HISTÓRIA E VIRTUALIDADE

 

 

            Enquanto se acreditou e vigorou uma concepção naturalizada da realidade, principalmente nestes últimos duzentos anos (natureza ocidental universalizada acompanhando tanto o processo milenar de cristianização quanto de expansão do capital) a História pôde se expandir como o discurso sobre o real, copia do vivido, “narração verdadeira dos acontecimentos”, tendo seu texto sido tão somente uma referência sobre o real, o referente-mundo (“O mundo é um livro”) gerando seu texto (ou documento como chamam os historiadores) como sua imagem e semelhança, jamais enfrentando seu texto como referente, o que seria desmantelar sua lógica por dentro: o documento como texto.

            Aquilo que é a História em termos de conhecimento, dicotomia e confusão entre discurso e realidade, entre criação e fato, entre o vivido e o sobre esse vivido, se apresenta, nos termos da mídia, na indistinção entre o que se vê, se ouve e o “que está acontecendo ou aconteceu”: a mídia nos dá a mesma impressão de realidade total da História: ali está tudo: ali está o próprio real ou pelo menos todo os acontecimentos que “valem a pena”: são substanciais: somos transformados em “espectadores da história” porque tanto a mídia quanto a História possuem o mesmo suporte lógico, a mesma certeza que ali-está-o-real, a mesma visão de mundo, a mesma confusão entre discurso e realidade, entre o vivido e os “vestígios” ou documentos desse vivido, o mesmo não pensar as mediações, as tecnologias envolvidas e a distância entre o que se vive e o que se fala sobre esse vivido, coisa que todo mundo no momento da vida sabe tão bem: tanto a mídia quanto a História apresentam o mundo no seu tempo real.

            Com a crescente substituição, até mesmo pelas próprias Ciências da Natureza, de uma Matéria, de uma Natureza e de uma Realidade Social sólidas por uma concepção mais virtual, isto é, fruto, antes de tudo, da sociabilidade, das incertezas e das presenças inestirpáveis de instrumentos e sujeitos, a História apresenta uma proposta duvidosa: fragmentar seu objeto e seus discursos, sem ainda enfrentar, ou melhor desmaterializar, desnaturalizar e desuniversalizar sua lógica, sua estrutura documental, sua temporalidade (a História ainda não conseguiu ver que passado e futuro são leituras desdobráveis do presente e não instâncias), sua visão de mundo, sua constituição textual ou mesmo a ficcionalidade tanto do real quanto do seu mundo de conhecimento.

            Prefere desmantelar os elementos que diz estudar, seus objetos de estudo, a se desmantelar, a se historicizar e historicizar o território mental de que faz parte. Há realmente uma escolha pela fragmentação (falsa fragmentação: diz o de sempre e como sempre sem tornar texto nem seu discurso nem o documento) em lugar do enfrentamento tanto da sua unidade quando do seu esfarelamento, ficando tudo nos termos da sua própria competência.

            A persistente dicotomia racional e clássica entre Razão e Imaginação (entre o real e o imaginário) deforma radicalmente nossa visão de mundo (DURAND, 1988). Essa dicotomia esconde que o real é uma produção criativa com fundamento e limites sócio-históricos (é, na verdade, um território imaginário: virtual: ficcional), tendo sentido somente neste quadro (para o budismo Mahayana aquilo que chamamos realidade é o vazio, a pura vacuidade: para cada grande território subjetivo, para cada grande práxis, existe uma concepção de realidade que diz respeito somente aos seus quadrantes de visão de mundo: existem tantas naturezas quanto concepções sobre ela, tantas quanto as práxis que as criaram): não há o real e o imaginário: o real só é real porque é virtualidade viva: os estudos sobre o imaginário, como se fosse uma instância, uma parte “icônica” do real, é pura empulhação: só subsiste porque a separação que fazemos entre o imaginário e o real faz parte da nossa estrutura de ver e vivenciar: sem essa fissão fundante não conseguiríamos manter nossas ideologias em pé e muito menos as Ciências.

            O real, o natural não são instâncias de realidade que independem de qualquer presença: sem uma práxis não existe mundo; e podemos perguntar: sem a práxis existiria um mundo de que forma? Com qual forma? Com qual imagem? Com qual sentido? Com qual significado? Como falar em mundo, em cosmo sem um olho, sem uma comunidade, sem uma existência?

            Sem uma comunidade, sem uma presença, é absolutamente impossível manter tanto um mundo quanto uma visão de mundo: esse é o limite maior do existente, aquele limite que faz da sociosfera o criador do próprio existente como o conhecemos e podemos conhecer. Cosmo não é uma ordem encontrada mas uma ordem projetada nos processos de vivência e contravivência, é a formatação do caos, daquele existente que não podemos negar mas que também não podemos saber (CALDAS, 1997: 8-16).

            Ao mesmo tempo nos leva ao eixo teórico ou ideológico que nos faz deixar de perceber esse limite enquanto limite do existente, limite dos próprios conceitos: estamos numa formação social que esconde seus principais fundamentos, processos e mistificações por traz de uma estrutura mítica (1997: 30-36) que, além de não se reconhecer assim, funda todas as metafísicas objetivistas (Ciências) que estão em todas as nossas visões de mundo, principalmente por se porem sempre como universais, Oroboro que, somente ao morder a cauda, se confirma e passa a existir: não existe Oroboro sem morder a cauda: não existe História sem ser universal: a ocidentalidade não suportaria completamente ser mais uma grande tribo, somente o sonho e a ilusão de mais uma tribo perdida na existência, com um deus e um homem válidos somente dentro da sua grade de existência, experiência e reflexão.

            A idéia e a confiança científicas de saber o absoluto, o além e o antes, denotam apenas um saber desistoricizado, que faz esse além e esse antes estarem sempre dentro dos paradigmas do tempo social e do conhecimento aceito, com validade até a vida daquela comunidade e do tempo de vida das crenças. A certeza de uma exterioridade organizada como nós a vemos, independente da existência social, é tão somente uma projeção alienada.

            Não quer dizer isso que não haja um existente sem sociedade (sem o ser social de uma comunidade específica), mas esse existente não pode ser visto, tocado, cheirado, modificado, explicado sem que haja em processo uma comunidade que crie o sujeito, a ordem de idéias, de razões, de necessidades, de corpos e sentidos, de coisas e sonhos, de técnicas e tecnologias, de códigos e linguagens que formatem e justifiquem o existente enquanto existente, fazendo-o existir, dessa maneira, por essa presença humana que justifica o caos inapreensível (existente sem sujeito) em existente para um sujeito.

            Aquilo que nos parece tão sólido, tão consistente, o real, é somente assim por fazer parte de uma sociedade. É esta sociedade que cria, no fluxo específico da sua práxis, tanto os homens, as coisas, as relações, os deuses, suas naturezas quanto as linguagens, códigos, lógicas e visões de mundo que vão fazer parte da maneira como vemos tudo isso, como compreendemos e como interpretamos a existência.

            Todo real é virtual, mas não aquele virtual de computador. O virtual de computador é da mesma dimensão da ficção enquanto gênero literário: dicotomias e criações “secundárias” enquanto o virtual aqui tratado é o território de existência de determinada comunidade (formação social, sociedade), os limites e o eixo daquilo que entendemos como a realidade ou a nossa realidade: aquilo que é uma grande imagem, em grande parte válidas e reais somente para essa comunidade, mas que para nós é o próprio real, sem haver distância entre essas imagens e agora o existente para nós: o espaço virtual se torna o espaço: o tempo virtual se torna o tempo: a matéria virtual se torna a matéria: a sociedade virtual se torna a sociedade: o indivíduo, a família, o dentro e o fora somente para nós, virtualidade histórica específica, se torna um universal naturalizado: é a partir desse eixo que girará o existente, atraindo para seu movimento toda diferença como aberração, infantilidade ou primitivismo. Todo etnocentrismo é uma expressão primária da não reflexão entre o virtual que somos, historicidade viva, e o universal que dizemos ser.

            Enquanto o virtual de computador é criado por instrumentos que partem da dicotomia real/virtual (ou o real gerando o virtual), fazendo parte das imagens geradas por uma tecnologia, o real, por ser dependente, primeiro, da presença e, em segundo, da sociabilidade, não é imagem, mas formatação e existência: não se separa de nós mesmos: aquilo que somos no sentido mais amplo do termo: não pode ser desligado: não podemos sair dele (em Quake também não podemos sair nos jogos virtuais tudo ocorre dentro de um universo de ação, num labirinto permitido, não existindo o fora a não ser como paisagem ou vislumbre). Esse virtual inclui desde o chamado mundo físico, passando pelo mundo social até o mundo interior.

            Enquanto no virtual de computador podemos parar o programa e sair dessa virtualidade, é na verdade uma máquina que se desliga, no real entendido como virtualidade não se pode fugir a não ser com as catarsis própria das drogas, das ficções ou dos acidentes cerebrais e ainda assim todo isso estará nas redes vivas das ficcionalidades sociais que possibilitaram essa catarsis.

            Estamos, ou fomos gerados, num mundo onde depois de determinado momento estamos imersos, e esse mundo passa a ser nós mesmos: somos mais e menos que todos os fluxos ficcionais da comunidade: não os representamos mas somos uma leitura desses fluxos: somos nosso próprio fluxo, a nossa própria leitura: somos uma multiplicidade de narrativas agora reduzidas a uma fala esquemática e a um único mundo: uma fala, um corpo, um mundo, ditos, normalmente, por outro com outra fala: objetificados para serem ditos: o nosso dizer só pode dizer tornando todas as coisas objetos.

            A História, principal narrativa mítica ocidental, afasta outras formas de “dizer o tempo, dizer o mundo” como falsificações. Somente ela pode dizer. E esse seu dizer é sem vazios, sem descanso, sem desconexões, sem noite, sem sono: a História é um discurso pornográfico: um discurso hiperrealista: montagem que esconde que é montagem, mostrando-se como processo real e integral: uma representação do que foi, uma cópia.

            Politicamente, como faz parte intrínseca dos discursos tanto reacionários quanto dos discursos libertários, tornou-se uma narrativa intocável por ambos os lados. Serve a qualquer função: como mostra “o que aconteceu para o que está acontecendo”, pode compor os mais díspares discursos, as mais estranhas lógicas. Mas, por isso, não possui uma estrutura aberta: serve à esquerda e à direita (Hitler, Churchill ou Stalin podem usar a História cada um com sua lógica sem afetar profundamente sua existência como conhecimento, lógica e método) porque sua lógica combina com as lógicas dicotômicas do capital, onde abertamente existe o sujeito e o objeto.

            No entanto, serve a dois senhores mais não é aberta em sua leitura. Apresenta-se como descrição “do que aconteceu”, não como narrativa ou ficcionalidade, escolha textual de materiais sobre o vivido: a História (e com isso não excluímos as descrições sociológicas ou antropológicas) quer dizer o vivido.

            A História é uma apresentação do mundo onde o leitor faz somente papel secundário. Ele já recebe o texto e o mundo acabados. Não há lugar para sua leitura: seu papel é aceitar.

            A leitura em História é um “ver como foi”, jamais um, ao ler, fazer parte tanto do próprio texto quanto das possíveis interpretações. Sua leitura não se faz ao mesmo tempo da fala do narrador nem sua interpretação em pé de igualdade com a do hermeneuta. Principalmente porque enquanto a História diz ser um dizer sobre o real a Hermenêutica do Presente vem dizendo que é um dizer que é o real: enquanto um entende o real como referente, transitividade pura, naturalizado e universal, concebendo o documento como um reflexo desse real (causa e efeito), o outro, ao não entender o mundo como algo natural mas fruto das práxis sociais, fluxo vivo de virtualidades, não aceitando as concepções policiais do documento, passa a entendê-lo como texto, referente vivo e não simples referência reflexo. O texto é, em primeiro lugar, intransitivo, e é nessa intransitividade fundamental que partirá a leitura e a interpretação.

            Enquanto a História é o discurso ocidental por excelência, discurso dos fundamentos tanto cristãos quanto do capital e suas dicotomias, a Hermenêutica do Presente na sua dimensão e no seu momento de diálogo com o presente interpessoal, vem se apresentando muito mais como um discurso, um texto, uma rede textual que não confunde seu texto, sua interpretação com a realidade, o “fato”, o “acontecido”, o vivido.

            Ao desfazer a ilusão primeira do discurso, aceitar que não fala o real mas tão somente cria mais realidade (o vivido jamais pode ser inteiramente apreendido ou compreendido), entende que sua matéria não é o passado mas o presente (não esse presente mecânico do imediato (CALDAS, 1998a: 42-45), mas o presente que é espessura e profundidade, incluindo em suas dinâmicas todos os passados), tendo o texto como seu referente, vem tentando se instaurar como conhecimento fundamental ao nosso viver, conhecimento que pode interagir profundamente com o presente em suas dinâmicas ficcionais, sem ficar mais paralisado diante das estruturas naturais do mundo social, esperando as estações históricas para fazer mudanças ou revoluções, conquistando realmente seu lugar de criador do mundo.

            Para a Hermenêutica do Presente, num processo cada vez mais crítico da História, o pretenso fato é construção teórica e não o real reproduzido, duplicado, clonizado em papel. E, ao assumir essa dimensão, refaz o conceito de passado e de presente, criando para si outra temp-oralidade, outra politicidade, resgatando aquele papel que a História, discurso conservador, não conseguiu garantir nem convencer.

            O passado da História é conceito despolitizado, amorfo, já determinado em suas dimensões estabelecidas: o que pode mudar é tão somente certa interpretação e mesmo essa deve ficar nos quadrantes predeterminados do documento, ou melhor, nos quadros do seu próprio discurso, da lógica que o instaura. O presente é somente esse agora que é inapreensível ou o presente da mídia, que tem a extensão do consumo.

            O fundamento da nossa lógica continua sendo (porque nenhuma lógica dialética conseguiu fugir também desses fundamentos), primeiro, o princípio de identidade (A=A); segundo, o princípio de não-contradição (A não pode ser não-A); terceiro, o princípio do meio excluído (A é verdadeiro ou falso). Fora desses princípios a racionalidade Ocidental titubeia e morre por falta de ar. Sem essas garantias não há pensamento, ordem, causalidade, mundo, não há história ou História, tempo ou narrativa, não há Ciência nem Filosofia e todo conhecimento técnico estaria arruinado, não há Deus ou outra vida, não há o existir como entendemos em toda a ocidentalidade. Só um balbucio de bárbaro antes de morrer.

 

CADERNO DE CRIAÇÃO

ANO VI, Nº18, JUNHO - PORTO VELHO, 1999

 

BIBLIOGRAFIA

 

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