nem se limita. No entanto, cada discurso postula a totalidade, um eixo, um limite, uma atuação, uma legitimidade, uma verdade, uma posição, uma história, uma legislação, uma realidade. A totalidade é um conceito que, para existir, precisa de outros conceitos como natureza, história, objetividade, limite, evolução. Além de não ser um conceito inocente é conceito síntese de como a própria virtualidade acha que é, teoriza como é, vive como acha que é. Ao mesmo tempo, e exatamente por ser conceito fundamental e sintético, é que se torna essencial às teorias periculosas, aos discursos totalitários, policialescos, jurídicos e militares.
56 - A virtualidade é virótica.
57 - A tarefa de modificar a história, a possibilidade das revoluções, o homem como ator e autor da história, são discursos da virtualidade.
58 - A virtualidade não se confunde com território, língua ou linguagem, mas fazem parte dela.
59 - A virtualidade é estranhamento que aparece como sociedade, comunidade, classes sociais, estrutura social, formação social.
60 - Toda a espessura, toda materialidade, toda realidade da virtualidade é discursiva. Mas essa discursividade não a faz ser irreal, ideal, subjetiva, imaterial. A matéria da virtualidade continua a ser o-que-é, a ser o-que-se-vê, mas sua forma de existência não é uma natureza, uma sociedade, mas um programa sem autor e sem realidade-por-baixo. O caos-por-baixo não é perceptível: principalmente porque o caos não está por baixo, não está antes, mas é o próprio fundamento do existir: é formatando incessantemente o caos que existimos e fazemos o existir.
61 - A virtualidade é uma atmosfera, em holograma, sem constância, sem homogeneidade, perpetuamente em-passagem, em movimento, em todos os sentidos significando e nada significando; não é uma estrutura, um sistema, apesar de poder ser visto, sentido, apreendido, estudado, modificado, praticado como se fosse. A multiplicidade da virtualidade é um outro-caos co-ordenado pela práxis, pelos fluxos discursivos, pelas posições, materializações, desejos, necessidades, lógicas. As materializações, são configurações discursivas. Multiplicando sem começo e sem fim.
62 - O que formata o caos é um conjunto difuso e conciso de focos de força, poder, sedução, desejo, crença; práxis viva que faz e se reparte, se ordena, se normatiza, se compõe, se incita, se combina, respondendo, suscitando, satisfazendo e se projetando como coisa humana que produz e reproduz o próprio humano e seu universo; foco discursivo em materialização (ritual, serviço, obrigação, oferecendo, sacrifício, necessidade, obediência, graça, prática, trabalho), que é sem razão, pois cada virtualidade cria a sua razão específica que explica sua existência, sua reprodução, sua circulação, sua relação consigo mesma, com o mundo, com os outros, com os Deuses, com mistérios, saberes, sabores e práticas.
63 - A formatação como foco social e singular são estratégias, manobras, funcionamentos, multiplicidade de focos, presentes, disciplinas, discursos, práticas, técnicas que trans-formam o caos em matéria, objeto, natureza, sociedade e a si mesma em algo compreensível, reproduzível, ensinável. A formatação não é um ponto, uma base, um princípio, mas a virtualidade fluindo sobre si mesma e sobre o presente enquanto atualização plena no imediato. A formatação não é determinante ou primeira instância mas uma dobra reagindo sobre e com o já-criado, o já-delimitado, o já-desejado: o caos é a limalha invisível, imperceptível que passa para a visibilidade, entra no imediato, no vivendo e no presente.
64- O caos formatado pela práxis nos aparece sempre como uma pele, uma aparência, uma superfície: essa película, essa cútis, essa casca é regida pela produção e sua lógica (há muito tempo nos parece ser assim): ela é o natural, o real, o concreto, o visível e o invisível, o dentro e o fora (o dentro é somente um dobra da epiderme). Essa pele funda-se numa aceitação, numa rede de trocas, num sistema de crenças, num fluxo de forças sempre em circulação, em re-versão, em permissões e dádivas. A produção esconde tudo isso como irreversível, o unilinear, o intocável, o natural. A história é essa pele produzida e vista pelo mundo da produção.
65 - A virtualidade é fluida, instável, elétrica, misturando, compondo e recompondo insistentemente suas matérias, energias, funções, constituindo, reprimindo, ideando, destruindo, a todo instante, mutações e imobilidades. Rede holográfica instável em profundo e complexo desequilíbrio.
66 - A formatação são os múltiplos toques dos fluxos de sedução, poder e crença na rede sem fim da virtualidade, em todas as dimensões, dando-formas, sentidos, significados, relações, consciências, desdobramentos, sujeitos, objetos, visibilidades, invisibilidades. A formatação é a presença da virtualidade; não somente afeta, altera, destrói, limita, incita, facilita, desvia, induz, amplia, integra, mas cria fora e dentro, antes e depois, tudo e nada. Sua ação não se separa da virtualidade. Ela enquadra, ordena, divide, soma, produz, decompõe, diminui, multiplica, reproduz, sacia e esvazia. E ela que produz mundo e natureza, sociedade e história, sujeito e objeto; é ela que cria os interstícios, os vazios, os estranhamentos, o ser e o nada. Mas a formatação não é do sujeito, do objeto, das relações, das classes, dos grupos, mas antes de tudo, da presença, do existir que gera, procria a própria existência. Se em determinada virtualidade a formação é estranha; ou se a formatação toda é o nome de deuses, Deus, espírito, matéria, energia, trabalho, cabe-nos desalinhavar esse ocultamento da presença e sua formatação.
CADERNO DE CRIAÇÃO
ANO VII, Nº22, JUNHO - PORTO VELHO, 2000
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DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. MARX E A NATUREZA EM O CAPITAL. Loyola, São Paulo, 1986.
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