Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 18 Vol. 1 - 2016 - janeiro/junho



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O CORPO EM ESTADO ALTERADO DE CONSCIÊNCIA NOS RITUAIS DA TRADIÇÃO FARRELIANA DE MANAUS

 

 
Jeferson Bastos de Souza

Graduando em Teatro UEA/ESAT

Luiz Davi Vieira Gonçalves

Professor UEA/ESAT – Teatro

luizdavipesquisa@hotmail.com

 

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo investigar a corporeidade nos rituais da Tradição Farreliana de Manaus buscando entender os estados alterados do corpo com base no sacerdote. A metodologia adotada foi a pesquisa performativa, pois a partir da prática na bruxaria com a Tradição Farreliana que se iniciou essa pesquisa. A partir dos rituais da Tradição, buscamos relacionar o universo teatral com o universo da bruxaria tendo como foco os estudos na Antropologia da performance, que possibilitam relacionar esses dois universos através de estudos desenvolvidos por autores que buscaram demonstrar justamente os pontos de contato entre o ritual e a performance.

 

Palavra-chave: Performance; Corporeidade; Tradição Farreliana.

 

Abstract: This research aims to investigate the corporeality in the rituals of tradition Farreliana of Manaus trying to understand the altered states of the body based on the priest. The methodology adopted was the performative research because from practice witchcraft with Tradition Farreliana that began this research. From Tradition rituals, we seek to relate the theatrical universe with witchcraft universe focusing studies on the anthropology of performance, which allow to relate these two universes through studies by authors who sought precisely to show the points of contact between ritual and performance.

 

Key-words: Performance; Body;  Tradition Farreliana.

 

 

 

 

 

Esta pesquisa tem como objetivo estudar a corporalidade nos rituais da Tradição Farreliana de Manaus, visto que a Tradição Farreliana é uma bruxaria que realiza as suas celebrações por meio dos rituais de Sabás e Esbás, por esse motivo para essa pesquisa busca-se entender os estados alterados do corpo e suas expressões com base no bruxo sacerdote. 

A crença dos membros da Tradição Farreliana refere-se principalmente ao culto à Deusa Mãe em seus aspectos como donzela, mãe e anciã; e por meio dela, também ao Deus Cornudo. São para essas duas divindades, (a Deusa e o Deus) que estão associados a diferentes nomes de deusas e deuses como, por exemplo, a Deusa Brígit e o Deus Cernnunos, deuses padrinhos da Tradição, que os bruxos e bruxas sacerdotes e sacerdotisas prestam culto nas celebrações dos rituais de Sabás e Esbás. 

Os Sabá e Esbás fazem parte das celebrações que ocorrem durante a chamada roda do ano que corresponde ao ano das bruxas com os seus oito Sabás e os treze Esbás de luas cheias todos celebrados pela Tradição, é nesse período de tempo também que o membro exerce seu treinamento passando pelos graus de neófito, dedicante até ser iniciado tornando-se um sacerdote.

Nos rituais da Tradição Farreliana em certa medida experimenta-se um estado de fluidez que é adquirido através do contato com os deuses no momento cerimonial do ritual. Esse estado produz uma certa “corporalidade” com a qual buscamos investigar Por meio dessa pesquisa buscamos constatar e relacionar a prática sacerdotal, que consiste em um intenso trabalho sobre si mesmo, com o treinamento de ator, pois dessa forma estaremos mantendo uma relação com a prática sacerdotal e também teatral.

Através de estudos e práticas artísticas acerca da performance, linguagem essa que experimento e exerço como artista, é possível co-relacionar essa linguagem com o ritual a partir de pensamentos defendidos por autores como Richard Schechner e Victor Turner. Lembrando também do treinamento que um performer exerce para realizar, expor ou compor a sua performance. Pensando nesse sentido trago para reflexão um paradigma bastante influente e emergente para a contribuição dessa pesquisa que é a discussão acerca do Ritual e Performance.

Para o antropólogo Jhon Dawsey (2013, p. 22), Rituais se produzem como eventos teatrais, e teatros podem suscitar experiências rituais. Performances podem ser vistas como uma “trança” (brad) de elementos de ritual e teatro. Quanto mais trançadas forem as performances, mais eletrizantes tendem a ser.  Nota-se que tanto o ritual quanto o teatro estão relacionados e interligados como fios de uma trança, em que ambos elementos convergem entre si caracterizando e influenciando a própria performance.

O autor Jhon Dawsey (2013) destaca que a partir de três premissas: Drama, estética e ritual. É possível discutir sobre diferentes gêneros de performance consistindo em dramas rituais, dramas estéticos e dramas sociais. “Dramas estéticos e rituais espelham a vida social. A recíproca, porém, também é verdadeira: dramas sociais espelham formas estéticas”

Nesse sentido é possível relacionar então esse pensamento com os rituais e o treinamento da Tradição Farreliana, pois o ritual de Sabá e Esbá visto desse ponto de vista pode ser entendido e estudo como performance, levando em consideração também os elementos e estruturas que o compõem. No que cerne ao treinamento exercido pelo membro, pode ser levantado questões sobre o “drama social’’ que o dedicante vivência durante o chamado período das sombras.

Schechner (2013, p. 39), fala sobre a noção de “encorporacão” que consiste em “encorporar” experiências e conhecimentos genuínos em performances. Conhecimentos esses que são pertinentes ao próprio “nativo’’ que aqui pode ser o bruxo sacerdote da Tradição Farreliana. “Epistemologias e práticas nativas que realizam a unidade do sentir, pensar e fazer,  

Por esse motivo o conhecimento genuíno do bruxo sacerdote se torna de grande valia para o estudo aqui em questão, nos faz refletir sobre a corporalidade do mesmo que é influenciada pelo ritual de Sabá e Esbá ou até mesmo pelo rito de passagem. Para Grotowski (2015, p. 4) “Um dos aspectos à via criativa consiste em descobrir em si mesmo uma antiga corporalidade à qual se está ligado por uma forte relação ancestral”. Portanto, o corpo nos pede um olhar mais atento nesse sentido. Pois através do treinamento exercido pelo membro da Tradição, podemos pensar a prática sacerdotal em contrapartida com o treinamento do performer em que ambos em certa medida buscam treinar, o “cérebro-corpo’’.

 

Os rituais Sabás e Esbás da Tradição Farreliana

 

A Tradição Farreliana é uma tradição de bruxaria eclética “Écletica são grupos de pessoas que não seguem nenhuma tradição especifica, mas senten-se livres para tomar emprestados aspectos de muitas tradições e culturas (Gori 2012, p. 23)”.

Por esse motivo na Tradição Farreliana são celebrados os (oito) sabás e as (treze) luas cheias do ano e também a lua negra, noite em que não à lua no céu, sempre relacionado a uma Deusa em especifico que será cultuada na noite do ritual seja ele um ritual de Esbá de lua cheia, um ritual de lua negra ou um ritual de Sabá.

O sentido de fé e crença na Tradicão Fareliana está relacionado principalmente a Deusa que é cultuada nos rituais com orações, oferendas e agradecimentos dedicadas a ela e os próprios rituais são uma maneira de prestar homenagem a ela (a Deusa).  Em aradia o evangelho das bruxas, Leland (2002) descreve um mito bastante conhecido na comunidade bruxesca relatando sobre a vinda de Aradia para a terra, descrevendo a seguinte passagem:

 

Um dos mitos preferidos relacionados a origem da arte é a história de Aradia, filha de Diana, filha da Deusa com seu irmão lúcifer. Diana, vendo o sofrimento dos pobres e dos fracos, instruiu Aradia na Arte e a enviou a terra para formar e ensinar nas reuniões secretas das feiticeiras. Assim fez Aradia, e, entre os segredos que ela passou a seus seguidores, estavam aqueles dos venenos, da formação das tempestades (encargo que se destacaria, mais tarde, nos julgamentos das feiticeiras) e de como amaldiçoar aqueles que se recusavam a ajudar seus companheiros. Quando chegou o momento de Aradia voltar para a sua mãe, uma das instruções que deixou foi que os seguidores da feitiçaria deveriam reunir-se na lua cheia para homenagear Diana com banquete, danças, músicas, saudando-a como a rainha dos céus. Em troca, Diana os instruiria nas desconhecidas artes da magia. (VALIENTE apud LELAND, 1992, p. 55)

 

 

Nesse pequeno mito sobre Aradia, é possível identificar elementos relacionados a crença na Deusa Diana, os ciclos que fazem da natureza como o ciclo lunar e a noção de mito que está tão presente na cultura e vida das bruxas e bruxos da Tradição Farreliana, assim como a crença e o ciclo lunar também. Para Gardner (2003, p. 31), “o mito pode ser uma história que afeta as ações das pessoas.

Seguindo esse pensamento o mito de fato pode afetar as ações das pessoas, principalmente de um grupo de pessoas que vivencia ou de alguma forma se relaciona com tais mitos, pois na Tradição Farreliana os mitos tem um papel fundamental na formação do sujeito bruxo ou bruxa que se deseja ser, pois é através do mito de tal Deusa e de tal Deus que o membro possivelmente terá maior afinidade ou não com tal Deusa e tal Deus.

Existem diversos mitos de diversos Deuses e Deusas disponíveis na cultura pagã e na Tradição Farreliana a cada Sabá e Esbá o mito da Deusa que está sendo cultuada e reverenciada na noite do ritual carrega em si a carga “dramática” necessária para o rito em questão como, por exemplo o mito da Deusa Kali, Yemanja e Tiamate, Deusas essas que foram cultuadas no Esbá de lua cheia e lua negra ao longo dessa pesquisa.

Tão grande é a importância dos mitos para a Tradição Farreliana que a cada Esbá de lua cheia ou de lua negra é comum e obrigatório que o membro estude sobre o mito da Deusa que será cultuada na noite do rito e busque entender e captar a mensagem que o mito carrega.

Outra característica importante é fato de na Tradição Farreliana serem cultuados (dependendo do ritual) duas divindades a Deusa e o Deus para que assim se tenha o devido equilíbrio entre as polaridades dos aspectos feminino e masculino. São essas duas divindades que se encontram presentes no momento do ritual, que estão intrinsecamente relacionados aos ciclos da natureza.

O Deus também é representado nos rituais da Tradição Farreliana pelo Alto Sacerdote do clã é ele que se relaciona com o Deus nos rituais principalmente quando o ritual é dedicado ao Deus como, por exemplo, o Sabá de Lughnasadh dedicado ao Deus Lugh.

            Dito isso, para melhor esclarecer as questões acerca dos rituais faz-se necessário dizer que é através de uma estrutura e protocolo específicos que se seguem os rituais da Tradição. Alguns elementos são de grande importância para a realização de tais rituais como os instrumentos mágicos, os gestos, as invocações, o círculo mágico o altar e dentre outros. O trabalho dos rituais traz uma conscientização do passado e do presente por vários motivos dentre eles é possível destacar o fato de que o culto a Deusa ou ao Deus são cultos muito antigos embora nos tempos atuais esses mesmos cultos sejam realizados a partir dos meios e para os fins do próprio clã “adaptando-os” de acordo com a necessidade e os tempos atuais.

Os instrumentos mágicos tradicionais utilizados em rituais são: A vassoura, o incensário, o caldeirão, o cálice, o pentagrama, o sino, o athame, a espada, o livro das sombras e alguns outros que vária de tradição para tradição.

Tais instrumentos são utilizados para evocar as Deidades afastar a negatividade, direcionar energia por meio do toque e da intenção. “Os instrumentos não possuem poderes outros que não os que nós mesmos lhes conferimos”. (CUNNIHNGAM 2002, p. 46)

Os gestos estão presente em muitos momentos do ritual além de estarem relacionados principalmente ao corpo ou a partes dele como as mãos e dedos, podem ser praticados em junção com as invocações e possíveis danças.

O significado mágico dos gestos é complexo, e origina-se do poder das mãos. A mão pode curar ou matar, acariciar ou apunhalar. É o canal pelo qual as energias são enviadas do corpo ou recebidas de outros. Nossas mãos preparam altares mágicos, apanham bastões e athames e apagam as chamas das velas ao concluirmos ritos mágicos. (CUNNIHNGAM 2002, p. 65)

O círculo mágico é um elemento fundamental nos rituais definindo a área ritual, pois dessa forma é estabelecido uma esfera mágica ou um cone no círculo através da visualização da alta sacerdotisa da Tradição em que tempo e espaço sessão de existir, além de ser o espaço em que são invocadas as Divindades com a qual se comunga e também os guardiões e espíritos dos quatro elementos.

A história do círculo mágico é antiga, muito antiga. Não é somente uma área de trabalho, mas um símbolo da eternidade, como se não tivesse começo e nem fim. Ao traçar o círculo mágico, a área se torna, de fato, solo sagrado, defesa contra as forças hostis e contém a energia que forma o cone de poder. (VALIENTE 1992, p. 155)         

O altar é montado no centro do círculo, de frente para o norte. O norte é a direção do poder. É associado à Terra, e uma vez que esta é a nossa morada podemo-nos sentir mais confortáveis com este alinhamento. [...] O altar é por vezes redondo, para representar a Deusa e a espiritualidade, apesar de também poder ser quadrado, simbolizando os quatro elementos. Pode ser nada mais do que uma área no cão, uma caixa de papelão coberta com um pano, dois blocos com uma tábua sobre eles, uma mesa de café, um velho toco de uma árvore há muito cortada ou uma pedra grande e plana. (CUNNIHNGAM 2002, p. 84)

Seguindo essa estrutura e com os devidos elementos que constituem os aspectos simbólicos e ritualísticos de um ritual é que o clã da Tradição Farreliana se organiza e juntos realizam seus rituais de acordo com os seus fins e a partir dos seus meios. 

Esses rituais não são tentativas de fazer resurgirem as maneiras antigas, mas uma criação baseadas nelas. Os instrumentos e os símbolos pertencem todos à tradição antiga, mas palavras e pensamentos estão adaptados a maneira atual. (VALIENTE 2002, p. 154)

Uma das características principais das crenças em bruxaria, como Evans-Pitchard (1937) demonstrou de forma tão memorável, é que elas são tentativas de explicar o inexplicável e controlar o incontrolável em sociedades que possuem apenas capacidade tecnológica limitada para lidar com um ambiente hostil.

Victor Turner (1974, p. 161), antropólogo e figura representativa quando se fala em pesquisa em ritual através de sua experiência com os Ndembos nos diz nessa passagem o objetivo da pratica de bruxaria que consiste na tentativa de explicar o inexplicável e controlar o incontrolável.

 

A Roda do Ano: O tempo e o treinamento

 

Tradicionalmente um membro para ser iniciado nos mistérios antigos precisa ter passado o tempo de um ano e um dia de treinamento através de estudos, práticas e presenças ininterruptas em todos os rituais celebrados pela Tradição concluindo assim uma roda do ano. A chamada roda do ano consiste em um movimento cíclico no qual as bruxas baseiam-se as suas celebrações e buscam influências para as suas vidas diárias, tendo em vista as mudanças das estações e os pontos marcantes da natureza como os solstícios e os equinócios.

Na Tradição Farreliana celebra-se os oito sabás da roda do ano, sendo que temos os quatro Grandes Sabás maiores e os quatro Sabás menores, os quatro maiores são: Imbolc (2 de fevereiro), Beltane (30 de abril), Lugnasadh (1º de agosto) e Samhain (31 de outubro).

 E os quatro Sabás menores que marcam os dois solstícios, do verão e no meio do inverno, e os dois equinócios na primavera e no outono que são: Ostara (21 de março), Litha (22 de junho), Mabon (21 de setembro) e Yule (22 de dezembro).

 

As bruxas celebravam (e continuam a celebrar) essas antigas ocasiões rituais com danças e com alegria, bebendo à saúde dos Antigos Deuses, e geralmente organizando grandes festas. Em tempos antigos, elas acendiam fogueiras ao ar livre em algum lugar distante, e vários covens reuniam-se na noite do Sabá. (VALIENTE 2009, p. 373)

 

 

Cada Sabá desse tem um significado na vida das bruxas e também um significado para a natureza, pois como salienta Valiente esses sabás eram e ainda são uma forma em que as bruxas buscavam e buscam reunir-se para celebrar uma data que para elas são tão especiais e significativas.

Os quatro grandes sabás estão todos associados a Deusa Mãe e ao Deus Cornudo, o Sabá de Imbolc é dedicado a Deusa Brigit, momento do plantio ritualístico de um grão, em Beltane o festival do fogo e da fertilidade em que a Deusa se uni ao Deus e a semente que foi ritualisticamente plantada começa a brotar, em Lugnasadh o festival da colheita que é dedicado ao Deus Lugh em que a semente está finalmente madura e pronta para a colheita. Em Samhain mais conhecido como Halloween a véspera de todos os santos é a noite em que o véu que separa o mundo dos vivos e o mundo dos mortos está mais tênue facilitando assim o acesso e a comunicação com os espíritos dos mortos.

Esses quatro Grandes Sabás ocorrem a intervalos regulares de mais ou menos três meses. Entre eles temos os sabás menores dos equinócios da primavera e do outono, dos solstícios do verão e do inverno. (VALIENTE 1992 p. 164)

Assim é estabelecido um tempo adequado para o treinamento do membro cujo objetivo é justamente o de conhecer e vivenciar a roda do ano com os seus oito Sabás e treze Esbás. Proporcionando assim a oportunidade do membro dedicante discernir sobre as suas indagações acerca do que está vivenciando e amadurecer de acordo com o tempo de cada Sabá.

O tempo se traça na memória que se enraíza. São rizomas órfãos, pedaços de nós. (MEDEIROS S/ANO p. 5)

Em todos esses oito Sabás o membro é obrigatoriamente ávido a participar, pois estar presente nas celebrações desses rituais também faz parte do treinamento exercido pelo membro iniciante ou como descrito na Tradição Farreliana o dedicante, que não é mais um neófito (novo), pois ele ou ela passou pelo rito de dedicação que é um rito de passagem, e agora no grau de dedicante o membro é impulsionado a se dedicar inteiramente aos estudos de bruxaria proposto pelos antigos além de cumprir uma roda do ano ininterruptas de Sabás e Esbás realizados pela Tradição.

As pessoas comuns iam aos Sabás das bruxas por uma razão natural e compreensível, porque elas viviam bons momentos ali. (GARDNER 2004, p. 121)

Nesse sentido, em meio a esses oito Sabás temos ainda os chamados Esbás de lua cheia que também são rituais celebrados pela Tradição Farreliana de acordo com o calendário lunar, embora nos Esbás em específico os rituais são realizado somente com o clã, diferente do Sabá que pode vir a envolver a participação da comunidade.

E para a realização de cada Esbá também existe um limite de tempo adequado para que o ritual aconteça seja por conta da lua cheia ou por conta da lua negra, que são dois rituais diferentes e com energias diferentes, através desse tempo estabelecido é possível refletir sobre o que está “entre” esse período de tempo, pois assim verifica-se o treinamento que o membro exerce sobre si mesmo, ou o que conhecemos como “autoconhecimento”.

O presente do passado é a memória; o presente do presente é a visão, o presente do futuro é a espera. (MEDEIROS S/ANO p. 7)

No Esbá em específico, á uma forte relação com a lua cheia, pois as bruxas acreditam que a lua cheia é uma noite em que a magia está no ápice do se poder energético e que essa energia influência nas nossas vidas, além do fato de que a lua é o símbolo da Deusa. A lua crescente representa a Deusa em sua face “Donzela”, a lua cheia representa a sua face “Mãe” e a lua minguante representa a sua face “Anciã”.

 

A deusa da Lua era a deusa do amor, e também a senhora do encantamento do mistério, em todas as terras e cidades que floresciam quando o mundo ainda era jovem. Lindas mulheres do Antigo Egito exaltavam-na como a Rainha Ísis, os raios da Lua eram as flechas de Artemis, lançadas pelos emaranhados das árvores murmurantes nas florestas da Grécia. Os festivais selvagens e alegres de Ishtar eram realizados em sua homenagem. Ela era Diana dos bosques de carvalho de Nemi; e Lucius Apuleius em sua visão mágica contemplava seu surgimento a meia-noite no oceano encantado. (VALIENTE 2009, p. 35)

 

Observa-se então que, em muitas culturas antigas a Lua tinha seu papel na crença dos povos antigos, pelo fato de ser considerada feminina, pois ela (a Lua) representava a deusa que esses povos prestavam seus cultos e com o qual mantinham suas relações devocionais, e esse pensamento de alguma forma se perpetuou até os dias de hoje como visto na Tradicão Farreliana.

As treze luas cheias da roda lunar em que acontece os rituais de Esbá da Tradição Farreliana são: lua do milho...

 

O Esbá é uma ocasião menor e menos solene que o Sabá. No Sabá, vários covens podem se reunir, mas o Esbá é um encontro local. Ele pode acontecer para cuidar de um determinado assunto do coven, ou simplesmente para diversão e prazer. A palavra “Esbá” vem da antiga palavra francesa s´esbattre, que significa festejar e divertir-se. (VALIENTE 2009, p. 171)

 

  Nos rituais de Esbá da Tradição Farreliana tradicionalmente é uma noite dedicada a uma Deusa que será cultuada no ritual e que envolve ainda determinados “assuntos” como cita Valiente, no caso da Tradição realiza-se nessa noite de lua cheia um trabalho mágico sendo esse de cura, prosperidade, proteção e etc. Tendo em vista as características da lua cheia em questão.

Portanto, é possível observar então que a cada Sabá e Esbá existe um período de tempo para a realização do respectivo ritual que varia de Sabá para Sabá e de Esbá para Esbá, tempo esse de suma importância para o desenvolvimento e o treinamento do membro, visto que no decorrer desse treinamento existe também o tempo do “sujeito” (membro) que acaba por envolver a sua intersubjetividade enquanto individuo, pois os rituais se diferem ente si, tornando dessa forma cada ritual uma experiência única.

O tempo, como elemento estético, faz definitivamente parte da linguagem artística. (MEDEIROS S/ANO p. 6)

O Sacerdócio: O ator sacerdote e o sacerdote ator

 

Depois de ter passado pelo seu treinamento mágico como dedicante e iniciado o membro então está apto a seguir o caminho do sacerdócio, visto que esse mesmo membro passou pelos ritos de passagem, chamados rito de dedicação e rito de iniciação, tornando dessa forma um iniciado nos mistérios da bruxaria e também um sacerdote dos Deuses.

Um rito de passagem como o rito de dedicação marca um dado momento da vida do membro que passa do gral de neófito para dedicante, tendo em vista todos as interpelações, dúvidas, medos e anseios que aparecem no decorrer de sua caminhada ainda como neófito, momento esse em que o membro ainda é tido como um curioso, novo nos assuntos a respeito da bruxaria.

Quando o neófito finalmente e dificilmente consegue seguir com os seus estudos, a partir de um período de tempo específico é dado a ele ou a ela a oportunidade de ser dedicado com o ritual de dedicação que tradicionalmente acontece em uma noite de lua cheia onde os que já foram dedicados antes também se fazem presentes.

E todos aqueles que conseguiram seguir com os seus estudos serão finalmente apresentados aos espíritos dos quatro quadrantes (Terra, Ar, Fogo e Água) com um outro nome escolhido pelo próprio dedicante pelo qual será reconhecido pelos Deuses e pela comunidade pagã e farão um juramento perante a presença deles os chamados guardiões como bruxos ou bruxas.

O ritual de iniciação também é um marco para a maioria dos membros além de ser o momento muito esperado por todos aqueles que se dedicaram de forma intensa durante um ano e um dia no seu treinamento enquanto dedicante em que finalmente depois do seu ‘’período das sombras’’, período esse que ocorre na fase de dedicante que busca alcançar o gral de iniciado em que os Deuses colocam testes e provas que tornam esse período ainda mais difícil.

No ritual de iniciação o membro iniciante que é o adepto a iniciado é apadrinhado com uma Deusa e um Deus de sua escolha com o qual prestará culto como sacerdote na sua jornada sacerdotal. A iniciação também acontece em uma noite de lua cheia em que os membros antigos que já foram iniciados antes também se fazem presentes nessa noite tão importante para as bruxas, em que o ou a iniciante pode vir a se relembrar de iniciações de vidas passadas. Como salienta Grotowski, (XXX, p. 177) “As memórias são sempre reações físicas. É a nossa pele que não se esqueceu, são os nossos olhos que não se esqueceram. O que ouvimos ainda ressoa dentro de nós

Tanto no ritual de dedicação como no ritual de iniciação à um cerimonialismo por envolver seres não humanos como os espíritos dos quatro quadrantes e os Deuses, fazendo com que os rituais venham a ter uma estrutura pré-estabelecida pelos membros antigos de acordo com a solenidade em vigor. 

Por mais que o membro venha a se iniciar nos outros graus da Tradicão Farreliana, no segundo e terceiro gral em que passa a se tornar um Elder Líder dentro da Tradição, ainda assim a sua jornada sacerdotal segue de acordo com o passar dos dias das noites e dos anos, visto que a prática sacerdotal está elencada justamente em saber exercer o seu sacerdotal no seu dia-a-dia, na sua casa com a sua família, na sua comunidade e principalmente na sua vida, pois entende-se que o membro será para sempre ou até quando ele se propuser um sacerdote dos Deuses antigos.

Diante disso, é possível identificar que um ator a partir de diversas perspectivas também exerce ou tende a exercer uma postura sacerdotal seja no seu processo de criação na sala de ensaio, seja como ator-criador, seja como diretor, pois os atores em sua maioria também são diretores, seja como ator pesquisador ou até mesmo como performer.

Dessa forma o que acaba por emergir nesse contexto é o trabalho do artista sobre si mesmo, tão recorrente nas obras de nomes como Jerzy Grotowski e também Antonin Artoud, nos quais ambos com pontos de vistas diferentes, mas com objetivos semelhantes partindo desse pressuposto, do trabalho do artista sobre si mesmo. Na visão de Artoud (2008, p. 91), os atores devem se parecer como mártires queimados vivos, que continuam nos enviando sinais lá de suas fogueiras.

E essa perspectiva é análoga ao processo sacerdotal que um sacerdote em treinamento é ávido a vivenciar, que consiste em um constate trabalho sobre si mesmo através do autoconhecimento que é ‘’adquirido’’ e praticado constantemente e diariamente, tendo em vista o auxílio que o sacerdote busca estabelecer com as suas divindades e também atitudes relacionais com rituais específicos.

Pensando nesse sentido, é possível identificar também as funções e atitudes exercidas por um sacerdote ou sacerdotisa dentro dos rituais como, por exemplo, a alta sacerdotisa (A Senhora) e o alto sacerdote que ‘’representam’’ a Deusa e o Deus nos rituais, visto que a palavra representar soa bastante familiar quando se fala em teatro, em que se está ligado ao ato de representar um personagem em cena.

Esse pensamento se torna importante também quando se fala em ‘’falas dos personagens’’ que geralmente se relaciona com algum texto, seja ele dramatúrgico ou literal, ou até mesmo um roteiro em que o ator busca criar as ações para determinada fala da personagem.

 

As bruxas acreditam que, ao representar um papel, você realmente assume a natureza da coisa imitada [...] Representando o papel da deusa, a sacerdotisa estaria em comunhão com ela; da mesma maneira o sacerdote, agindo como o deus, tornado-se um com ele em seu aspecto de Morte, o Consolador, o Confortador, portador de uma pós-vida feliz e da regeneração. Um iniciado ao se submeter às experiências dos deuses, vira um bruxo.  (GARDNER 2003, p. 137-138)  

 

Partindo desse pressuposto e tendo em vista a linguagem ao qual está pesquisa está vinculada que é a performance por conta do ritual, constata-se que o bruxo sacerdote da Tradicão Farreliana pode ser definido a partir desse contexto como um performer. Pois seguindo o pensamento de Richard Schecher (2013, p. 60) quando ele afirma que ‘‘os xamãs eram performers’’, o mesmo poderia se aplicar ao bruxo da Tradição em que estes realizam e excuta as suas ações ‘‘mágicas’’.

Diante dessa perspectiva, ressalta-se então uma questão inerente a arte da performance que é o performer para o qual este capítulo buscou na medida do possível ser o foco de análise. ‘‘O Performer, com letra maiúscula, é um homem de ação. Ele não é um homem que faz o papel de outro. É o atuante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos’’ (GROTOWSKI, 2015, p. 1).

 Por outro lado, Grotowski (2015) salienta que o performer assume diversos saberes, estabelece conexões e propõem distinções, ‘‘é o homem da ação’’, pois a ação para este sujeito é motivo norteador dos seus impulsos é aquilo que o traduz. ‘‘Ele só pode entender depois de fazer. Ele faz ou não faz. O conhecimento é uma questão de fazer’’ (2015, p. 2).

 

[...] O Performer é um estado do ser. O homem de conhecimento, podemos pensá-lo relacionando-o aos romances de Castañeda, se gostarmos do romantismo. Eu prefiro pensar em Pierre de Combas. Ou até nesse Don Juan descrito por Nietzsche: um rebelde diante do qual o conhecimento é tido como um dever; ainda que os outros não o amaldiçoem, ele sente que é diferente, um outsider. (GROTOWSKI, 2015, p. 9)

 

Pensando nesse sentido, é possível relacionar, conectar e identificar os saberes do performer destacado por Grotowski com o conhecimento genuíno do bruxo sacerdote da Tradicão Farreliana tendo em vista as convergências de pensamento que esses sujeitos promovem. Ressaltando que o objetivo aqui não é comparar, mas relacionar, propondo dessa forma vínculos de estudos artísticos para com os estudos holísticos. Esse ‘‘conhecimento genuíno’’ é o conhecimento nativo que os praticantes do candomblé e da capoeira – e os praticantes de centenas de outros tipos de performances - experimentam. 

Dessa maneira Schechner (2013, p. 61), propõe uma profunda reflexão e também uma provocação sobre o que ele chama de ‘‘pesquisa encorporada’’, que consiste justamente na soma e no cruzamento entre saberes performáticos e metodologias nativas. ‘‘A encorporação - no sentido mais amplo – é o ponto subjacente de contato entre o pensamento antropológico e o performativo’’

A partir de pensamentos e estudos dos autores de teatro aqui destacados como Grotowski, á uma certa relação no que tange a prática mística da própria magia para com os seus experimentos laboratoriais. Segundo Schechner (2013, p. 60), a antiquada oposição entre o pensamento e a ação ‘‘racionais’’ e ‘‘instintivos’’ precisa ser descartada em favor de estudos holísticos que tratem mestres da performance não como ‘‘objetos de estudos’’, mas como parceiros de dança.

Portanto, essa perspectiva sacerdotal propõe então provocações para os estudos da performance e para a arte do performer, lançando luz sobre a bruxaria da Tradicão Farreliana, tentando estabelecer uma rede de contato entre universos, não tão distintos assim, pois visto do ponto de vista da magia tanto o performer como o bruxo sacerdote da Tradicão Farreliana são pontifex como destaca Grotowski, são ‘‘fazedores de pontes’’.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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