REFLEXÕES SOBRE A POSIÇÃO DO LEITOR

NAS TEORIAS DA RECEPÇÃO

 

 

MILENA MAGALHÃES GUIDIO

 

A leitura faz do livro o que o mar e o vento fazem da obra modelada pelos homens: uma pedra mais lisa, o fragmento caído do céu, sem passado, sem futuro, sobre o qual não se indaga enquanto é visto. ... O livro tem, de certo modo, necessidade do leitor para tornar-se estátua, necessidade do leitor para afirmar-se coisa sem autor, e também sem leitor. (Maurice Blanchot)

 

                Durante muito tempo, paredes com prateleiras abarrotadas de livros foram consideradas símbolos máximos de intelectualidade, conferindo a quem as possuía o status de saber que dava, em troca, o poder (quanto mais cara a encadernação, mais poder). Pouco ou quase nada importava a quantidade dos livros lidos. Nesse longo inverno camuflado de verão, os livros se bastavam. A sua imagem na estante era mais forte que a do leitor. Quando se começou a ventilar o que hoje denominamos teoria da literatura, o texto também bastava. Pouco importava saber qual parte cabia ao leitor no ato da leitura. No entanto, ele se fez pouco a pouco presente: “Escrevo a metade de um poema e o leitor escreve a outra metade”, afirmou Paul Valéry.  

                Anterior à teoria, a literatura já destacava a importância do papel do intérprete. Uma obra como a de Lawrence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1998), publicada no século XVIII, demonstra bem isso. O leitor fez-se presente em forma de narratário, a ponto de dois séculos depois transformar-se em protagonista no inquietante romance de Italo Calvino, no qual se lê: “Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido” (1999, p. 11). Comumente, esse tipo de enunciado faz parte do prefácio (da orelha?), e não do primeiro capítulo de um romance em que de fato se encontra, causando-nos uma espécie de estranhamento. A simultaneidade do ato da leitura e do enunciado recria tanto a escritura como a recepção – “você vai começar a ler ... Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido, encolhido, deitado ... Com certeza, não é fácil encontrar a posição ideal para ler. ...” (1999, p. 11). Uma das posições sugeridas é provavelmente a que o leitor vai estar. As suas possíveis atitudes são mapeadas pelo narrador no jogo textual, colocando às claras o diálogo que normalmente está no entredito da relação texto/leitor. A maneira como Calvino potencializa essa relação, desconstruindo o enredo do romance tradicional ao construir percursos fragmentados, inacabados, pontuados por vários imprevistos que deslocam os sentidos, acaba por revelar as múltiplas faces do leitor diante da obra.

                A materialização do leitor na configuração textual como narratário opera pontos de deslocamento no leitor empírico (vêm à mente romances como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis). Nessa personificação, ele é solicitado – seria certo dizer intimado? – para contribuir na configuração de sentidos que surgem no ato da leitura. Em sua singularidade, o intérprete lança um olhar móvel e diferenciado sobre a teia do texto, fazendo com que as páginas apresentem múltiplos sentidos. Na sua visada teórico-poética, Pierre Lévy compartilha de tal entendimento:

 

Face à configuração de estímulos, de coerções e de tensões que o texto propõe, a leitura resolve de maneira inventiva e sempre singular o problema do sentido. A inteligência do leitor levanta por cima das páginas vazias uma paisagem semântica móvel e acidentada.  (1996, p. 35)

 

                Na literatura brasileira contemporânea, são vários os autores que dialogam com o leitor, na busca de construir uma ponte para alcançar o momento virtual e invisível da leitura. Em Hilda Furacão, de Roberto Drummond, o narrador supostamente rende-se à evidência de que outras pistas, não construídas por ele, são possíveis, deixando em branco quase duas folhas para que o leitor possa elencá-las:

 

Há outras pistas ou suspeitas além das que levantei? Certamente sim, de forma que deixo a seguir um espaço em branco para que os leitores anotem suas suspeitas e, mais tarde, com o desenrolar dos acontecimentos, possam ver se acertaram ou erraram. (1991, p. 44)

 

                Brincando com os leitores, ao demonstrar as delimitações do seu espaço, o narrador institui no final da segunda folha: “Aqui termina o espaço reservado às anotações dos leitores; espero que tenha sido suficiente inclusive para minha querida tia Çãozinha, que costuma ser prolixa”. (1991, p. 45)

                Os recortes confusos, intertextuais e pós-modernos de Stella Manhattan, de Silviano Santiago, também são observados por detrás dos ombros pelo leitor:

 

Te digo não se preocupe – todo o tempo estive te lendo por detrás dos seus ombros como sempre faço, e você só não escutou a minha risada irônica porque a abafei por diversas vezes.  ... contive a língua porque era a única maneira de ver até onde você tinha coragem de ir.  (1991, p. 79)

 

                Além de Sterne, Calvino, Machado, Drummond e Santiago, vários outros autores também consideram importante a presença do receptor. A idéia de que o livro existe por si só tem sido constantemente refutada. Jorge Luis Borges, por exemplo, reflete:

 

Enquanto não abrimos um livro, esse livro, literalmente, geometricamente, é um volume, uma coisa entre as coisas. Quando o abrimos, quando o livro dá com seu leitor, ocorre o fato estético. E, cabe acrescentar, até para o mesmo leitor o mesmo livro muda, já que mudamos, já que somos (para voltar a minha citação predileta) o rio de Heráclito, que disse que o homem de ontem não é o homem de hoje o homem de hoje não será o de amanhã. Mudamos incessantemente e é possível afirmar que cada leitura de um livro, que cada releitura, cada recordação dessa releitura renovam o texto. Também o texto é o mutável rio de Heráclito. (1999, v. 3, p. 284)

 

O pensamento desenvolvido por Borges contribui para demolir a concepção textualista de que o livro se basta. O leitor é o rio de Heráclito, assim como o texto. Na temporalidade, os dois dialogam. Nesse diálogo contínuo, como os rios, ambos se transformam. Nem o leitor nem o texto se superpõem um ao outro, são ambos água do mesmo e diferente rio.

Dessa forma, o caminho natural das discussões teóricas foi colocar em destaque o ato da leitura, atribuindo ao leitor um papel, senão nuclear, ao menos relevante. Wolfgang Iser enfatizou tal fato no prefácio da primeira edição de O ato da leitura:

 

Como o texto literário só produz seu efeito quando é lido, uma descrição desse efeito coincide amplamente com a análise do processo da leitura. Por isso, a leitura encontra-se no centro das reflexões seguintes, pois nela os processos pelos textos literários podem ser observados.  (1996, v. 1, p. 15)

 

A partir de um dado facilmente verificável – os livros precisam de leitores –, a atenção dada ao texto/autor foi deslocada para o leitor. Umberto Eco afirma que, até os anos sessenta, as teorias da recepção surgiram como reação a três fatores:

 

... (i) aos enrijecimentos de certas metodologias estruturalistas que presumiam poder investigar a obra de arte ou o texto na sua objetividade de objeto lingüístico; (ii) à natural rigidez de certas semânticas formais anglo-saxônicas, que pretendiam abstrair de toda situação, circunstância de uso ou contexto no qual os signos ou os enunciados fossem emitidos ... (iii) ao empirismo de algumas abordagens sociológicas. (1999, p. 4)

 

Referindo-se, respectivamente, ao formalismo/estruturalismo, ao new criticism e a algumas abordagens marxistas, ele acredita que as teorias da recepção se contrapuseram aos estudos que privilegiavam os aspectos puramente estruturais do texto e, além disso, não aderiram ao jogo fácil da “leitura cerrada” que buscava examinar a interação dos traços verbais dos textos sem lhes atribuir nenhuma historicidade, como também se afastaram das leituras que valorizavam sobremaneira os aspectos ideológicos dos textos.

O deslocamento do olhar sobre o momento da produção, focalizando-o no ato da leitura, possibilitou, portanto, o aparecimento de variadas disciplinas. Essas se abstiveram, em tese, de atribuir uma essência ao fazer artístico, uma vez que precisaram regularizar a função do receptor e as implicações resultantes da compreensão, atualização e interpretação das obras por parte desses.

Foi assim com os precursores da estética da recepção, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, e também com Wayne C. Booth, autor da importante obra A retórica da ficção (1980), na qual foi formulado o conceito de autor implícito, de onde Iser extrai o de leitor implícito. Quando aludiu, embora subrepticiamente, à função do receptor, Roland Barthes, em livros como S/Z (1992) e O prazer do texto (1999), também desempenhou papel primordial no questionamento dos modelos estruturais de análise. Mais recentemente, o crítico norte-americano Stanley Fish, em contraposição à autonomia do texto e à ilusão da objetividade, concebeu a noção de “comunidades interpretativas”, subordinando o texto e o leitor a sistemas e a instituições de autoridade referendados num ato interpretativo temporal. A crítica norte-americana participa da acirrada discussão que envolve o ato da leitura também nas figuras de estudiosos como Paul de Man e Jonathan Culler. Ligados aos pensamentos do teórico francês Jacques Derrida, eles promoveram a revisão dos preceitos das análises textuais, seja as que privilegiam a imanência do texto, seja as que, supostamente, concedem espaço ao leitor. Culler, no livro Sobre a desconstrução (1997), debate os “destinos” do leitor e da leitura no âmbito da teoria e da crítica do pós-estruturalismo. Em contraponto às posições de Umberto Eco expostas em livros como Os limites da interpretação (1999), ele também discute a questão da “superinterpretação”, instituída por este para contrapor-se a tais críticas orientadas para o leitor.

As discussões, pautadas em orientações teóricas tanto comuns quanto diversas, atribuíram ao leitor uma variedade de nomenclaturas que, em alguns casos, têm como único ponto comum a alusão ao receptor. Fato percebido por Eco:

 

Nas últimas décadas impôs-se uma mudança de paradigma em relação às discussões críticas precedentes. Se em clima estruturalista privilegiava-se a análise do texto como objeto dotado de caracteres estruturais próprios, passíveis de serem descritos através de um formalismo mais ou menos rigoroso, em seguida a discussão passou a ser orientada para uma pragmática da leitura. Do início dos anos sessenta em diante, multiplicaram-se, assim, as teorias sobre o par Leitor-Autor, e hoje temos, ... leitores virtuais, leitores ideais, leitores-modelo, superleitores, leitores projetados, leitores informados, arquileitores, leitores implícitos, metaleitores e assim por diante. (1999, p. 1)

 

As diferentes categorias atribuídas ao leitor colocam em destaque as diversas tentativas das teorias da recepção para resolver a problemática da inserção do leitor empírico no campo disciplinar. O propósito de colocar em evidência algumas questões envolvendo a estética da recepção e do efeito, considerada a precursora nesses estudos, objetiva demonstrar as conseqüências de tais atos. A rápida abordagem ajudará a compor um panorama de identificação dos avanços e retrocessos na questão da importância do leitor na configuração de sentidos textuais.

Há uma problemática que envolve a maioria das teorias da recepção e tem sido ainda pouco enfrentada: o fato de a liberdade do receptor vir revestida de uma série de regras, geralmente, culmina na construção de categorias de leitor aprisionadas à estrutura do texto, como, por exemplo, a de leitor-modelo, formulada por Umberto Eco.

O conceito de leitor-modelo tem sido um dos pontos basilares da teoria da interpretação proposta por Eco. A noção de obra aberta é indissociável da de leitor-modelo, daí ser atribuída a ambas igual importância. Entretanto, a figura do leitor, nas teorias da recepção, é uma das mais controvertidas. O indivíduo que anda, come, dorme, namora, sente prazer, dor, emoção e procria não possui – ainda bem – uma personalidade definida, sentimentos previamente regulados que possam ser abreviados em uma teoria. O rio – a imagem de Heráclito, lembrada mediante a citação de Borges – parece contemplar as várias mutações pelas quais o indivíduo passa, fazendo com que seja difícil normatizá-las. Em razão dessa dificuldade, dentro do campo disciplinar da teoria literária, o leitor é especificado não como indivíduo, sujeito de carne e osso, com sua subjetividade impossível de ser prevista, e sim como estratégia textual.

Apesar de a materialização do leitor acontecer a partir da formação de conceitos, o grande mérito das teorias da recepção foi colocá-lo em evidência no momento em que parecia ser asneira pensar em fazê-lo. Está claro que a concepção valorativa nem sempre existiu. Apenas recentemente, ele saiu das margens para configurar-se como parte central dos estudos literários. Especificamente em 1967, com a exposição proferida por Hans Robert Jauss, publicada com o título de A história da literatura como provocação à teoria literária (1994), na qual são estabelecidas as bases da estética da recepção. Nesse momento, o pêndulo, sustentado pela tríplice autor-texto-leitor, oscila para o último.

Embora alguns críticos, como o francês Antoine Compagnon (1999), coloquem entre parênteses essa valorização, afirmando que concretamente ela ainda não aconteceu, sendo o leitor mais um apêndice do autor, o fato é que, antes, mesmo quando algum teórico comentava sobre a relação do leitor com a obra, fazia-o apenas subrepticiamente. Isso pode ser visto, por exemplo, entre os formalistas russos, preocupados em afirmar a supremacia da estrutura textual. Victor Chklovski aludiu a um tipo especial de imagem relacionada à arte: “o objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão, e não o seu reconhecimento” (1978, p. 50), o que nos deu a idéia de uma imagem que proporciona não um significado único, mas percepções várias. Chklovski estaria antevendo a relação mágica que se desenvolve entre cada leitor e cada texto, mas silencia sobre essa interação, não proferindo a palavra leitor.

Havia no formalismo russo, como também no estruturalismo, o receio de que a figura do leitor pressupusesse uma crítica impressionista, como as anteriormente em voga antes que as reformas ocorridas nas décadas de 50 e 60 praticamente varressem da história da teoria literária as críticas de gosto, embora elas insistam em, continuamente, ressurgir.

A desconfiança em relação ao leitor empírico advém da imprecisão da sua configuração. As teorias da recepção, mesmo proferindo a palavra leitor, aportam na dificuldade em legitimar o leitor empírico, tratando-o muitas vezes como uma abstração, embora não distingam o leitor-conceito do leitor empírico com o rigor necessário, desfavorecendo a posição do último, uma vez que quando ele ganha um caráter efetivo são desconsideradas, na maioria das vezes, suas especificidades. Tal fato acaba por suscitar uma variedade de críticas. Daí, ao destacar a estética da recepção e do efeito como importante movimento que privilegia o leitor, advém a necessidade de realizar uma arqueologia das críticas que discordam desse suposto privilégio.

Quando, em 1905, Proust escreveu o prefácio Sobre a leitura, por ocasião da publicação da sua tradução do livro Sésame et les Lys, ele mostrou o leitor como um amante dos livros, que preteria qualquer outra atividade em função do prazer proporcionado pela leitura. Proust afirma:

 

Tudo isso que a leitura nos fazia perceber apenas como inconveniências, ela as gravava, contudo, em nós, como uma lembrança tão doce (muito mais preciosa, vendo agora à distância, do que o que líamos então com tanto amor) que se nos acontece ainda hoje folhearmos esses livros de outrora, já não é senão como simples calendários que guardamos dos dias perdidos, com a esperança de ver refletidas sobre as páginas as habitações e os lagos que não existem mais. (2001, p. 9-10)

 

Ao contrário da afirmação de Borges exposta anteriormente, Proust deixa a impressão de conceber o ato da leitura como mais importante do que o texto em si: quando lemos, fica-nos, muitas vezes, a lembrança do momento, e não propriamente do texto lido. É uma desordem que a teoria literária tem dificuldade em aceitar – ou prever. Em razão disso, ela se fixa nos suportes que podem ser dados ao leitor durante e depois da leitura. Não é diferente na estética da recepção e do efeito, movimento fundador das teorias da recepção ancorado especialmente nas idéias dos pensadores Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser.

Jauss (1994) fundamenta sua teoria no processo hermenêutico-histórico (recepção), partindo do pressuposto de que a história literária, por privilegiar basicamente o momento da produção, havia-se encastelado em uma crítica que realizava o estudo do texto tão-somente na sua imanência (o formalismo) e, por outro lado, como produto histórico numa relação espectral com a realidade (o marxismo). Ao discordar dessas abordagens, Jauss possui o mérito, dentre outros, de propor uma história da literatura que contempla a recepção. Por essa razão, questiona também a visão essencialista da arte literária, que ganha força sempre que se privilegia a estrutura dos textos literários em detrimento à sua recepção.

A experiência estética, orientada para o receptor, põe em xeque o modo como foi construída a noção de cânone literário, que, até então, parecia impossível de ser colocada sob suspeita. Jauss afirma que nenhuma obra é clássica em si, pois somente pode ser compreendida ou, esteticamente falando, fruída, a partir do jogo de perguntas e respostas proporcionado no decorrer das leituras. No processo dialógico entre texto e leitor, cabe considerar as leituras precedentes e atuais, visto que as diferentes recepções contribuem para a atualização das obras; para tanto, um estudo meramente positivista não mais deve ter espaço. Jauss, no entanto, insiste em manter a relação da obra com a sua origem, atribuindo-lhe um lugar privilegiado, pois é o que permite a percepção das modificações operadas no transcorrer do tempo. Isso interfere na função historicamente projetada para o receptor, uma vez que ele é confinado a uma bolha que o obriga a considerar o já-dito na formulação da sua leitura. Borges já afirmou a impossibilidade da leitura primeira – “Com os livros famosos, a primeira vez já é segunda, posto que já os abordamos sabendo-os” (1999, v. 1, p. 256) –, talvez por isso tenha manifestado o desejo de poder ler os textos homéricos sem o conhecimento das leituras precedentes. Desejo um tanto quanto utópico.

Também parece utopia conceder espaço ao intérprete quando, na verdade, ele é submetido ao movimento sincrônico e diacrônico das leituras. Atuando a partir de um saber institucionalizado, a estética da recepção desconhece o leitor empírico que não tem acesso às leituras precedentes da obra, fazendo com que se construa a idéia de que esta age a partir de um tipo ideal de leitor. Tal recorte, embora óbvio, não é bem aceito por Iser, que nega o fato de a constituição do leitor implícito restringir o seu substrato empírico à categoria de leitor ideal.

Antoine Compagnon é um dos teóricos contemporâneos que discute a alternância entre liberdade e coerção do leitor contida nos pressupostos da estética da recepção. No livro O demônio da teoria: literatura e senso comum (1999), ao fazer a retomada dos principais eixos da teoria literária, chama o movimento liderado por Jauss de “o projeto mais ambicioso de renovação da história literária reconciliada com o formalismo”, afirmando ser esse nada mais do que a filologia da modernidade, “com a condição de se ocupar de toda a duração da história entre o tempo da obra e o nosso” (1999, p. 214). Ele centra sua crítica no fato de tentar-se “um meio-termo entre teses hostis” (1999, p. 211), como as formuladas pelo marxismo e pelo formalismo. De arremate crítico, afirma que, nas pesquisas desse estudioso, o leitor continua ignorado, fazendo com que seja uma entidade abstrata e desencarnada. Para corroborar a crítica de Compagnon, é importante perceber que Jauss não formula um conceito de leitor, como o de leitor implícito de Iser e o de leitor-modelo de Eco, uma vez que a recepção intentada por ele, como observou Iser, “diz respeito à assimilação documentada de textos e é, por conseguinte, extremamente dependente de testemunhos, nos quais atitudes e reações se manifestam enquanto fatores que condicionam a apreensão de textos” (1996, v. 1, p. 7). A atualização dos textos ficcionais a partir das suas várias recepções esbarra num dado histórico: são os leitores inseridos na cultura letrada que, geralmente, deixam seus testemunhos de leitura, o que exclui inevitavelmente o tipo de leitura feita pelos menos letrados.

Complementando esse olhar histórico-recepcional sobre os textos, no outro lado do movimento precursor, Iser concentra-se no ato individual da leitura, visto como momento de concretização da obra (efeito). Ele concebe a metáfora do viajante (Eco constrói a do detetive). Várias das terminologias utilizadas por Iser e Eco, se não são sinônimas, apresentam pontos em comum: leitor implícito/leitor-modelo, repertório/enciclopédia e, especialmente, a noção de vazio. Em sua viagem, o leitor caminha pelo texto, sem estacionar num determinado lugar, modificando o seu ponto de vista de acordo com o que encontra durante o percurso. As noções de “tema” e “horizonte” são elos que integram as diferentes perspectivas – do narrador, das personagens, da ação e do leitor – que trespassam o texto no ato da leitura:

 

Tudo que vê, ou seja, em que se fixa em um determinado momento, converte-se em tema. Esse tema, no entanto, sempre se põe perante o horizonte de outros segmentos nos quais antes se situava. ... O horizonte não é arbitrário; ele se constitui a partir dos segmentos que foram tema nas fases anteriores de leitura. (Iser, 1996, v. 1, p. 81)

 

A estética do efeito tem por base a idéia de comunicação. A interação é o princípio: não é o leitor nem o texto que provocam significados independentemente, mas a inter-relação dos dois. O texto não se apresenta como sistema preciso, e seus vazios, aquilo que não diz, são o lugar dado à ocupação do leitor. Tanto um como o outro mostram-se incompletos. Para Iser, ao contrário da linguagem pragmática, os textos ficcionais “não organizam as normas do repertório e os segmentos das perspectivas em uma seqüência previsível” (in Lima, 1979, p. 110). A ruptura com a previsibilidade constitui os vazios que devem ser preenchidos pelo leitor no momento em que realiza as conexões. Mantendo-se o vínculo com a concepção formalista de arte, o literário é concebido como um acontecimento que se viabiliza mediante uma linguagem organizada de modo distinto da linguagem prática: o que comumente se pretende simplificar em outros textos, na ficção é importante recurso para provocar ruídos, ou, como afirmam Iser e Eco, vazios:

 

Como interrupção da coerência do texto, os vazios se transformam na atividade imaginativa do leitor. Alcançam desta maneira o caráter de uma estrutura auto-reguladora, à medida que convertem o que subtraem em impulso para a consciência imaginante do leitor: o ocultamento transparece pelas representações. (Iser, 1996, v. 1, p. 120)

 

Os vazios não possuem uma estrutura determinada, não fixam e não se fixam num lugar esperado, por isso são “um impulso decisivo para a atividade de constituição do leitor” (1996, v. 1, p. 121). Fazem um corte na seqüência abrindo frestas para correr a imaginação, contudo também a regulam, impedindo o leitor de agir somente a partir de suas intenções. A imaginação alça vôos, mas as asas, como as de Ícaro, são feitas de cera. Isso ocorre em razão de a estética do efeito entrecruzar, durante o processo de leitura, as perspectivas do leitor com as do texto, sendo aquele o responsável por agrupar as outras perspectivas. Iser afirma que o romance é um bom paradigma para observar as múltiplas vozes que ecoam no interior do discurso textual: “ele tem uma estrutura perspectivista que se compõe de algumas perspectivas principais que podem ser claramente diferenciadas e são constituídas pelo narrador, pelas personagens, pelo enredo (plot) e pela ficção do leitor” (1996, v. 1, p. 64). Os significados não se completam de modo definitivo, pois sentidos diferentes se entrecruzam, aproximam-se, chocam-se e confundem-se na interação texto/leitor. O leitor desloca-se pelos diferentes “centros de orientação”, ora se detendo sobre um, ora sobre outro, constituindo o seu ponto de vista como um campo, espaço onde se orienta para formar seu sistema de comunicação.

No passeio pelo texto, o intérprete precisa adquirir “sense of discerniment, e isso requer a capacidade de abstrair-se de suas próprias atitudes, para que ganhe a distância necessária ao julgamento de seu próprio modo de orientação” (Iser, in Lima, 1979, p. 111). Diante de uma viagem regulada por um conjunto de normas, regras e nomenclaturas, ao adquirir um caráter institucional, o leitor perde o traço distintivo de substrato empírico. Iser visualizou não um leitor empírico, mas uma categoria construída a partir da estrutura textual. Segundo ele, o texto possui mecanismos de controle, pois a interação não pode ser regida apenas pelas projeções do leitor. Enquanto componente textual, as suas perspectivas auxiliam na condução do ato da leitura, entretanto são modificadas constantemente na travessia temporal do texto, na tentativa de estabelecer um sentido, que tem o poder de “contesta[r] o significado de estruturas de sentido anteriores e possibilita[r] a alteração de experiências passadas” (Iser, in Lima, 1979, p. 89). Fica subentendido que a não-obediência a esses movimentos de ir e vir pode produzir o que Eco chama de superinterpretação.

O leitor implícito – terminologia derivada do autor implícito, de Wayne Booth, para solucionar a dicotomia leitor ideal/real – não é vinculado, no primeiro momento, a uma existência concreta, porque é anterior ao ato da recepção:

 

... o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção a seus leitores possíveis.  Em conseqüência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto ... a concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor. (Iser, 1996, v. 1, p. 73)

 

A formação desse conceito deriva das observações feitas por Iser a respeito das tipologias de leitores formuladas por outros teóricos da recepção, como o “arquileitor” de Rifaterre e o “leitor informado” de Fish. Para Iser, “em princípio, esses leitores são concebidos como construções, mas todos se referem, de maneira mais ou menos evidente, a um substrato empírico” (1996, v. 1, p. 67). No entanto, Iser não escapa do mesmo tipo de crítica, pois, embora faça a distinção do leitor empírico e do implícito, resvala nessas diferenças ao admitir que este também é condicionado a um substrato empírico: “... a concepção do leitor implícito não é abstração de um leitor real, mas condiciona sim uma tensão que se cumpre no leitor real quando ele assume o papel” (1996, v. 1, p. 76).  Mais adiante, continua admitindo a inserção do leitor empírico ao afirmar que as suas peculiaridades marcam os diferentes sentidos extraídos de um texto: “Daí segue que o papel do leitor se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão previamente constituída que os leitores introduzem na leitura” (1996, v. 1, p. 78).

A categoria de leitor implícito serve, em tese, de referência para o leitor empírico não considerar unicamente suas experiências pessoais, e sim assumir o papel previamente dado pela estrutura textual. Portanto, a teoria da leitura que dá sustentação a várias outras mantém a ligação umbilical com a estrutura do texto. A estética do efeito não pretende ser uma sociologia da leitura que sirva, por exemplo, para identificar o leitor contemporâneo. Termina, por assim dizer, enfatizando a supremacia do texto, como acabará por fazer Umberto Eco em busca de regulamentar a liberdade interpretativa. Tais constatações, que derivam das imposições inerentes à constituição de uma disciplina, fazem-nos lembrar Michel Foucault quando ele afirma que:

 

A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras. Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, como que recursos infinitos para a criação dos discursos. Pode ser, mas não deixam de ser princípios de coerção; é provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador, se não se levar em consideração sua função restritiva e coercitiva.  (2000a, p. 36)

 

As teorias da recepção, para poderem constituir-se como disciplinas, esbarram inevitavelmente nos limites impostos pelos preceitos disciplinares que operam sobre uma rede determinada de conceitos. Estes se constroem à medida que vão surgindo as dificuldades geradas pela inserção do receptor, que, no seu substrato empírico, não pode ser validado senão a partir de estudos de caso.

As contradições que surgem a partir dessa categorização – supremacia textual versus limites do leitor – possibilitam o questionamento da posição ocupada pelo último, tendo como base o pressuposto de que o substrato empírico é preterido em nome do enquadramento teórico. É o que pode ser visto na crítica feita por Compagnon:

 

Muitas questões são levantadas a respeito da leitura, mas todas elas remetem ao problema crucial do jogo da liberdade e da imposição. Que faz do texto o leitor quando lê? E o que é que o texto lhe faz? A leitura é ativa ou passiva? Mais ativa que passiva? Ou mais passiva que ativa? Ela se desenvolve como uma conversa em que os interlocutores teriam a possibilidade de corrigir o tiro? (1999, p. 146)

 

Esse jogo retórico aborda questões que explicitam as dificuldades da leitura “real” constituir-se num objeto teórico, apesar de ser esta a maior ambição das teorias da recepção. Outros autores também ventilam questionamentos parecidos. Luis Costa Lima lembra que as críticas aos posicionamentos de Iser se originaram de integrantes da própria corrente, como H. Stierle, que afirma: “... Em Iser, as constantes são sempre e apenas constantes do texto, que têm a função de gerar as variáveis da recepção” (1979, p. 164). Costa Lima acrescenta afiançando que Iser continua ligado a uma tradição imanentista, o que implica no fato de o leitor postulado por ele supor um leitor ideal.

Tais reações soam extremadas e sempre levam à problemática do leitor empírico versus leitor-conceito, entretanto têm sido as críticas mais freqüentes às teorias da recepção. O autor de O demônio da teoria, retomando alguns pressupostos da estética da recepção, toca num ponto crucial: embora o leitor implícito tenha sido construído para estabelecer um modo de leitura que se afaste dos modelos estruturais, ele continua dependente da estrutura textual a tal ponto de sua função não ser mais do que preencher espaços determinados pelo autor implícito:

 

Sob a aparência do mais tolerante liberalismo, o leitor implícito, na verdade, só tem como escolha obedecer às instruções do autor implícito, pois é o alter ego ou o substituto dele. E o leitor real se encontra diante de uma alternativa radical: ou desempenhar o papel prescrito para ele pelo leitor implícito ou, então, recusar suas instruções; conseqüentemente, fechar o livro. (1999, p. 153)

 

Não há salvo-conduto para o leitor. De uma forma ou de outra, ele esbarra na impossibilidade de ignorar as regras de leitura. Não se está defendendo a aceitação de toda e qualquer leitura – uma utopia desejável, mas impossível de ser concretizada –, mas tão-somente questionando as contradições que surgem no interior da própria formação discursiva das teorias da recepção, enquanto constituidoras de um espaço regulamentador do receptor.

A crítica feita pelo teórico marxista Terry Eagleton assemelha-se à de Compagnon, porém enfatizando o viés ideológico. Para aquele, o leitor de Iser, já estando disposto a questionar suas crenças, corre o risco de ter apenas convicções provisórias. Eagleton afirma que esse teórico, ao comentar que “um leitor com fortes compromissos ideológicos provavelmente será um leitor inadequado, já que tem menos probabilidade de estar aberto aos poderes transformativos das obras literárias” (1997, p. 85), passa a desconsiderar que “os leitores estão social e historicamente situados, e a maneira pela qual interpretam as obras literárias será profundamente condicionada por esse fato” (1997, p. 114). Ele também acusa o uso da categoria de leitor ideal, pois o que está apto a fazer as inferências na leitura e, por conseguinte, ser transformado por ela, “é o que já está equipado com a capacidade e as reações adequadas; aquele que é eficiente em operar certas técnicas de crítica e reconhecer certas convenções literárias” (1997, p. 87). Essas técnicas se baseiam na concepção de que o preenchimento dos vazios tem como fim transformar o texto em um todo coerente, o que também é alvo de crítica, uma vez que a estética da recepção considera, em tese, que o texto literário não tem como traço definidor a previsibilidade do discurso.

Embora “o leitor social e historicamente situado” aludido por Eagleton também esteja numa posição fortemente marcada, visto que uma categoria como a de classe social só funciona se houver a particularização do tipo de leitor que represente tal classe, sua crítica, ressalvando a fúria demolidora, demonstra que não é qualquer “leitor real” que pode assumir o papel de leitor implícito.

Eagleton admite que Jauss, mais do que Iser, aborda o horizonte histórico, mas ressalta que a sua atenção se detém sobre o fator estético, impossibilitando-o de lançar um olhar mais demorado ao ambiente social dos leitores. Para ele, ambos os teóricos não responderam à questão determinante: qual a posição do leitor, subordinado a uma leitura parcial, entre tantas que podem ser feitas de um texto? O silêncio proporcionado pela questão produz uma conclusão comum às críticas feitas às teorias da recepção: o tipo de leitor idealizado por essas acaba sendo um ser isolado, intermediado pelo crítico que detém o conhecimento divino do texto.

Sobre as múltiplas perspectivas que abordam a inserção do papel do leitor no texto, Paul Ricoeur, por exemplo, no artigo “Mundo do texto e mundo do leitor”, presente no livro Tempo e narrativa (1997), afirma que os procedimentos literários das obras do alto modernismo intensificaram o processo de abertura, efetivando a desorientação do leitor, e o crítico deve ter o papel de guiar a (re)orientação, o que abona a controvérsia sugerida por Eagleton: as leituras são quase sempre legitimadas dentro do campo institucional a partir do apoio de outras leituras críticas.

O olhar de Ricoeur lança-se sobre a fenomenologia da leitura, dialogando com as teorias da poética, da retórica e da estética, detendo-se sobre a última para afirmar a sua supremacia. Na perspectiva do leitor, não é pouco diante do reconhecimento de ser ele o sujeito responsável por tecer a imensa rede textual: mesmo o autor dispondo no texto ordens explícitas de leitura, o leitor ainda pode libertar-se, mediante o horizonte de expectativas, transcendendo sua relação com o texto e com o mundo para adentrar no mundo da leitura e da re-leitura.

Para esse teórico, o leitor ideal é o que se desgarra do texto. Causa-nos a impressão de desejar um rebelde que não segue as trilhas e constrói a interpretação rebelando-se contra as ordens retóricas, entretanto a rebeldia precisa ser orientada, principalmente na leitura dos textos modernos, nos quais os espaços vazios provocam maior liberdade interpretativa. Para Ricoeur, esses textos operacionalizam estratégias de frustração, ou seja, constituem-se de múltiplas entradas, com excesso de sentido, por isso são mais propensos a desorientar o leitor – não é à toa que tanto a estética da recepção como a teoria da cooperação interpretativa farão uso deles em abundância. Nesse ponto, a presença do crítico seria necessária, pois a ela caberia o papel da (re) orientação: “o crítico é aquele que pode ajudá-lo a esclarecer as potencialidades mal elucidadas encerradas nessa situação de desorientação” (1997, p. 291). A leitura fica, dessa forma, condicionada a um resultado instituído pelo discurso autorizado dentro do campo acadêmico. Foucault alude aos jogos de saber e poder que determinam a posição dos sujeitos dentro dos sistemas de ensino:

 

o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes? (1999, p. 45)

 

Nesses sistemas, trava-se a batalha teórica para instituir um conceito de leitor que não deslegitime outros conceitos, como, por exemplo, o de texto. Nas distribuição e apropriação do discurso, as figuras do leitor e do crítico confundem-se, atribuindo-se ao último a posição privilegiada de substituir ou consertar as atitudes do primeiro. Na voz de Iser, o leitor, para realizar uma “leitura adequada”, necessita de certos predicados para interagir com o repertório do texto.

A relação entre leitura e conhecimento acumulado sempre foi considerada determinante para a validade da interpretação. Sem a competência almejada, o leitor fica impossibilitado de participar do jogo interpretativo, por isso o sujeito culto e especializado, aberto tanto às obras clássicas como às de vanguarda, ser visto como possível concretização do leitor implícito. Iser nega a busca pelo leitor ideal, afirmando ser ele uma ficção, mas o leitor implícito, por ter de obedecer a um conjunto de regras textuais, históricas e individuais, só se configura na idealidade. Ele continua dependente tanto da sua enciclopédia como da do autor, que se revela ou se esconde na estrutura textual.

Como poderia ser diferente, de que maneira se configuraria uma teoria em que o leitor como um errante caminhasse a esmo, escolhendo ou desviando-se do que bem desejasse? Tal questão determina a própria validade das teorias da recepção no campo disciplinar, pois sem especificar as normas que as regem, elas não podem legitimar-se. Enquanto disciplinas, estão cercadas pelas formações discursivas que impõem suas fronteiras. Compagnon afirma que Stanley Fish foi quem esteve mais próximo de legitimar uma livre aventura interpretativa, mas acabou retrocedendo em alguns dos seus posicionamentos, por não conseguir responder ao questionamento sempre presente: qual a posição efetiva dada ao leitor? Isso ajuda a comprovar o que temos enfatizado: o ato da leitura é regido por um complexo conjunto de normas que determina o tipo de leitor empírico previsto nas estruturas textuais. A própria leitura transforma-se em “texto” a ser interpretado, pois não tem um sentido dado, abrindo o leque para diferentes concepções. Sentidos diversos são dados ao ato da leitura: Calvino, Borges, Proust, Iser, quando comentam sobre leitura e leitor, atribuindo-lhes posições distintas, corroboram bem isso.

Após posições tão contundentes e, por vezes, doutrinárias, só nos resta voltar a Ricoeur quando ele acaba por admitir que o mundo do texto e o mundo do leitor estão separados por antíteses “que transformam o confronto entre [aqueles] num combate a que a fusão dos horizontes de expectativa do texto com os do leitor só traz uma paz precária” (1997, p. 301).  O que se propõe é uma paz precária. Ao articular um percurso da estética da recepção, alguns dos conceitos caros a ela acabam sendo desconstruídos. A dialética entre texto e leitor é movida por um jogo de articulação em que a liberdade e a coerção se entrelaçam, pois a recepção da obra está envolvida pelo poder coercitivo do autor implícito (que se desfaz na figura da voz narrativa) e a liberdade – constrangida ou não – do leitor implícito (que se realiza na figura do leitor real).

A posição ocupada pelo leitor abre um vácuo na teoria e na crítica literárias, pois é mais difícil  ser especificada do que as outras articulações narrativas de fato inerentes às estruturas textuais, como, por exemplo, a construção das personagens, do enredo e do narrador. Uma vez que a distinção do leitor-conceito e do leitor empírico se realiza dentro do campo disciplinar, a solução de fazer do intérprete parte das estruturas resolve apenas parcialmente o problema de sua recepção ser imprevisível.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BORGES, Jorge Luis. Obras completas de Jorge Luis Borges. v. 3. São Paulo: Globo, 1999.

BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Trad. M. T. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.

CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. N. Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. In EIKHENBAUM, B. Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo. 1978.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Trad. C. P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Trad. P. Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1997.

DRUMMOND. Roberto. Hilda Furacão.  São Paulo: Siciliano, 1991.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. W. Dutra. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 

ECO, Umberto. Obra aberta Trad. G. Cutolo.  8. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997a. 

____. Os limites da interpretação. Trad. P. de Carvalho. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

FISH, Stanley. Como reconhecer um poema ao vê-lo. In Palavra, n. 1. Rio de Janeiro: PUC, 1993. 157-165p.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. L. F. B. Neves. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000a.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. 1, 2 v. Trad.  J. Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. S. Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. P. Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996.

LIMA, Luiz Costa (Org.). A literatura e o leitor: Textos de estética da recepção.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Trad. C. Vogt. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo III. Trad. R. L. Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1997.

SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

STERNE. Lawrence. A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy. Trad. J. P. Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.