REVISTA ZONA DE IMPACTO. ISSN 1982-9108, VOL. 16, SEEMBRO/DEZEMBRO, ANO 12, 2010. 

TRAGÉDIA EM TRÊS BILHETES: MEMORIAIS PARA O ESQUECIMENTO

 

Vinicius Valentin Raduan Miguel
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO)

Capítulo I: Gnose


            Gnose. O poeta, em simbiose, se junta à pena. Lutam, como dois cães famintos. O poeta apaixona-se e desconfia. A Alta Teologia se farta no método zetético. Um estalido. O intelectual padece de seus dogmas. A preclara burguesia é o inimigo interno. Reflexivo, devora-se. Qual a magnitude da diferença entre a cor e o odor? Profeta de poucos acólitos, fiel de muitas esposas, agarra-se à tinta. A frustração resseca a paginação e cada folha registra um minuto sonoro de desgraças em tons róseos. Na gradação de dores, a ameaça rondava. O poeta caía. O poeta debatia-se em recaídas. Imputavam-lhe sórdidas penas, menoscabando a civilidade. Em respeito à desonestidade, escarravam sobre o sepulcro.
           A acídia para com o social, levava-lhe à incitar os horrendos amores à mãe – não temeria mais o paterno e, com isso, estava habilitado para afrontar cada um dos interditos societais. Mas o poeta reluta: quem é o ledor? É o poeta um fingidor? Acaso, Lê a dor? Quem lerá desdouros? Esses verbetes inconclusos são a lacônica vomição desse qualquer que não achegará ao Olimpo dos Escritores: não o quer. Faz os apontamentos em um transe com um quê de mediúnico, espirrando a dor e expondo a náusea de existir.
           Além do imagético, não há um real – mas o poeta furta-se da constatação. Engasgado com a fidelidade, sufoca-se com a taça da amargura de uma só senhora, modalidade contemporânea de servidão – um ridículo monoteísmo de uma só mulher – conquanto o desejo seja irreprimível, enclausurou-se na contradição de viver. A carne viva ardia e, antes de partir, encerrou o pensamento. O verbo ofensivo desfez-se em um momento que não é tempo. Perdido entre pedidos.


Capítulo II: Fernanda Carolina

           Ele (indeciso e apaixonado) temia por seus lábios nunca tocados, invejando a audácia dos fios de cabelo a tocar seus ombros. Silenciosamente, você prometeu delícias – em uma cozinha, em um quarto e em um sonho. Ele fez juras (como todo apaixonado faz) e por noites sem dormir, aspirava imaginariamente o perfume de seus cabelos umedecidos. Seus corpos eram mais que um tango. Sua boca entreaberta, mais que a música do desejo. Suas tristezas eram à distância. Ele a queria para por eras consecutivas tê-la como pronome possessivo, sem recorte temporal pré-determinado; seria apenas por muito além do tempo já vivido. As folhas de setembro cairiam mais uma vez? Outono - o vento trazia sua imagem - você era um desejo e uma lembrança... era uma narrativa inconclusa, um futuro por acontecer e uma promessa de dias intermináveis. E se faziam perguntas como se fazem sonhos: qual o sabor de uma dor? Qual o sangue de um perfume? Quais as cores da arte? Qual a ortografia da magia? Quem é o som da loucura?
           Um respirar. Tudo mudou.
           Eu observo sua sombra. Esta noite, eu sou a predadora. Relutante, recuso assumir o papel inexorável de assassina. Eu pensava em desistir, mas o instinto criminal pulsava ainda mais violentamente. Sua proximidade revelava a fragilidade de um pescoço desnudo. Sua delicadeza denuncia a impotência diante da minha brutalidade. Seus suspiros inscrevem o medo. Sinto seu perfume. Desenho sua música com a cumplicidade do desejo que é teu. Falamos o que não deveríamos em línguas imortais. Fotografamos a imoralidade – queríamos provas de nossos crimes. Eu não seria a criminosa sem sua explícita atuação de vítima. No teatro de nossas mentiras, fingíamos que éramos vivos, mas celebrávamos a cada minuto a dor. Eu aguardava o momento certo para o golpe. Seus gemidos rasgariam a calada manhã chuvosa de Londres.
           Eu observo seu reflexo no chão de um quarto vazio. No quarto vazio, uma mão apoiada no joelho esquerdo se esquiva de minhas mãos. Devo persistir? E na dúvida, enquanto o café esfria sobre o chão, apaixono-me por todas as suas antigas fotografias que revelam detalhes de um passado que adoro descobrir. Investigo suas coisas, seus segredos e suas caixas. O nada é nossa testemunha. A ausência é nossa terceira cúmplice. O ciúme é o roteiro e a desculpa. Suas dores não são maiores que as minhas. Eu sou egoísta e preciso de sua mais absoluta submissão. Sua anulação é minha exaltação. Você sabia disso quando as pequenas mãos trêmulas eram levadas ao rosto acariciado. Eu roubei seu nome. Eu violei seus segredos. Na intimidade do quarto vazio, eu imaginei a mobília roubada. No roubo de seus sonhos, sonhei com suas mãos geladas – mãos mórbidas e de unhas negras – percorrendo o assoalho. O seu riso foi a ordem que havíamos premeditado. No momento perfeito, levantei-me. Mas algo atrapalhou o momento tão nosso. Sons não esperados atacaram o nosso luto. Seu corpo aguarda o golpe, pedindo pela minha agressão. Mas seu perfume excita minhas glândulas salivares: meus dentes exigem sua carne como sua carne exige minha mordida.
            Eu observo as fotografias reveladas quando você acende a luz, elevando o último tango, me estendendo a mão para uma dança final. Suas mãos tentam acobertar o corpo, mas nós já conhecemos todas as suas deformidades. Eu sou o monstro do Doutor Frankenstein e quase a metamorfose de Kafka: meus pedaços imperfeitos e reconstituídos começam a tomar formas escamíferas. O que aparece é a minha verdadeira demoníaca forma – nunca te prometi graça ou encanto nesta forma cadavérica. Você se sente só? Eu estava confusa e precisava de você. Não precisamos mais do crime, temos a verdade aparente para nos agredir por toda esta noite. Mais um tango, mais um teco de você. Preciso de suas gotas e sua saliva. Mais que suas lágrimas, quero a integralidade de seu ser. Roubar seus instintos, desarmando suas reações. Substituímos o toque pela poesia do diálogo e eu faço de seu amor o mais contemporâneo conto vienense. Minhas mentiras e meus sussurros assombrariam seu sono. Esta noite, não dormirei só: tenho sua imagem!
Insatisfação. Malgrado as dores insones, a veste corpórea recusava a distância entre nós. A demência te refaz. As palavras escapam, sem provocação, e delatam minha obsessão por seu sorriso. Não sendo o bastante, recrio impulsos irresistíveis que me conduzem aos mais inopinados espasmos. Involutórios, involuntários. Sua existência, esquiva e furtiva, me assola: desejo a que a minha integralidade seja apenas sua parte. Na intertextualidade dos versos seus, transaciono vocábulos: em caráter consensual, lanço aos céus meus urros e acolho seus sussurros. Tomou algumas memórias – bons pensamentos que usurpavam a mente em momentos incontroláveis.
           Eu te fazia de refém de meus gritos ameaçando ninguém senão a minhas noites mal-dormidas. E você cedia, por ousadia e por piedade. Testávamos os limites de nossa amargura. Contudo eu não imaginava como terminaria. Em verdade, não terminou – nunca poderia ter começado. Não houve um romance, salvo aquele que desejei. Nossa relação era marcado por uma profunda assimetria em que minha manha era maior que seu amor. Nas linhas musicais das notas efusivas seus olhos buscam sugestões. Não existem inocentes em nosso romance, mas eu gosto de pensar que sou algo além do monstro que te assombrou naquelas passadas noites. Meus passos em seus relatos poderiam ser uma nova história. Mas são marcas indeléveis de sua inocência, manchas e feridas que custarão a sumir.
           Sim, Fernanda, eu fui o monstro e você foi a vítima. O que isso muda entre nosso passado comum? Seremos ligados pela sentença em que eu sou o réu: da interpelação “meu amante” para “meu sádico algoz”. Ironias sentimentais enquanto eu pensava que você era minha – mero delírio megalomaníaco de um amante possessivo que dizia ser “todo seu”. Um documento. Um arquivo policial e duas testemunhas. De todos os erros que eu fui, qual deles você escolheria?

Capítulo III: O Envenenamento

           Envenenamento. O prognóstico seria exaurir seu sangue. Adveio o medo, transmutado em um riso alto e grosseiro, aludindo à insanidade. Calhou de sujeitar-se. A vida toda tinha sido uma sucedânea de submissões. Tuas formas. A maçã a solicitar o perverso. Uma luta contra o grande senhor, o insopitável relógio. Em seus registros, horas de pecados, minutos de crimes. Os 3600 segundos contidos em uma hora eram substitutos verbais das mentiras. Submisso, revoltou-se. Pensara em suicídio. Pensara em homicídio. Tramara a forma mais traiçoeira, carregou a pistola e carregou-se de mágoas. O suor, delação corporal, esquinava a angústia. O choro sobreveio. A bússola, o calendário e o ábaco poderiam servir de condução à ultravida. Ferramentas perfeitas para uma jornada à desconhecida maioridade.
           A história é a promessa de um passado fingidamente glorioso, tornando o futuro desgraçadamente fracasso. Cotejando o que já foi, nunca perfazeremos um tempo vindouro melhor do que aquilo que já perdemos. Apaguei meu nome. Esqueci minha profissão. Eu te faço uma proposta antes do sol raiar. Você me devora em bons bocados. Sou fragmento. Sou o não contado em cantos escondidos. O texto desfeito e nunca refeito, a declaração não feita e a carta não saída do remetente. Remeto mentiras e o destinatário não lerá.
           A maquiagem obsecrou retoque. O trejeito feminino era gostosamente infante, mas já salpicado pela malícia, a tumultuar gemidos contidos no peito em celeuma. Partiu até a ante-sala, onde era aguardada. Na ensurdecida câmara, o algoz e a vítima, o colonizador e o colonial, a violência e o violentado. As velas espraiavam a penumbra sobre o ambiente: a escuridão solicitava o pecado. Os incensos orientais esfumaçavam a cobiça da besta. Neste teatro, as salivas misturaram-se - alquimia mediévica – e o verso prescreveu a vertigem que acomete os apaixonados. O algoz invejou o prisioneiro e o querer já fazia embaraçar as mentes: com dificuldade é que discerniam suas identidades. Logo, um se via como extensão do próprio eu.
Alfim, era precisamente a eliminação de ambos que permitiria o desfazimento. De nada bastaria o homicídio sem o recíproco suicídio.
           Na constatação, o sarcasmo.
           Engatinhou, cedendo aos reclamos do outro. Engatilhou a arma, temendo mais a existência do que a morte. Disparou três vezes, quase que simultâneas. Abraçada consigo mesmo, narcisa e lacônica, a última bala da arma, sepultou na têmpora. Os dois corpos se tornaram jazigos. O vinho de seus cadáveres se misturou com aquele do copo revirado pelos sôfregos movimentos do carinho imediatamente anterior. Nenhum minuto a perder.
Estar é a violência auto-infligida de existir. Nos absurdos sonhados, o pesadelo de estar aqui.