Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 18 Vol. 2 - 2016 - julho/dezembro



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O IMPEACHMENT COMO RITUAL RELIGIOSO: A ESPERANÇA BRASILEIRA RITUALIZADA

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 Zairo Carlos da Silva Pinheiro

 

É graças a essa dupla natureza que a religião pôde (sic) ser como a matriz em que se elaboraram os principais germes da civilização humana [...] física como moral, as forças que movem o corpo e as que conduzem os espíritos foram concebidas sob forma religiosa. (Durkheim, 2000: 393).

 

 

Resumo: O interesse basilar deste ensaio teve como questão a preocupação que está na mídia e nas ruas: o impeachment. O processo, marcado por reviravoltas, demonstra que deve existir uma forte dose de base “religiosa” (sentido de “êxtase” social) em torno dele, pois sem o qual, não se manteriam em pé as velhas figuras (os políticos) e os antigos embaraços (peripécias da corrupção). Para compreender esse fenômeno complexo, foi que propomos compreendê-lo a partir da análise sociológica de base durkheimiana. O eixo de compreensão parte do princípio de que, ressalvando as particularidades espaço-temporal, todas as formas que compõem a própria religião institucionalizada – indo até as ciências secularizadas, como a economia, o direito, entre outros – só ganham apoio social porque são frutos de um frenesi coletivo.

 

Palavras–chave: impeachment; esperança; ritual religioso; corrupção; Brasil.

 

Abstract: My basic interest in this text is to question the media main concern visible on the streets: the impeachment. The process, marked by several twists, shows that there must be a strong "religious" ground (social "ecstasy") around the process. Without which, there would not possible for the old politicians and ancient embarrassments (such as corruption) to keep in power. To understand this complex phenomenon we believe we need to start from a sociological analysis based on Durkheim's ideas. The axis for the understanding starts from the principle that, excepting the spatial-temporal characteristics, all forms that make up the very institutionalized religion - including secular sciences, such as economics, law, among others - only gain social support because they are fruit a collective frenzy.

 

Keywords: impeachment; hope; religious ritual; corruption; Brazil.

 

 

É sabido que um “culto” não torna uma fé somente renovada, mas a torna “fé” para o homem que crer. Daí a repetição do ritual religioso ser o que alimenta o homem que verdadeiramente tem fé. Nem mesmo o ateu convicto está isento da “fé” que lhe é intrínseca. Logo, supõe falsamente todo aquele que, veja na “fé” somente coisa de pessoa patola, e não de culta. Enfim, até mesmo o homem mais materialista não é isento de “fé”.

Então, as bases pela qual a religião atua de nada têm a ver com algo estranho ao que se entende por “civilizado” ou “incivilizado”. Nesse sentido, entender a sociedade, em certos momentos específicos, como uma reunião de fiéis é sugestivo. Parafraseando Efésios (1: 22-23) não existe igreja de um homem só. Toda Igreja já é em si algo de “aglomerações”. Um fiel sozinho em orações no templo só é possível porque se sabe que logo a igreja ficará cheia. A esperança, prenha de religiosidade, acontece quando todos os fiéis se reúnem no dia da celebração, levando para suas casas a realidade sentida na reunião, antes realizada, mas esquecida.

Porém, os dias sem celebrações, devem ser alimentados de alguma forma, senão igreja alguma se manteria por muito tempo. Todo homem “sério em fé” renova sua crença diariamente, sem notar, mas somente a duras penas e com dificuldade. A fé se “naturaliza”, isto é, torna corriqueira sem aperreios, quando todos se reúnem para celebrar em comunhão. Nessa reunião semanal, no caso de uma cidade, ou numa reunião de décadas, no caso de um país, há sempre a mesma força pela renovação.

Feito essas considerações sobre a fé e sua rotina, tomemos as relações políticas do Brasil, cercado de rituais e celebrações. Ao que tudo indica, a cada mais ou menos 30 anos de maneira cíclica, ocorrem turbulências na esfera do executivo e logo com sua “solução”: o ato ritualístico.

Partimos da tese de que, o impeachment cumpre um papel de promessa da renovação da esperança, pautamos em um pensamento muito antigo e hoje já bastante negligenciado de que, as diversas instituições sociais e incluindo o Estado até a ciência econômica, têm por base o “sentimento” (ou princípio) religioso (Durkheim, 2000).

Desta feita, afirmarmos que o impeachment é um “ato religioso”, mas que, nada tem de metafísico, como veremos.

            Ao resenharmos a “bagunça explícita” da política brasileira, a partir da mídia, nota-se uma “comoção” (êxtase) social a partir das manifestações populares (sentido lato) em prol de uma caça à corrupção (“caça às bruxas”). Alguém já se deve ter feito as seguintes indagações: por que a sociedade brasileira não entra em “guerra civil” diante de tanta corrupção estampadas nos jornais atualmente? Ou, por que o povo brasileiro é tido como aquele que sempre dá um “jeitinho” das coisas continuarem como sempre foram? As respostas são das mais variadas possíveis.

O Economista diria que é por falta de um “sólido programa” de reformas econômicas. O “homem de partido” (ou “político profissional”) diria que se houvesse um “maior interesse pelo povo” a situação não estaria como esta. E por fim, o Jurista diria que a situação chegou a esse ponto devido que as leis deveriam ser mais rígidas e cumpridas.

            A nosso ver, talvez o Brasil seja um dos países que mais tiveram pacotes econômicos, políticos e de leis! Será realmente por faltam dessas diretrizes que o Brasil entrou em “crise” (sentido amplo) por sucessivas vezes? É fato que não devemos negar as diretrizes econômicas, políticas e legais. Todavia enfatizamos as perguntas abstratas acima sob caráter negativo, e por isso, não poderiam ver que o Brasil sempre encontrou respostas para seus dilemas de um modo peculiar. Enfim, a resposta dos brasileiros sempre esteve estampa para todos enxergarem, ou seja, a solução à brasileira sempre foi: o ritual da esperança; seja lá sob qual face: “golpe”, “revolta”[1] ou “revolução”.

Porém, dizer isso não é cair num idealismo puro, mas é de certa forma seguir o idealismo sociológico durkheimiano[2], porém, sem puxar nada das estrelas, mas da própria sociedade em questão. A esperança brasileira é “ideal”, mas isso é intramundano (Habermas, 2000; Bloch, 2005).

Para compreendermos a sacralização dessa esperança, desenvolveremos a análise do ritual esperançoso, dividindo em quatro atos (rituais da atualização-renovação). O primeiro grande ritual deu-se com a Proclamação da República (1989).[3] O segundo, com a tomada do poder por Getúlio Vargas (1930). O terceiro com o “golpe-revolução?” em 1964. O ritual de 1937 (“Estado Novo”) pode ser visto como corolário do ato de 1930. O penúltimo ato (missa ou culto),[4] deu-se em 1992, com o impeachment do presidente Fernando Collor. E o último ritual exorcista se deu com o impedimento da presidente Dilma Rousseff (2016).[5] Passemos a analisar de como cada acontecimento (que muda os atores no Governo) são, na verdade, rituais que renovam (intramundanamente) os grupos, indivíduos e os tornam possível enquanto “grande acordo” (Habermas, 2000) para que a vida social brasileira não entre num caos.

Imaginemos todo o cenário de exorcismo da Proclamação da República (1898), amplamente descrito pela vasta historiografia: as disputas entre partidos políticos (republicanos vs. conservadores); os desgastes direto ou indiretamente causados pelo contraditório movimento abolicionista, entre outros. Além, é claro, do palco mundial que impulsionado pela Inglaterra há décadas exigia um amplo domínio, em nome do progresso, para as expansões das vendas de mercadorias que com modelos pautados na escravização não tinham como se ampliar. Ora, sem se dá conta o movimento abolicionista tinha uma face de Janus: tinha o caráter de “emancipação humana” e por outro o caráter que “servia” ao desejo de desenvolvimento econômico capitalista, mas que contraditoriamente era o defensor desse mesmo “amor aos negros escravos”.

Este teatro complexo de combatentes endógenos-exógenos in toto refletia no país um ambiente de paradoxais linhas a seguir. Para aquele momento, qual caminho a seguir? Nós agora o sabemos: o regime republicano de base militar. Era tão contraditório todo o processo que o personagem da proclamação (Teodoro) era amigo do que seria destituído (D. Pedro II). Para nós, as contradições tinham o álibi ideal que serviria para todos os outros momentos subsequentes para resolver o possível caos social: a Proclamação. Este ritual mesmo não “agradando” nem aos gregos (instituintes) nem troianos (os destituídos), os unia, naquele momento, e os uniriam até o presente momento, com o exorcismo do impeachment da Rousseff.

Para não sermos mal compreendidos, não podemos negar que a elite do período da Proclamação tinha por prática aquilo que alguns entendem hoje por “golpe”. A primeira manifestação, nesse sentido, deu-se na independência (1822), conforme acredita Emília Viotti da Costa (2007: 11). Mas, ao conteúdo de “golpe” dado pela historiografia não nega a nossa tese de cunho exorcista, pelo contrário a embasa. Ora, a elite de fazendeiros e comerciantes, no sentido dado por Viotti, ia é na “contramão” dos interesses ingleses! Portanto, nesse ponto, a elite pode ser vista como “defensora” do Brasil, e não contra, mesmo tendo em vista apenas seu interesse de “elite”. Devido a esse caráter contraditório, dado pela historiografia, é que nos voltamos apenas para o caráter de ritual do ato em si do exorcismo o qual trata este ensaio.

Em termos laicos (sob tom religioso) o em 15 de novembro de 1898 significou justamente a primeira “grande esperança” brasileira (ou a primeira comunhão) mesmo tendo caráter “elitista”. Todas aquelas contradições sumariamente apontadas anteriormente, de certa forma, se acoplaram para um caminhar sob a velha base mitológica do “futuro melhor”. E que não se veja nesse sentimento nacional algo de “ilusão” ou de “má fé” de uma elite que só quer dar o “golpe”. Pelo contrário, aquilo que se chama de “elite” também é envolvida no processo de ritual (purificador) sem o qual ela mesma correria o risco de se embananar com o caos daquilo que se entende como “povo”.

Um suspiro tão atualizado hoje (de êxtase), se podia sentir no olhar dos homens daquele tempo: “Ah, enfim veio a Proclamação da República!”. Este fato real deve ter feito suspirar homens letrados e iletrados nos becos das cidades em paroxismos de euforia por “novos tempos”. Depois desses suspiros de alívios, o que veio? O “retorno” (claro que sob novas formas peculiares a cada espaço-tempo) das contradições sociais, e um novo ato ritual, e um novo rito deveria reanimar esses homens em disputas.

Esse novo rito deu-se em 1930, cuja deposição do Presidente eleito Washington Luís, em 24 de outubro de 1930, significava apenas que as “coisas” não iam bem (para qual classe social pouco importa aqui). Para resolver as coisas não faltaram os pacotes ou planos econômicos, acordos politiqueiros, porém, nada resolveu.

Ora, o período de 1930, já não era o “mesmo” do período da Proclamação, mas o que o iria salvá-lo, tinha a mesma base “exorcista” do primeiro. E o homem (“salvador da pátria”, ou o hilário “pai dos pobres”) fora “escolhido” para o novo exorcismo porque preenchia o requisito histórico apropriado: era coronel. Que era ser “coronel” se não um homem “amado” tanto pelos ricos quanto pelos pobres. A “revolução-golpe” fez os homens daquele período suspirarem: “Ah, enfim veio alguém (Vargas) para retirar o atraso de nosso país e colocá-lo nos trilhos do desenvolvimento!”. Devo alertar peremptoriamente que não se pode ver nesse sentimento popular algo de “ilusório” causado por má-fé da elite ou do povo. Não. Pois a classe que se chama de elite era tão confusa quanto às pessoas mais “simples” durante todo o processo. E o sentimento de “desenvolvimento” era sentido de modo bem intencionado não só pelo povo, quanto pelo homem poderoso político-economicamente.

Nesse sentido, Getúlio Vargas,[6] não era só homem da “elite”, ele era ou se tornou, de boa-fé ou má-fé, mesmo sem ter clara consciência disso, no “salvador da pátria” porque preenchia historicamente os sentimentos (reais) dos que se sentiam fora do caminho do “progresso”. Mas como tudo o que é social não depende somente de pacotes econômico-políticos prontos, tinha que chegar a hora de novas contradições produzindo estertor de anseios por novo ritual, sem o qual, tudo travaria e tudo seria um caos.

A terceira celebração exorcista se deu em 1964 (em 31 de março), quando os novos “salvadores da pátria”, agora como Homens de Farda (sob o ML. Castelo Branco), destituíram o então presidente Jânio Quadros (o então “Cordeiro” imolado).[7] O cenário que de maneira contraditória se prefigurava (entre os segmentos e individualidades sociais) iria descambar ou para a luta nas ruas, ou para um caos sem fim das finanças. Ruim para quem? Não se pode saber porque o ritual veio como “válvula de escape”.

O sentido desse ato esperançoso, é o que mais importa para nós, se efetivou e cumpriu sua meta de medium das contradições dos segmentos coletivo-individual mais uma vez. E subsequentemente se observou o clima de “milagre brasileiro” que se seguiu. E a palavra “milagre” (que é real) deve ser levada a sério: sentimento esse que tomou conta, tanto da elite quanto do povo. Note-se que o “milagre” só veio a ser notado após o ato de exorcismo (o 1964). Ora, hoje se sabe que tal “milagre” foi exagerado e durou pouco. Porém, isso não invalida a nossa tese porque ele foi sentido como realidade pelo povo (“ideal” que importa), e de modo abrangente também por economistas de boa-fé. Uma pergunta que não quer calar-se: como lutar ou resistir contra esse clima de “euforia religiosa” que deu base, além das armas, para os militares no poder? Porém, novamente as contradições se acirraram, pois, são inerentes à vida em sociedade, e não porque há uma “conspiração” da “elite” contra o povo, ou vice-versa. Daí, passado as décadas, novamente a sociedade angustia o “exorcismo”.[8]

O quarto ritual se deu em 1992 com o impeachment do “menino prodígio” Collor de Mello (atualmente senador! E caçado ferozmente também pela “esquerda” em 1992). Naquele ato, também como os anteriores serviria para “aliviar” os anseios do “povo” (sob a sigla PT) ou da elite (sob a sigla PMDB)? Deixamos o leitor livre para responder. A nosso ver, o que importa é: o caráter “exorcista” do ato. Como é sabido, o clima que levou Collor ao poder era o velho mito “caça aos corruptos”, pois as mazelas (cf. nota 9) da economia pelo PMDB eram coisa “insuportável”. Ora, que é uma caça se não um ato de “matar”. Matar quem? Os corruptos. Porém, quem eram os corruptos? Uma pergunta que ninguém saberia dizer a não ser com um “os políticos”. Mas, como Collor era “político”, nada mais justo que caçá-lo para dar a “esperança pretendida”. Novamente o ritual “salva” o clima de caos que estava se instalando de uma forma ou de outra.

Na verdade, Collor (1992) qual o rei Luís XVI (guilhotinado em 1793), imaginava que estava sendo “injustiçado” (que é real, pois não fora condenado), mas sem se dar conta, como também aquele rei de que, estava era a serviço de “algo” (sentido social e não metafísico termo) maior, sob o qual o grito “Viva o fim da corrupção” (que é imaginária) era justificado. Não esquecendo de ressaltar, sem esquecer a diferença de contexto espaço-temporal do ato, o mesmo sentido de exorcismo observa-se para o rei, quando este não pode mais ouvir o “povo” francês após sua cabeça rolar para o balde, berrar: “Viva a Nação! Viva a República”.

As contradições, como espectro, sempre retornam para “acoplar” o cenário de caos. E elas voltaram incorporadas no que até então, se fazia sentido chamar de “esquerda”, na figura do ex-sindicalista Lula da Silva. O lulismo que se seguiu (pós 1992), na verdade, “salva” da bancarrota tanto a “elite” político-partidária tradicional (os fósseis-vivos atuais como os Sarney/Neves, entre outros – e não por acaso o PMDB foi o principal aliado do PT, símbolo da “esquerda”) quando, e principalmente, salva o “ânimo” (que e real) do povo pobre (sem esquecer grande parcela da “elite”) para as “conquistas” do desenvolvimento material sólido (que era imaginária) com uma força religiosa (beirando o êxtase xamânico) que o país novamente “renovava”. Enfim, a esperança tornada teukein, “agir-fazer”, no sentido dado por Castoriadis (2000).[9]

Porém, as contradições apontadas como intrínsecas, sejam a nível econômico ou político-partidário, além do micro complexidade social, retornaram com força (em 2016), e agora, com um caráter mais interessante: agora sob novo fator midiático-tecnológico. Mas, mesmo sendo midiático ou de “espetáculo” (Debord, 1997), em nada muda o nosso interesse que vê no antigo medium a velha chave para o exorcismo dos “males brasileiros”. O ritual “purificador” recai agora sob uma mulher (e que nem a força do debate ingênuo de “gênero” suportou, pois, esse debate nunca passou de “pré-texto”), que tanto a sociedade reclamava para uma saída das crises. As palavras de Debord (1997: 13), caso lhe retiremos o sentido “conspiratório” peculiar deste sociólogo, cai bem nesse contexto: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.”

O quinto e último ato exorcista (o medium de nossa tese), enfim, dá-se em 17 de abril de 2016 com o “recente” neologismo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PC do B/PT/PMDB, a “santíssima trindade” do mundo intramundano). Finalmente os deputados federais votam (independentemente das brigas politiqueiras ou dos inumeráveis interesses a tergo) pelo sentimento de “esperança” do povo (“classe média”, entre outras) nas ruas a favor da tão sonhada campanha de “fim da corrupção na política” (o espectral imaginário atuante) na política congressista e afora no país.[10]

Se imaginarmos, por um instante, o cenário dos (pros) e dos (contras) ao impeachment (2016) conseguimos ter uma visão clara do “mesmo” êxtase religioso que acompanham todos os fiéis em uma celebração. A igreja era o país todo. E se não era Jeová o ídolo a ser adorado, era ao menos um sentimento tão importante para o país, a “Nação”! Em casa, podemos supor o povo em euforia por notícias dos que estavam no cenário do teatro, os congressistas (exorcistas).

Nas ruas a euforia era generalizada (fiéis). Em delírios nas ruas e nas casas, dando-se as mãos num uníssono “fora Dilma!” (2016) como atualização do “fora Collor” (1992). Ora, mas de qual Dilma o povo estava a berrar? Será o mesmo berro de “fora Collor” gritado por esquerdista-centro-direitistas daquele ano? Os personagens são diferentes (os referentes), e o espaço-tempo também, mas a mensagem (o “significado”), não seria a “mesma”?

Esse frenesi de “ódio” ao PT (2016) e aos “corruptos” em geral pode ser explicado apenas pela falta de comida em nossas casas? Não sabemos. Porém, devemos levar a sério o papel importante que é o ato-ritual impeachment exerce, pois age no grupo social em êxtase qual o ritual religioso age no fiel que realmente participa do culto em sua igreja nos finais de semana. Ambos os fiéis (da Nação ou de Jeová) saem “aliviados” e “renovados” dessas celebrações, seja nas ruas ou na igreja.

O erro das análises puramente economicistas ou materialistas é ver nesse ato dos fiéis algo de “ilusão” ou de “alienado”. A nosso ver, assim como o crente não mente ao seu sentimento de “alívio”, do mesmo modo o manifestante da rua sente no impeachment uma realização (real) que o torna renovado em sua esperança material (imaginária) à brasileira.

Mas onde quero chegar com tudo isso? Como um ato profano, como impeachment pode ter seu fundamento na Religião? Ora, pode devido a dois fatores intrínsecos ao todo ritual religioso. Primeiro, a periodicidade com que são praticados desde a Proclamação da República até ao impedimento da presidente Dilma. Há uma regularidade quase matemática dessa esperança ritualizada (cf. Tabela). O segundo, o sentimento de renovação-alívio (a expiação), o qual é expresso por esse ritual. Características conjugadas, então, temos algo de princípio religioso.

            Arriscamos sacrilégio ao dizer: seja lá que forma o sagrado venha a se incorporar, numa montanha ou num homem, é sempre necessária uma regularidade que o mantem vivo, e não a coisa em si. Com a deusa “Nação” brasileira não é diferente, e como vimos anteriormente, o ritual do impeachment é a forma que nós brasileiros, conscientes ou não, damos rumo para não se cair num caos generalizado. Dizer isso não é negar as contradições sociais, político ou econômicas, mas pelo contrário, é afirmá-las ou colocá-las nos devidos ou em outros trilhos.

            Como já citamos (cf. nota 11), o sentimento de alívio que sente um manifestante interrogado pelos repórteres de rua, demonstra o caráter ritualístico dos atos discutidos neste ensaio. Isto é, o impeachment é tão importante para o manifestante porque ele participa do ritual, se comove com seus correligionários em ideal. Dito de outro modo, o manifestante participa do culto, e a rua faz o “ar” de igreja. Ele não age assim porque é iletrado ou letrado. Não. Ele age assim porque para ele (assim como para seus companheiros da esperança) o impeachment realiza a esperança nele (nos manifestantes em geral), naquele momento. Essa realização não pode ser compreendida como ilusão. Ela é real.

Do mesmo modo que o ato esperançoso age nos manifestantes, age em Eduardo Cunha (PMDB). Após ele votar “sim”, soltou as palavras renovadas e atualizadas de um típico Pôncio Pilatos: “que Deus tenha misericórdia dessa Nação!”. Claro que Cunha espreitava que, ao decapitar Dilma, podia significar sua futura decapitação. Mas, o problema essencial, e disso não se pode “acusar” Cunha: o ato exorcista foge ao próprio Cunha!

Nesse sentido, o alea jacta est agora sendo ritualizado pela mídia e pelas manifestações, entra num caminho sem volta. Entrementes a Nação enquanto um monstro sem face (mas que compõe todas elas) precisa ser “purificado” da corrupção (possibilidade imaginária). Talvez devido ao caráter midiático, agora “tecnologizado”, todo o esquema (do ato exorcista) possa ser reatualizado de forma mais simbiótica que foi até o momento Collor (1992), e agora Rousseff (2016), intensificado ad infinitum. Devido ao pouco espaço característico de um ensaio, nossa análise fica até este ponto, sem tocar no fato midiático-tecnologizado.[11]

Mas, devemos reconhecer que nossa análise deixa algo em segundo plano e sem qualquer comentário sério sobre ele, e que com isso nossa tese corre o risco de ser taxada de idealismo rasteiro. Referimo-nos ao fator “econômico”. Não cabe a um geógrafo-historiador se meter com gráficos ou análises econômicas. Porém, e não desviando de nosso estilo metodológico, gostaria de citar um discurso de um economista para ilustrar o setor econômico como subordinado ou imiscuído no processo do ritual de base religiosa a qual perseguimos neste texto.

Antes, vale citar a fala de um político-advogado, o próprio presidente interino Michel Temer (PMDB), tornado presidente. Disse ele: “o Brasil precisa de confiança”. Por ironia, seu principal ministro, o da economia, Francisco Meireles, não por acaso desabafou: “a questão do Brasil é de confiança”!

Ora, que tem a ver “confiança” com “esperança”? Tudo. Porém, dizer esperança invés de confiança é arriscado e cheiraria estranho para um parlamento, não para uma igreja. Mas o mais estranho, porém justificado, foi Meireles não ter dito, já que é economista: “o problema do Brasil é ‘econômico’”. Não há problema em reconhecer que a questão econômica é séria e inegável, mas para que ela aumente é necessário investidor, logo, “confiança”, que o anima na sua crença de ganhar mais, na sua esperança de lucro, etc., pois como nem só de pão vive o homem, de pacote-econômico também não! Este é importante, mas sem uma base de “confiança”, isto é, de esperança, não passaria de um pacote vazio.[12]

Porém, quando se trata de uma renovação em nível de país, então, a periodicidade deve ser não mais semanal, mas medido por décadas.

Pensado em dar uma visão geral dessa esperança ritualizada foi que elaboramos a Tabela a seguir. Nela, a “Nação” brasileira, se mostra como seus problemas estruturais, conjunturais foram “amenizados”, por uma periodização regular em cerca de um ciclo de 29,5 anos (cf. nota 12).

A Tabela em questão, portanto, demonstra que, um próximo ato ritualístico de impeachment poderá ocorrer entre 2040 e 2045, caso o fator “mídia” não o modifique.

 

Tabela: periodicidade dos rituais da nação ritualizada

Períodos dos Rituais

As várias faces do ritual

Duração entre Rituais (Culto ou Missa)

1898 – 1930

Da Proclamação a Getúlio Vargas

32 ANOS

1930 – 1964

De Vargas ao Militarismo

34 ANOS

1964 – 1992

Do Militarismo ao Impeachment de Collor

28 ANOS

1992 – 2016

De Collor ao Impeachment de Rousseff

24 ANOS

Média dos intervalos entre Rituais

                     

(29,5 ANOS)

 

Nesse sentido, e procurando seguir o estilo teórico-metodológico empregado neste ensaio, não se justifica mais pensar o Brasil como um país que “tudo pode”, ou “um país que não sabe lidar com suas situações de crises”, como se costuma ouvir tanto por estrangeiros como por brasileiros. Ou que é pior: “o Brasil não consegue desenvolver nunca definitivamente seu caminho e sair desse poço de corrupção porque não é capaz de revolucionar seus métodos, como souberam outros países desenvolvidos”.

A nosso ver, ao contrário, o Brasil tem por base um modo sólido (pode não ser o ideal) como modus operandi que é tão eficiente como qualquer outro método empregado em outros países. Agora, se este método deixa o país sempre expostos aos politiqueiros de toda espécie que transformam as riquezas do país em seu patrimônio pessoal, e “abandonam” a população à própria sorte, é outra história. Porém, esta constatação negativa não muda em nada o sentido importante da esperança brasileira ritualizada que a alimenta e a sustenta.

 

Agradecimentos:

Aos estimados amigos Dr. Carlos Trubiliano e Dr. Miguel Nenevé, ambos professores da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Ao primeiro devo a paciência de revisar criticamente o ensaio apontando sugestões valiosas. Ao segundo a gentileza de traduzir o Resumo para o inglês, dando-lhe sentido “transcriativo” e melhorando o estilo e o entendimento.

 

Referências

 

BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. (V. 1).

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5ª ed., São Paulo: Paz e Terra,2000.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república. 8ª ed. São Paulo: Unesp, 2007.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

EFÉSIOS. Bíblia Online. Disponível em: <Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/ef/1>. Acesso em : 12/06/2016.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martin Fontes, 2000.

PIMENTEL, J. Jr. Impeachment, oposiçao e autoritarismo – o perfil e demanda dos manifestantes em São Paulo. Em Debate. Belo Horizonte, v.7, n.2 p.15-22, abr. 2015. Disponível em: <http://opiniaopublica.ufmg.br/site/files/artigo/4-Dossie-Abril-2014-Jairo-Pimentel1.pdf>. Acesso: 08/06/2016.

 

Recebido: 14/06/16

Aceito: 30/06/16

 

NOTAS

[1] Habermas (2000, p. 360, nota 26) preludia que aja diferença entre “revolta” e “revolução”, mas sem indicar a diferença. Para nós não nos interessa as diferenças dos termos. Porém, se nossa base de exposição parte de Durkheim, isso não se faz cegamente. Cf. a crítica feita por Habermas (2000, p. 464).

[2] Não temos em mente a força “coerciva” imposta, mas feita através dos acordos complexos da sociedade em interação.

[3] O primeiro grande ritual religioso da formatação da sociedade brasileira se deu com a Inconfidência Mineira (1798).

[4] O leitor já deve ter observado que usamos os termos “ritual”, “culto” ou “missa” aleatoriamente, mas o fazemos de propósito, pois é inútil defender um contra o outro.

[5] Esclarecendo que o objetivo aqui não é fazer a descrição história de cada acontecimento histórico, pois isso já foi feita pela ampla historiografia.

[6] Em alguma de suas obras, a qual não me recordo, C. G. Jung expõe a teoria de como os personagem carismático/históricos como Hitler, Mussolini, e para nós, aplicado também a Vargas, Lula, entre outros, como figuras que “incorporariam” os sentimentos mais contraditórios de um povo, provindo-os de força quase mítica. Não é por acaso que a paixão por tais personalidades não diminui (em parte), mesmo quando tais personalidades são acusadas de corrupção ou de crime contra a sociedade.

[7] Aqui não me interessa as influências (econômicas, estratégicas, ou o cenário de guerra-fria), que certamente influenciaram o ato em si do “golpe”. Volto-me para o lado “religioso” para seguir o método de análise com a suposição de que, sem uma base “religiosa” (social), tanto nos (ins)tituintes quanto nos (des)tituídos não seria possível algo ser aceito e durar por muito tempo.

[8] Não tocaremos aqui nas “diretas já” (1985), palco de transição. Acreditamos que esse período Neves-Sarney (os “fósseis-vivos” da política) estava contaminado pelo “militarismo”. Todos sabem da bancarrota econômica que o partido do PMDB (coligado com outros) causou no país durante aquela década. Ora, como explicar, ainda, a força política desse partido que mesmo tendo levado as finanças do país ao caos inflacionário é valorizado tanto pelo povo (simbolizado pelo casamento incestuoso entre PT e PMDB) quanto pela “elite”? Não vemos outra explicação que não seja algo de “esperança religiosa” na base de sustentação desses “fósseis-vivos” que, agora reassumem sucessivamente o poder.

[9] Cf. Castoriadis sobre os o leigein e o teukein (“falar” e “agir”, respectivamente), que também foi criticado por Habermas, mas que utilizamos aqui no sentido de que há uma interação de ambos.

[10] Por falta de espaço neste ensaio, não podemos enriquecer nossa análise com fotos das sessões de votação durante o impeachment. Por sugestão do professor Trubiliano lemos o artigo de Jairo Pimentel Jr. Para este autor, a defesa do impeachment (de Rousseff) é fruto de algo “antipetista”. Porém, paradoxalmente Pimentel tem que dar conta dos 75% de entrevistados que não optam por este ou aquele partido político! Logo, percebe-se que Pimentel “silenciar” sobre esse fato ou fica embaraçado para resolvê-lo. A nosso ver a questão é resolvida se o ato de impeachmnt for entendida como ato de “purificação” para além da velha dicotomia enferrujada da “esquerda” vs. a “direita”.

[11] Devo ao professor Isaac Lucena Amorim, Departamento de Agronomia da Universidade Federal de Rondônia (Unir), o alertar sobre a rígida periodicidade que apresento na Tabela. Segundo ele, de agora em diante (a partir do período Dilma) não deva ter a regularidade que a Tabela mostra devido o “fator mídia” acelerador ou freado da periodicidade.

[12] Sobre a questão de que a própria atividade econômica tem base religiosa, cf. Durkheim (2000, p. 608), em especial a esclarecedora nota 4, da Conclusão de sua obra.