Zona de Impacto - ISSN 1982-9108 ANO 18 Vol.1 - 2016 - janeiro/junho
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em pdfRITUAIS DE MORTE[1]
Elisabete ChristofolettiCENTRO
DE VIVÊNCIA EM PSICOLOGIA
(...)
as artes ou ciências práticas, não se
aprendem só especulando, senão exercitando. Como se
aprende a escrever? Escrevendo. Como se
aprende a esgrimir? Esgrimindo. Como se
aprende a navegar? Navegando. Assim
também se há-de aprender a morrer, não só
meditando, mas morrendo”. (...)
saber morrer é a maior façanha Antônio
Vieira, 2º sermão de 4ª Feira de Cinza Participei
recentemente da realização de um trabalho de Incubação de Sonhos e Dia de
Muertos no México. Para quem já esteve ou conhece o México, sabe porque senti e
constatei que é inevitável retornar sem abandonar seus encantos. O contato ou
melhor a con-vivência com sua mitologia e seus rituais nos remete a nossas próprias
mitologias e rituais. Foram
dias, longos dias, de horas indígenas, a convivência com curandeiros zapotecas;
o olhar caminhando na antiga construção da igreja/museu vivo de São Domingos,
seu jardim avermelhado delimitando seu espaço ao mesmo tempo em que oferecia
elementos para nossos pensamentos e sensação de proximidade com o deserto,
árido e belo; as ruínas de Monte Alban (um observatório no qual os sacerdotes
realização seu trabalho de observação dos céus para definir as etapas da
agricultura, relação de respeito sendo a vida dominada pelo medo do desrespeito
ao divino, ou talvez não tivessem necessidade de confrontar-se com o divino já
que suas realizações e prazeres estavam em outros espaços), ao final da tarde
quando os turistas não mais ocupavam seus caminhos. Para
tranquilidade dos intelectuais (e minha também), buscou-se o equilíbrio nos
trabalhos de incubação de sonhos, coração forte, brilho nos olhos e
pensamentos, reflexões em turbilhão. Participar
do ritual do Dia de Muertos, é sem dúvida no mínimo um grande provocador para
os sonhos noturnos, facilitando o encontro, a proximidade com nossas tantas
mortes, assim como responsável por minha disposição em sentar frente à
tecnologia e buscar aconchego nas palavras, imensas teias, de símbolos,
manifestação também de nossa mitologia e refletir o mito da morte, afinal somos
narrativas (explícitas ou não) possibilitando, criando nossas próprias
leituras. O
México todo, nos dias que antecedem o Dia de Muertos começa a preparar-se para
receber seus mortos. Na
cidade do México com três grandes mercados, o “De la Merces”, o “De las bruxas”
e o mercado “Dos doces”, o encanto de cada um é próprio, espaços onde é
possível sentir presença de vida o tempo todo, de frutas, legumes a flores,
plantas para todas as curas e um Cristo negro crucificado, mas é possível
perceber mudanças na decoração do mercado “Dos doces”, passando a apresentar em
suas prateleiras e pequenos balcões tudo o que pudermos imaginar com motivos de
morte, são caveiras, esqueletos, fantasmas de açúcar, chocolate, pipoca, pipoca
de arroz, vários tipos de confeitos, enfeites elaborados em papel, plásticos,
madeira, tolhas de papel recortadas com motivos de morte formando grandes
varais. Em
Oaxaca, a tradição do “Dia de muertos” mantém-se com muita força, o mercado da
cidade apesar de grande, no período de preparação para a festa fica pequeno,
suas ruelas que já são estreitas não permitem o passo acelerado, nem mesmo
esquivar-se de sacolas e pessoas. Uma grande mistura de cheiro, cores e formas
criam um ambiente alegre, porém com muito respeito e responsabilidade na
escolha de cada elemento que irá compor o altar das oferendas. Passando
pelas bancas de comidas encontraram todo tipo de fruta, legumes, queijos,
embutidos, pães, bolachas, que habitualmente são comprados para consumo dos
Oaxaquenhos, nesta ocasião também são escolhidos com maior cuidado, pois devem
compor o altar que cada família irá montar em sua casa e depois no cemitério em
cima das tumbas para seus mortos. Nas barracas de brinquedos e artesanatos
assim como nas de doces é possível encontrar tudo que a imaginação e a vida
permitem, sempre com motivos de morte. A vida é retratada em todos os seus
momentos, crianças, adultos homens e mulheres, até mesmo vovós esqueletos, famílias
esqueletos inteiras. Pequenas ou grandes, essas esculturas também retratam as
mais variadas atividades profissionais, assim como os momentos da vida. São
esqueletos dançando, tendo relações sexuais, comendo, bebendo, cantando,
tocando instrumentos, dando aula, formas de representação dos prazeres da vida. O
Dia de Muertos para os mexicanos é acima de tudo a possibilidade da comemoração
da vida, dia em que os que se foram recebem autorização divina para retornarem
e partilhar a vida com os vivos. Entre
os dias 30 de outubro e 02 de novembro acontece a grande festa. Nesta primeira
noite as famílias preparam-se, já tendo montado um altar em suas casas com
oferendas para os mortos, coloca-se os elementos simbólicos (chocolate, pão,
fumo, mezcal, flores amarelas que simbolizam a sabedoria e encontra-se
facilmente pela região neste período do ano) além daqueles objetos e alimentos
que o morto mais apreciava, para que possa retornando sentir os prazeres que
apreciava. Chegando
ao cemitério é possível perceber que algo está acontecendo, há uma grande
movimentação de carros, pessoas carregando os últimos preparativos, um senhor
carregava um caixãozinho com um esqueleto tocando saxofone, sua família o
acompanhava, com passos rápidos caminhavam, mas tarde tornamos a encontrá-los. Na
entrada do cemitério pelo lado de fora estão barracas com comidas típicas
doces, salgadas e com bebidas, que ajudam a aquecer o corpo para passar a noite
e enfrentar o frio. Milhares
de velas acessas, crianças dormindo, outras brincando, arrumando as oferendas,
algumas vestidas de diablitos, adultos conversando, rádio ligados com as
músicas mais variadas possíveis, pessoas tocando instrumentos. Na penumbra da
noite os rostos iluminados por chamas, o início da neblina, a mistura de sons
formando um mantra único. Reunidas
as famílias tomam o mezcal assim como oferecem aos que os visitam, tocam-se
goles de bebidas, conversas, histórias e a cera altura da noite come-se uma
comida própria para a ocasião o tamalis, uma massa de milho envolta em folha de
bananeira com um molho preto e salsa (uma espécie de pimenta), lembra
visualmente nossa pamonha, mas com sabor único. Os
sabores, cheiros sempre serão únicos, é possível lembrar de determinados odores
sentidos na infância por exemplo e que não podem ser repetidos. A leitura que
fazemos de uma situação vivida está vinculada ao que somos, pensamos, agimos
naquele momento, ao contexto, isto é, vivemos uma situação, temos uma
percepção, expectativa, envolvimento e constituímos uma narrativa, que neste
momento nos torna especiais, únicos assim como o que vivemos. Dessa maneira o
sabor do tamalis jamais será o mesmo, cada pessoa estabeleceu sua leitura sobre
ele, portanto jamais se repetirá. O
sentido, o significado de uma festa como essa por exemplo, está vinculado a
cultura e crença de um povo, demonstrando que não poderá ser transportada para
outros lugares, fora de seu ritual, onde compõe tantas narrativas do povo
mexicano. Orações
são feitas, de reverência aos deuses, pedindo e agradecendo, colocando-se a
disposição para que os seus possam vir visitá-los. Caminhando
por entre as ruelas do cemitério é possível conversar com as pessoas, ouvir
tantas histórias de vida e morte (também Severinas) e sentir a perplexidade
quando perguntam como é nossa festa do dia dos mortos, a preparação diferente
da que vivem e que ao contrário, sofremos com a morte e nos esforçamos o máximo
para nos distanciarmos dela e dos que se foram, que mantemos mais neste dia o
sofrimento, passando os mortos a representar sofrimento e dor, dor também
solitária, ao contrário do que vivem, quando as pessoas se visitam, participam
da montagem do altar de amigos, assim como partilham o momento de desmontar e
saborear as oferendas. Abrimos um ciclo de dor, sofrimento e penitência, e por
isso nos distanciamos ainda mais, aumentando a dor já existente, fugimos dos
que amamos, dos que sentimos falta, de nossos sentimentos, de nossas mortes, de
nossas perdas, de nós mesmos. O
momento da constatação da morte, seja para nossa cultura ou a mexicana, é o
mesmo: dor, sofrimento apresentam-se com grande semelhança de forma e sentido,
a existência de rituais para o Dia de muertos não altera, nem exclui a dor da
perda, como se qualquer dor pudesse ser excluída ou anulada. Quando
a morte de um ente querido acontece, nos sentimos mobilizados por ela, mas esta
é uma situação em que entramos em contato com a dor que é única e própria de
cada um, dor da perda, de perdas, perda daquele que se foi, perda do que se
viveu e que não poderá mais ter continuidade, a impotência e a lembrança de
tantas outras perdas que acumularam-se ao longo dos anos durante a construção
de cada história de vida. Trabalhar
com as perdas não é tarefa fácil. Poucas vezes e em raras situações podemos
usar com tanta veemência e certeza uma palavra como NUNCA, mas nesta não
podemos excluí-la e esse é o sentimento. Somado ao nunca está a sensação de
magia, é difícil entender como é possível, além de não podermos participar da
opção em viver esta experiência ou não, não podemos impedir, vivemos em grau
máximo nossa IMPOTÊNCIA. Impotência diante da morte, mas não diante de tantas
pequenas mortes que ao longo da existência passamos uma a uma, podemos também
nos justificar a partir dessa conhecida impotência. Não
só a morte, mas a vida também contém mistérios que envolvem nossas crenças.
Vida e morte/Morte e vida, crenças e rituais, lembremos que os evangelizadores,
donos de verdades, quando chegam buscam a todo custo impor essa sua verdade
como única, para dominar interfere em conceitos, formas de vida estabelecendo
uma nova crença, provocando um genocídio. No
princípio da colonização mexicana, os indígenas atribuíam a cada indivíduo
várias entidades anímicas e que a cada uma delas correspondia um destino
diferente depois da morte, conceito este que não pode ser compreendido pelos
padres que chegaram junto com a colonização, pois partiam do conceito cristão
de uma única alma, de um único deus. Os
povos Nahuas habitantes da região central do México compreendiam a morte como o
momento da dispersão dos componentes do ser humano, sendo que consideravam três
os principais centros anímicos do ser humano que correspondiam a três
níveis do cosmo. O
teyolía está situado no coração, guarda a essência humana, a vida.
Quando a pessoa morre o teyolía sai do peito como o deus do vento. Tonalli
situado no cérebro, está vinculado a individualidade e ao destino pessoal, sai
da cabeça como uma serpente e depois da morte repousa sobre a terra, além de
geralmente ser guardado por seus familiares em uma caixa que contém suas cinzas
e mexas do cabelo da pessoa que morreu. O
ihíyotl, situado no fígado, representa o motor das paixões, se dispersa
na superfície da terra e pode converter-se em fantasmas ou enfermidades, como o
vento noturno. Ainda
em relação ao teyolía, depois da morte havia quatro lugares para
designar seu destino, “el Mictlan” que significa lugar dos mortos,
situado nas profundezas da terra, para onde se dirigiam os que haviam tido uma
morte comum. Os que caíram em combate eram oferecidos em sacrifício ao sol em “el
Ichan Tonatiuh Ilhuícatl” o céu que é a morada do sol, assim como as
mulheres mortas em seu primeiro parto ou comerciantes que padeceram em seu
trabalho. O paraíso da vegetação “el Tláloc” recebia os que foram
golpeados por um raio, afogados ou que sofreram enfermidades ligadas a água.
Para os recém-nascidos que morriam antes mesmo de conhecerem alimentos sólidos,
era destinado um lugar chamado de “Chichihualcuauhco”, onde podiam
alimentar-se com leite, lá havia uma árvore com frutos em forma de mamas e
enquanto esperavam uma nova oportunidade de vida, poderiam continuar a se
alimentar. O
poder da morte era atribuído a deus que a partir do modo de vida de cada um,
determinava como seria sua morte, isto é, os deuses avaliavam o bom e o mal de
cada um e estabelecia seu destino a partir desse momento. Para as pessoas,
porém, o mais importante era cumprir uma função cósmica do que necessitassem o
prêmio ou o castigo, não existiam paraísos de ócio, mas sim de trabalho.
Acreditava-se ainda que todas as criaturas tinham um coração indestrutível e de
natureza divina, Dom esse oferecido pelo deus que os haviam criado. Ainda
em relação aos cultos aos mortos ou sobre a morte, encontramos várias
cerimônias. O culto aos deuses da morte, como responsáveis pelo ciclo que
perpetua a vida, seja ela vegetal, animal ou humana. O culto aos antepassados
através da veneração dos restos mortais que eram depositados no templo da
comunidade, buscando força e proteção. Também o culto às forças sobrenaturais contidas
em relíquias utilizadas como objetos sagrados e por isso também geradores de
poder. Por último o culto aos mortos, preparação do corpo, separação das partes
e envio de cada uma delas a seu destino, preparando dessa forma também o
cadáver para sua conservação e a homenagem a seus restos. Padre
Antônio Vieira durante sua estadia em Roma escreve dois sermões para a quarta
feira de cinza repetindo o feito em Lisboa, quando remete-nos a uma passagem do
Gênesis quando Deus refere-se ao homem depois do pecado original, “Memento
homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris” (Lembra-te homem, que és pós,
e em pó te has de converter). Vieira
coloca a todos em igualdade, fomos pó e voltaremos a ser, ora, somos pó e feito
pó nada diferencianos um do outro, além do que não é necessário crença para que
esta seja uma verdade, pois está dito, e a vista de todos: fomos, somos e
seremos pó. Somos nada, diz Vieira. A
diferença estabelecida entre vida e morte é feita por Vieira quando diz que os
vivos são pó que anda, sentem, percebem ou contrário dos mortos que são pó
inertes, que tudo pode ser posto em cima, assim como ao sinal do vento pode ser
levado, pode dissipar-se. “Se levantados, vivos; se caídos, mortos; mas ou
caídos ou levantados, ou mortos, ou vivos, pó: os levantados pó da vida, os
mortos pó da morte”. (Vieira, 1994: 55) Morte,
ainda segundo Vieira age como vingadora de todas as ofensas que a natureza
tenha por ora apresentado, não tem cor, não reconhecendo a vaidade ou fortuna e
tornando-as iguais a razão. A única diferença entre os homens é a crença na
imortalidade, sendo pó sabemos o pó que somos e seremos, porém não sabemos o
que é o pó. Vieira vai além, citando Seneca diz: “morremos com mortais que
somos, e vivemos como se fôramos imortais”. Ao
contrário do que percebemos, não tememos a morte quando esta se apresenta, mas
tememos a vida, aquela que está a se perder, apresenta a vida como temida por
significar o sofrimento, o mundano e a morte surge como resolução de todas
essas angústias, deste sofrer, segue ainda atribuindo duas portas a morte, uma
de vidro por onde se passa quando se deixa a vida e outra de diamante por onde
entra-se. O
cristianismo estabelece uma divisão clara entre vida e morte, embora não
devêssemos nos preocupar com a morte ou não nos incomodar com ela, há uma
dicotomia que nas relações quotidianas são claramente sentidas e vividas, o
distanciamento que impomos aos nossos mortos, temos a necessidade de nos
distanciarmos deles o máximo que pudermos, como se a morte de fato não fizesse
parte da vida. Separação,
angústia, insegurança, medo do novo ou da própria vida, se negarmos cada uma de
nossas mortes mesmo assim elas existirão, teremos mais uma ilusão. A ausência
de rituais, o vazio da existência, o não reconhecimento de significados
continua a ser uma construção que cabe a cada um realizar, assim como existe a
possibilidade de escolha, somos nossas tantas narrativas de vida e morte tantas
Severinas quanto desejarmos. BIBLIOGRAFIA VIEIRA, Antônio. A Arte de
Morrer. São Paulo, Nova Alexandria, 1994. NOTA [1] A primeira versão desse texto foi publicada no
periódico CADERNO DE CRIAÇÃO. ANO VIII, Nº25, MARÇO - PORTO VELHO, 2001. ISSN
0104-9389 |
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