REVISTA ZONA DE IMPACTO. ISSN 1982-9108, VOL. 15, MAIO/AGOSTO, ANO 12, 2010.
Michel Zaidan Filho
Foram publicados, recentemente, dois livros que revisitam a obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, de uma forma bastante crítica:" Repensando os trópicos", da historiadora paulista Maria Lúcia Burke-Pallares e "Gilberto Freyre e o racismo", da professora pernambucana Silvia Cortez. O que chama a atenção é o silêncio cúmplice da crítica especializada sobre o conteúdo dessas obras. Se fossem livros de apologia ou laudação ao pensamento do "mestre de apipucos", certamente que os congregados gilbertianos estariam soltando fogos de artifício. Mas como são obras que remam contra a maré da "brasilidade nordestina", entende-se - embora não se justifique - a espiral do silêncio que se formou em torno dos autores. O que trazem de novo esses livros? - um novo perfil de Gilberto Freyre como adepto do racismo, num caso do racismo científico, noutro do racismo anti-semita. Surpreendente? - Nem tanto.
A principal tese de Maria Lúcia Burke-Pallares é que Gilberto Freyre não existe, ele se inventou ao longo de sua carreira de sociólogo e escritor, modificando - quando convinha - seus escritos ao sabor das épocas político-culturais que ele atravessou. Ou seja, o perfil arrojado de um autor que defendeu pioneiramente a mestiçagem como vantagem civilizatória, em plena época das políticas de eugenia e limpeza étnica, é uma construção bem posterior, na obra do próprio Gilberto. Pesquisando as cartas, documentos, rascunhos, manuscritos originais do arquivo particular do escritor pernambucano e tem acesso, no exterior, ao ambiente universitário onde ele se formou (Waco, Columbia, Paris, Londres), Burke-Pallares chegou a uma conclusão surpreendente: o paladino do hibridismo e da democracia racial brasileira era na época defensor do racismo científico, muito em voga neste período, e admirador da, pasmem, Ku-klux-klan, lamentando que no Brasil não existisse um movimento semelhante que salvasse os valores da velha aristocracia açucareira , como ocorria nos EE.UUs. em relação ao chamado "velho sul". A transformação de Freyre em defensor da mestiçagem e do hibridismo racial é posterior e se deu sob a influência de várias pessoas e obras, nem sempre devidamente reconhecidas pelo autor. Uma dessas influências foi a de Rudiger Bilden, um colega alemão que escreveu um ensaio intitulado: Brasil- laboratório para a civilização, sugerindo que a relação das raças no Brasil poderia servir de modelo para o mundo. Outra grande influência foi certamente a leitura da obra de Hebert Spencer, sobretudo a idéia "dos antagonismos em equilíbrio", segundo a autora paulista. O apego e a valorização da região e da terra vem da leitura de escritores ingleses e americanos, entre eles: Lafcadio Hearn. Diz, ainda a historiadora, que Gilberto queria ser escritor, não sociólogo, de língua inglesa - não portuguesa. E que ele não desejava voltar ao Brasil, muito menos ao Nordeste. Só voltou a convite de Estácio Coimbra, para ser seu oficial de gabinete. O livro traz ainda um longo desenvolvimento sobre as experiências homossexuais de Freyre no exterior.
O outro livro, da historiadora pernambucana Silvia Cortez, foi submetido a um silêncio ainda maior. Fruto de uma Tese de Doutorado defendida na Universidade de São Paulo, já tinha sido objeto de uma ampla matéria no jornal paulista "Folha de São Paulo". O livro aborda o preconceito antisemita, de Gilberto Freyre, ao longo de várias obras do sociólogo pernambucano, onde ele deixa escapar espontaneamente seus prejuízos, deslizes verbais, vícios de linguagem, senso comum, estereótipos sobre os judeus, os israelitas, imigrantes de origem semita, associados por Gilberto à mercância, ao comércio, à usura, ao escambo etc. Na verdade, o preconceito antisemita de Freyre tem muito a ver com a idéia das "predisposições psicológicas" das raças, um ponto que contraria o celebrado "neo-lamarkismo" d o autor, ao admitir que, apesar da influência da cultura e do meio sobre a raça, sobrevivem traços de caráter para o resto da vida. Entre as tais "predisposições psicológicas", estariam a tendência para o dinheiro, o lucro parasitário, improdutivo dos semitas. Como dos afrobrasileiros para o esforço físico e a sensualidade. E do colonizador português para se misturar ("confraternizar") com as outras raças. Resulta assim que o tão festejado hibridismo racial do autor é contaminado pelos resíduos de uma ideologia racial conservadora.
De toda maneira, a posteridade tem procurado tratar a obra do "mestre de apipucos" com o distanciamento crítico que ela merece como um autêntico "quase-mito" fundador, que ela é. Como disse o ex-presidente-sociólogo- Fernando Henrique Cardozo. A distância vai humanizando o personagem e desconstruindo a mitologia de "Pernambuco como nação".