Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 18 Vol. 2 - 2016 - julho/dezembro

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LAGOA E ARPÃO: UMA HISTÓRIA ORAL NA COMUNIDADE SURURU DE CAPOTE – AL (PARTE I)

 Geovanne Otavio Ursulino

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Resumo

A investigação deste projeto de pesquisa teve como finalidade conhecer a dimensão vivencial na comunidade pesqueira Sururu de Capote através de específicos narradores. Tocando, assim, uma poética da existência e da experiência dessa comunidade, visando não a construção de um banco de dados para ser acessado, mas sim uma visão de mundo que possibilite conhecer a criação do presente, do passado e da projeção de um futuro não por meio das naturalizações e universalizações de discursos pretensamente científicos, mas sim por meio do contato direto com aqueles que vivem e fluem criando sua realidade.

Palavras-chave:

História Oral; Vidas Menores; Hermenêutica do Presente.

Abstract The investigation of this research project aimed to meet the experiential dimension in the fishing community of Sururu of Capote through specific storytellers. Touching thus, a poetics of existence and experience of this community, aiming not to build a database to be accessed, but a worldview that allows to know the creation of the present, past and the projection of the future not through naturalization and universalizations of supposedly scientific discourses, but through direct contact with those who live and flow creating their reality.

Keywords:

Oral History; Minor lives; Hermeneutics of the present.


Introdução

            O projeto geral do Centro de Hermenêutica do Presente/UFAL (CenHPre/UFAL), “Narradores do Presente: Devires e Redes das Vidas Menores”, é resultante de treze anos de envolvimento do primeiro Centro de Hermenêutica do Presente na Universidade Federal de Rondônia (1996-2009) com as narrativas dos mais diversos grupos, como os já realizados projetos “Rio Madeira”, “Apenados”, “Vida Partidária”, “Soldados da Borracha”, “Seringueiros”, “As Mulheres no Seringal”, “Hansenianos”, “Sonhos de Mulheres Hansenianas”, “Benzedeiras”, “Nordestinos na Amazônia”, “Espaço e Memória”, tendo todos se transformado em artigos, livros, palestras, projetos do PIBIC, monografias (UNIR), dissertações (UNIR/USP) e teses (USP).

            O projeto “Narradores do Presente: Devires e Redes das Vidas Menores” alcançou, através de uma série de entrevistas com narradores, o exercício duma outra concepção de redes narrativas. Este trabalho foi executado por meio das narrativas constituídas num processo de entrevistas, especificamente com os instrumentos metodológicos da transcriação, cápsula narrativa e hipertexto, instaurando uma dimensão desterritorializada de interpretação. Singularidades em seus devires narrativos vivenciais que são normalmente camufladas por metodologias que privilegiam principalmente os fragmentos de entrevistas para confirmarem seus projetos. E com essas singularidades poder tocar nas linhas de forças das redes de vida nas atividades vitais.

            Exercitou os mecanismos técnico-metodológicos expostos, seus limites e funções, suas possibilidades e articulações com outros conhecimentos. Compreendeu as dimensões da singularidade enquanto redes em hipertextos. Consolidou a leitura e a interpretação específica da Hermenêutica do Presente enquanto hiperleitura. Avaliou a singularidade enquanto texto e contexto, tecido hipertextual imaginário. Testou o sistema da Hermenêutica do Presente como proposta acadêmica visando pesquisas e monografias: 1. descrição geral (notas de campo, metodologia, procedimentos); 2. hipertexto do colaborador (narrativas integrais); 3.hiperleitura (interpretação e leitura do hermeneuta enquanto desterritorialização das narrativas).

            A noção de Cápsula Narrativa (Caldas, 1999, 1999b, 2013) foi fundamental na constituição não mais dum documento, duma entrevista ou dum corpus, mas duma matéria de contato com o imediato do presente, com as formações discursivas, as classes, as singularidades, a ficcionalidade das nossas maneiras de existir. Essa noção, ao mesmo tempo operacional e resultante das nossas perspectivas, mediando vários conceitos ao mesmo tempo, dispõe o outro e os outros enquanto dimensão plena, heterogênea, diferente.

            O pescador David foi a principal voz da Comunidade Sururu de Capote no período de atividades deste projeto de pesquisa. Onde, a partir da narrativa de suas vivências pessoais, com a comunidade e com a prática da pesca, pudemos enxergar redes de atividades que geraram e mantêm aqueles sujeitos em determinadas condições, vidas, experiências. Onde, muitas vezes, apreciam e mantém posições e discursos de conservação da realidade a eles imposta. O que nos levou a questionar até onde, de fato, há a necessidade de que aqueles indivíduos desejem sair, mudar, transformar, ou até revolucionar suas realidades, seus déficits, seus problemas, sua sorte subalterna. Como o próprio David me afirmou com veemência: “Eu me sinto bem! (...) Só que o que prejudica aqui na lagoa é só a poluição. Somente. Só isso”.

            O projeto Lago e Arpão não tem como pretensão escrever uma História da Sururu de Capote, ou uma História dos pescadores na Lagoa Mundaú, nem, muito menos, corroborar com a construção duma História de Alagoas – Lagoa e Arpão, tem como aspiração respeitar a vida e sua narrativa a partir da oralidade de David, nosso narrador, dando-lhe possibilidade de escape e fala para além destas “histórias” anteriormente citadas, assim como qualquer outra; pretensamente o projeto busca libertar a narrativa viva do real de David, inclusive, do olhar científico de seu oralista. Rompendo com o jogo “sujeito x objeto” intrínseco à pesquisa científica.

Aliás, vida é um termo que quer caracterizar e dizer um modo de ser ímpar, único, antes dessa oposição, desse chorismós, do qual a estrutura sujeito x objeto, aqui discutida, é contestada, é uma variação. Sujeito e objeto, subjetivo e objetivo, matéria e espiritual, interior e exterior, etc., etc., não são medidas, não são critérios para dar conta do fenômeno aqui denominado vida (existência)... (Fogel, 2005: 44)

            Lagoa e Arpão, esta monografia, é dividida em cinco capítulo: 1. Metodologia – neste é feito uma breve genealogia da História. É discuto, também de forma breve, a formação dum campo disciplinar para, só então, chegar à História Oral. Este percurso tem como objetivo posicionar a História Oral diante da disciplina História; 2. Cápsula Narrativa – no capítulo dois está a discussão sobre a Cápsula Narrativa em História Oral. É apresentada cada etapa, antes e depois da entrevista, para a produção dum trabalho de Cápsula Narrativa; 3. História do Projeto – iniciando de como o projeto foi idealizado e se desenvolvendo com breves relatos da experiência de campo. É uma leitura do diário de campo: sistematizada e organizada para pontuar os momentos cruciais da atividade de pesquisa: tanto nos instantes de abstração teórica, quanto nos instantes de pesquisa de campo; 4. Texto Base – ou a Cápsula Narrativa, é o quarto capítulo: aqui está a cápsula narrativa gravada com David, já transcrita, pontuada e hipertextualizada. 5. Leitura – o último capítulo desta monografia. É neste onde é executado a atividade de interpretação hipertextual da cápsula narrativa obtida através de entrevistas com David.

Metodologia

História: brevíssima genealogia

            Registrar as façanhas dos gregos e dos bárbaros – originalmente a História tem esta função. Para Heródoto e Tucídides, os pais da historiografia ocidental, acontecimento histórico é aquilo que podemos registrar a partir do que somos testemunhas ou do relato doutros que viram pessoalmente. Remo Bodei, em seu A História tem um sentido? explica:

O vocábulo história (estórias, istorie, da raiz indo-europeia wid-, +weid, “verdade”, “ver”) designa uma “indagação”, em forma de narração, sob fatos que se presumem ocorridos e que vêm confiados à memória ou a documentos. Diversamente do que se poderia acreditar, estes acontecimentos não pertencem necessariamente ao passado remoto. (...) No momento em que Tucídides se refere a fatos distantes no tempo, trata-os no âmbito da “arqueologia”. Logo, a história se preocupa originalmente em registrar os fatos para que a sua lembrança não se suprima e não sejam esquecidas. (Bodei, 2001: 15-16)

            Portanto, a História estaria diretamente ligada ao “ver”, ao testemunho. História sendo “histórias”, relatos de sequências de acontecimentos: por ora épico-religioso (Heródoto), por ora político-militar (Tucídides).

            A concepção cristã de história é definida entre 412 e 426 d.C., período que santo Agostinho levou para escrever A Cidade de Deus. A obra é produto da invasão de Roma por Alarico em 410. Com Roma saqueada e seus cidadãos e suas instituições humilhadas: os romanos atribuem este estado à ira dos deuses antigos, cujos cultos foram combatidos e varridos de Roma pelos cristãos. Uma afronta à qual Agostinho responde em A Cidade de Deus “com tons ora irônicos, ora críticos e apologéticos, reduz fortemente o papel, a função e a importância de Roma na história”. Desta forma, Agostinho rejeita “toda escatologia de cunho político baseada na centralidade atribuída à ascensão, à sobrevivência e à queda de impérios e estados” (Pecoraro, 2009: 12). Para este pai da Igreja, a rede sucessiva de fatos seculares, mundanos, pagãos não é fundamental ou indispensável à ordem das coisas últimas. É desta maneira que Agostinho estabelece o modelo e o esquema de toda concepção cristã da história. Inaugurando, à história, a ideia de totalidade, universalidade, indivisibilidade, a “humanidade” inteira, o totum genus humanum.

A história tem um começo e um fim, nasce no pecado e na culpa, consuma-se na salvação e é universal porque é unida, controlada e ordenada por um único Deus para uma única finalidade. Ela adquire o seu sentido em virtude do plano providencial que leva ao Juízo Final, à ressurreição e ao advento do reino de Deus. Três são os pontos que devem ser destacados neste progresso rumo à verdade instituída: o conflito entre a cidade celeste e a cidade terrena, o “conceito” de peregrinatio (peregrinação), a divisão da história em seis épocas e a essencialidade da volta de Jesus Cristo à terra. (Pecoraro, 2009: 12-13)

            Mais adiante, a História toma a insígnia do “estudo do passado” (que é uma concepção amplamente aceita no imaginário do senso comum até os nossos dias). Onde este estudo serviria para a construção dum seleto banco de dados. Como podemos ver claramente na famosa metáfora do presidente dos Estados Unidos da América (e também historiador) Theodore Roosevelt em que os “fatos” históricos são comparados a tijolos e pedras, o historiador a um “grande mestre construtor” e a História a um edifício. É a História vista através do prisma do romantismo, que pretendia recriar pedagogicamente o “passado” com o intuito de trazer lições de moral ao “presente”. Já na segunda metade do Século XIX, em oposição ao paradigma romântico, há o advento da “História científica”.

 

Foi por oposição ao paradigma romântico que se desenvolveu nas últimas décadas do século XIX o que veio a se conhecer como “história científica”: objetiva e impessoal, desprendida de valores e apegada aos fatos e às relações externas às coisas. Fortemente influenciados pelo evolucionismo, os historiadores “científicos” entendiam a história como uma corrente de causas e efeitos tangíveis (...) ela se compunha de sequências explicáveis, cada qual ligada geneticamente à sua antecessora e sucessora que extrai seu sentido do seu conjunto e não de um elo (evento) singular. (Moura, 1995: 16)

            Somente no século XX, com os Anales, a História assume a “singularidade” do estudo do homem e sua relação com sua temporalidade.

O objeto da história é por natureza o homem. Melhor: os homens. Mais do que o singular, favorável à abstração, convém a uma ciência da diversidade o plural, que é o modo gramatical da relatividade (...) São exatamente os homens que a história pretende apreender. Quem não o conseguir será, quando muito e na melhor das hipóteses, um servente da erudição. O bom historiador, esse, assemelha-se ao monstro da lenda. Onde farejar carne humana é que está a sua caça. (Bloch, 1996: 28)

            Como bem afirma Marc Bloch, apesar de manter seu nome dos tempos helenísticos, a História chega aos nossos dias com outros propósitos, com outras ferramentas: com perspectiva, com teoria, com metodologia, com aspirações científicas, com “forma jurídica e policial de fazer pesquisa” (Caldas, 2013: 27).

Decerto a palavra, desde que apareceu, há já mais de dois mil anos, na boca dos homens, mudou muito de conteúdo. Tal é a sorte, na linguagem, de todos os termos realmente vivos. (...) Mas o fato de permanecer tranquilamente fiel ao seu glorioso nome helénico não significa que a nossa história seja igualzinha à que escrevia Hecateu de Mileto; tal como a física de Lorde Kelvin ou de Langevin não é a de Aristóteles. (Bloch, 1976: 24-25)


Campo disciplinar

            Uma disciplina tem por princípio o estabelecimento de regras, formas, fórmulas, linguagens que delimitem, enquadrem, sistematizem, ordenem, organizem. Fala-se em “disciplina moral”, “disciplina religiosa”, “disciplina militar”, “disciplina partidária”, “disciplina científica”. Neste usaremos o último sentido de disciplina enumerado.

Inicialmente, a palavra disciplina evoca ordem – um ordenamento ou uma ordenação que pode ser imposta ou que “livremente”, pode ser admitida, consentida, cumprida e seguida à risca para colocar em funcionamento algum procedimento, alguma organização (...) Deve ser neste contexto que surge “disciplina” no sentido de “matéria de ensino”, de “conteúdo de estudo”, ou seja, no sentido do estabelecimento de um corte ou de uma delimitação, de modo a demarcar um “ramo” do saber, a definir um domínio do conhecimento ou uma “cadeira” (“cátedra”) de um estabelecimento de ensino, de um certo curso (...) Definir tal ramo, tal âmbito ou tal domínio do saber supõe uma divisão, uma classificação respectivamente uma compreensão e interpretação e, daí, uma hierarquização do saber. (Fogel, 2005: 11)

            Dito isto, cabe-nos afirmar que uma disciplina, o que chamarei de “campo disciplinar” (Barros, 2011a), cria um jogo de regras estabelecendo para/através de si um/o mundo, um/o real. Uma vez estabelecido o jogo, dá-se movimento à máquina criada para produzir conhecimento sobre aquele real. Ou seja: o campo disciplinar cria, ao surgir, seu próprio “objeto” de análise. Ou, nas palavras de Hilton Japiassu: “Toda ciência se dá mais ou menos o seu objeto: é a ciência que constitui e constrói seu objeto pela investigação de um método” (1979: 38). A História, o campo disciplinar em questão, não está imune a esta afirmativa: ela cria um/seu jogo de regras, cria uma/sua realidade e, a partir de teorias e métodos, produz seu conhecimento[1].

            O que nos leva à questão: qual o objeto (o que chamarei, por ora, de “campo de interesses”, a partir de José D’Assunção Barros) da História? Um campo disciplinar, em primeiro lugar, necessita delimitar qual seu campo de interesses (Barros, 2011a: 19). O das “ciências humanas”, como já é sugerido pelo próprio termo, é o “humano”. Mas, em certo nível de profundidade há algo que dá àquele determinado campo uma identidade própria, que é o segundo momento da constituição dum campo disciplinar: suas singularidades. A História tem em comum com, por exemplo, a Antropologia, a Economia, a Pedagogia, o estudo do homem. Porém, no centro de seu campo de interesses se diferencia por colocar, como nos aponta Marc Bloch (1976: 29), “o estudo dos homens no tempo”. Mais precisamente: a História cria o “homem” e o “tempo”: e, desta forma, cria a si mesma.

“Ciência dos homens”, dissemos nós. É ainda muito vago. Temos de acrescentar: “dos homens no tempo”. O historiador não pensa apenas o humano. A atmosfera em que o seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração. É certo ser difícil imaginar uma ciência, seja ela qual for, que possa abstrair do tempo. Contudo, para muitas delas que, por convenção, o fragmentam em partes artificialmente homogêneas, o tempo não é mais do que uma medida. Realidade concreta e viva volvida à irreversibilidade do seu impulso, o tempo da história é, pelo contrário, o próprio plasma em que banham os fenômenos e como que o lugar da sua inteligibilidade.

            Baseado nas definições de constituição dum campo disciplinar de acordo com José D’Assunção Barros (2011a), não há nenhuma disciplina que, duma ou doutra forma, não combine Teoria, Método e Discurso. Este dado campo disciplinar se estende na direção de construir várias orientações teóricas e metodológicas, as quais são conhecidas, estudadas, defendidas e/ou refutadas por seus participantes. Gerando adesões e repulsas. Neste mesmo sentido, o desenvolvimento dum campo disciplinar gera, em sua dinâmica, uma linguagem própria, uma linguagem comum pela qual seus membros se comunicarão.

Teoria

            Etimologicamente, a palavra teoria relaciona-se à “ação de contemplar”, do grego Theorien. Nos indicando, desde o início, que teoria é a atividade de observar, estudar, contemplar a fundo determinado campo de interesses.

Uma teoria é uma visão de mundo. É através de teorias que os cientistas enxergam a realidade ou os seus objetos de estudos, de formas específicas, seja qual for o seu campo de conhecimento ou de atuação. É particularmente interessante constatar que a noção de “teoria” sempre esteve ligada, desde a Antiguidade, à ideia de “ver” – ou de “conhecer” – o que prossegue sendo válido até os dias de hoje. (Barros, 2011a: 41-42)

            Para se afirmar que “uma teoria é uma visão de mundo”, é necessário que a observemos em três níveis de discussão. Primeiramente, a teoria pode ser observada como um “campo de estudos”. É o território no qual habitam as realizações teóricas de determinado campo disciplinar. Num segundo nível de discussão, podemos observar teoria como os diversos modelos ou sistemas explicativos utilizados pelos cientistas para compreender seu campo de interesse específico. Finalmente, num terceiro nível, a teoria pode ser observada como forma específica de apreender a realidade. É importante salientar que teoria não é o mesmo que intuição. Uma teoria necessita está associada a uma maneira processual, por meio da razão discursiva, de contemplar a realidade. Este processo sempre envolvido com várias etapas, procedimentos e mediações. Já a intuição não carece de métodos ou mediação processuais. Uma intuição é instantânea. Ou, como define Barros (2011a: 47), “a Teoria é filha da Razão e irmã da Metodologia Científica”.

            Há um “novo mundo” criado a cada surgimento duma nova teoria. Uma teoria define, nomeia, delimita, dar cor, dar cheiro, dar forma, uma teoria estabelece uma nova realidade.

A “teoria” é precisamente uma maneira de ver as coisas, e que, quando se estabelece um novo horizonte teórico, é possível literalmente enxergar o mundo de outra maneira. Com uma nova “teoria”, pode-se dizer, passa-se mesmo a “viver em um novo mundo”. (Barros, 2011a: 25)

            A Teoria da História abarca em si as diversas e, muitas vezes, opostas teorias da história. Como já apontado, uma Teoria representa uma visão de mundo; uma Teoria da História corresponde, portanto, a uma dada visão historiográfica do mundo, também como uma certa visão sobre a própria História. Toda Teoria da História elabora concepções próprias de como se deve ser, fazer, pensar a História e a historiografia. As Teorias da História estão todas alicerçadas numa base metodológica e documental. Base esta que já se apresenta desde as fundações do historiador profissional.

Qualquer Teoria da História pressupõe, simultaneamente, uma determinada concepção sobre o que é a História e sobre o que deve ser a historiografia (isto é, o campo de estudos que examina a História enquanto campo processual). Isto, é claro, naquele sentido mais abrangente que pode ser atribuído a expressão Teoria da História. (Barros, 2011a: 88)

            A História, enquanto campo disciplinar, tem sua lógica própria. A lógica do campo História, a qual estamos discutindo já desde o início deste primeiro capítulo, passa por metodologia, documentação, teoria, perspectiva: tudo para que seja possível criar, assim, um saber histórico, um conhecimento histórico, uma produção historiográfica. Dentro do campo da História, tudo funciona de acordo com o pensar da História. As sequências históricas são sempre representações de cenas em que os elementos encontram colocações que satisfaçam as necessidades de dados interesses para que sejam alcançados determinados propósitos. Sempre passando pelo grifo da perspectiva de quem produz esta História.

História Oral

            Para as epistemologias genéticas a relação entre o “sujeito” e “objeto” deve ser observada por intermédio duma dinâmica progressiva: uma relação sempre em movimento onde um estabelece novas questão ao outro (Japiassu, 1979: 28). No século XX a disciplina História é confrontada por novas questões nunca antes aparecidas. Principalmente por causa das grandes guerras e regimes de governo variados pelo mundo: surgiu a necessidade de confrontar a “história oficial”: dos documentos, dos discursos oficiais, dos livros didáticos, das campanhas regimentais, da panfletagem, com o “realmente acontecido”. Dizendo mais: no século XX houve uma intensa luta pelo domínio do “passado”, todos os regimes, governos, alianças, reivindicavam o passado para si como uma forma de controle, de legitimação, de poder. Afinal, “o passado legitima” (Hobsbawn, 1998: 17). A História estava sendo contada (como sempre foi, desde que se fez Ciência) a partir dum prisma oficial.

Ora, a história é a matéria prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria prima para o vício da heroína. O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias. Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. De fato, na natureza das coisas não costumam haver nenhum passado completamente satisfatório, porque o fenômeno que essas ideologias pretendem justificar não é antigo mas historicamente novo. (Hobsnawn, 1998: 17)

            Partindo da observação de Adam Schaff no capítulo À maneira de introdução: As causas da Grande Revolução Francesa vista pelos historiadores, no livro História e Verdade, não há “A” Revolução Francesa, não há “Uma” Revolução Francesa: mas um série de análises, trabalhos, discussões, fazeres historiográfico que produzem “várias” Revoluções Francesas. E em todas estas: os historiadores responsáveis por elas estiveram/estão em busca da “verdadeira” Revolução Francesa, daquela Revolução Francesa que “realmente aconteceu”,

O que submetemos ao nosso estudo e à nossa reflexão, é apenas o fato da diversidade, da variabilidade, até mesmo da incompatibilidade dos pontos de vista dos historiadores que, potencialmente, dispõem das mesmas fontes e, subjetivamente, aspiram à verdade, e só à verdade, crendo mesmo tê-la realmente descoberto. (Schaff, 1978: 59)

            Assim como os historiadores da Revolução Francesa, apresentados sob a crítica de Schaff, a História se comporta da mesma maneira: está sempre em busca da “verdade”, do “realmente acontecido”. O que coloca o historiador na condição de juiz: aquele quem julgará os fatos selecionados, colhidos, analisados e dará seu parecer sobre quão potencialmente é verdadeiro esta ou aquela história, nas palavras de Remo Boderi:

Para aceitar a validade de um testemunho é necessário – desde o direito romano – que existam ao menos duas testemunhas aptas a comprovar um mesmo acontecimento, sendo o testemunho de uma única totalmente inaceitável ou irrefutável. A história apresenta-se assim como um tribunal encarregado de julgar, que não se limita a expor os fatos sobre a base de narrativas, porque podem revelar-se fantasias, fabulações ou mentiras bem urdidas (...) A obra do historiador deve pronunciar um “veredicto”. (2001: 68)

            À solução desta busca pela “verdade histórica” no século XX, surgiu a História Oral. Em meados do século, nos Estados Unidos, historiadores começaram a se dedicar a colher entrevistas com enfoques na área de Ciências Políticas. Mas também a colher histórias dos “notáveis”: servindo como uma ferramenta de elaboração de biografias de personagens daquele tempo. Somente no final da década de 1960 que a História Oral passa a ser considerada como uma disciplina histórica, ainda muito atrelada às Ciências Sociais. Com uma massiva produção sobre a “história dos vencidos”, a História Oral toma fôlego como uma produção historiográfica não oficial, uma história dos silenciados, dos não ditos,

Tratava-se duma história alternativa, não apenas no que se refere à história acadêmica, pois foi iniciada por pessoas que se encontravam à margem do mundo universitário, mas também em relação as construções históricas baseadas no escrito. (Abraão, 2002: 23)

            No ensaio História Oral, de Gwyn Prins, contido na obra A Escrita da História, organizada por Peter Burke, fica muito saliente a preocupação que os historiadores que se utilizam do método da História Oral têm em coloca-la no cenário da grande História, onde aquela proporciona elementos que ajudem a corroborar com as preposições desta e vise e versa. Em outras palavras: Gwyn Prins se mostra preocupado em como a História Oral pode contribuir para o estabelecimento da grande História. Ele utiliza, dentre outros, o exemplo de seu próprio trabalho de História Oral com tradições de tribos africanas e como este trabalho serviu/serve para colocar a História da África dentro da “História Humana”, contrariando teóricos que afirmam que não se pode fazer uma História daquele continente. Assim, a História Oral se apresenta como uma ferramenta de sustentação à História, como formadora de bancos de dados que serão acessados sempre que algum historiador carecer de sustentáculos a seus trabalhos, pesquisas, análises. Para Prins, há uma relação de câmbio entre a História documental e a História Oral: na qual uma se utiliza da outra na busca pela “verdade” histórica. Buscando, assim, refutar a ideia de que a História Oral serviria somente quando não se tivesse registros documentais sobre dado período, grupo, lugar, civilização, povo, etnia. Ele faz uso de citação de Jon Vansina para afirmar que

A questão é que o relacionamento entre as fontes escritas e as orais não é “aquele da prima-dona e da sua substituta na ópera: quando a estrela não pode cantar, aparece a substituta: quando a escrita falha, a tradição sobe ao palco. Isso está errado. [As fontes orais] corrigem as outras perspectivas, assim como as outras perspectivas as corrigem.”[2]

            Mas, como conceituar História Oral? Partindo de Jean-Pierre Wallot, História Oral é “um método de pesquisa baseado no registro de depoimentos orais concedidos em entrevistas”[3]. Sendo assim, História Oral seria, ainda seguindo a discussão de Gwyn Prins, uma ferramenta da História que possibilitaria estudos históricos que outros métodos não conseguiriam alcançar. Ferramenta que se sustenta no colhimento de depoimentos orais por meio de gravadores de áudio. Porém, não basta ser um método: o próprio Prins atesta a importância da História Oral por sua força se firmar no fato dela ser “metodologicamente competente” assim como qualquer outra História. Mas ainda é pouco.

    Para José Carlos Sebe Bom Meihy, em seu História Oral, escrito juntamente com Fabíola Holanda, a História Oral “é um conjunto de procedimentos” (2007: 15). Mas não apenas um conjunto aleatório de procedimentos, nem dum ato único de procedimentos, não se trata somente da entrevista ou doutra fonte oral: é “um conjunto de procedimentos” previamente pensado, planejado e articulado em conjunto, partindo da elaboração dum projeto de pesquisa e findando com, se possível, a publicação dos resultados obtidos. Meihy e Holanda enumeram quatro principais conceitos sobre História Oral:

1 – História oral é uma prática de apreensão de narrativas feita através do uso de meios eletrônicos e destinada a: recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato. 2 – A formulação de documentos através de registros eletrônicos é um dos objetivos da história oral. Contudo, esses registros podem também ser analisados a fim de favorecer estudos de identidade e memória coletivas. 3 – História Oral é uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com uso de entrevistas gravadas em aparelhos eletrônicos e transformadas em textos escritos.

            E, finalmente,

4 – História oral é um procedimento sistêmico de uso de entrevistas gravadas, vertidas do oral para o escrito, com o fim de promover o registro e o uso de entrevistas.

            Fica bem explícita a diferença entre as preocupações de Meihy e a de Prins: enquanto este preocupa-se em legitimar a História Oral e incluí-la na grande História por, segundo ele, contribuir para a correção de análises em que a história documental pode, eventualmente, falhar, e vise e versa. Uma preocupação como que para a construção duma “História da Humanidade” (um esforço próprio dos tempos dos enciclopedistas que buscavam por uma “História Universal”). Meihy se preocupa com uma conceituação da História Oral através e a partir de si mesma: a História tem, em Meihy, seus próprios problemas, suas próprias questões, seus próprios enfrentamentos, suas próprias causas, suas próprias finalidades: não estando, necessariamente, interligados às causas da História.

            Como todo método disciplinar, a História Oral tem, dentro de si, normas, conceitos, definições, maneiras de se fazer, de fazer funcionar, de criar, de pensar, de produzir. E tudo isto está em constante movimento, junto com a própria disciplina. Partindo da enumeração dos quatro principais conceitos de História Oral em Meihy e em Holanda, podemos afirmar que a História Oral se preocupa com a elaboração de registros, documentos, arquivamento e estudos que dizem respeito ao “tempo presente”, à “história viva” de determinados indivíduos inseridos em seus grupos sociais e suas experiências com eles e com mundo, com a vida, com o tempo. “História Oral é um recurso moderno”, com o qual se busca respostas práticas a questões de utilidade social, de reflexão, de pensamento, e em tempo imediato, sempre aqui, sempre agora.

Cápsula Narrativa

            A “Cápsula Narrativa” é um conceito criado por Alberto Lins Caldas (1998) no fim da década de 1990 a partir da atividade do uso da História Oral de José Carlos Sebe Bom Meihy. Caldas põe em movimento uma radicalização de conceitos encontrados em Meihy: como, principalmente, o conceito de “pontuação”, que parte do conceito de “textualização”; assim também como o conceito de “narrador pleno”, que desconsidera o “banco de dados” (lista com perguntas que serão feitas ao “entrevistado”) por ser uma violação à narrativa do narrador (a este assunto, em tempo, voltaremos a discutir com a devida atenção).

A noção de Cápsula Narrativa tem se tornado fundamental na constituição não mais dum documento, duma entrevista ou dum corpus, muito menos dum sistema, mas duma matéria de contato com o presente, com imediato do presente, com as formações discursivas, as classes, os grupos, as singularidades, as falas, o discurso, o texto, a ficcionalidade das nossas maneiras de existir. Essa noção, ao mesmo tempo operacional e resultante das nossas perspectivas, mediando vários conceitos ao mesmo tempo, dispõe o outro e os outros enquanto dimensão plena, heterogênea, diferente, transversal, fragmentar, múltipla e ficcional. (Caldas, 2013: 77)

            Dito isto, há uma “anulação” no papel do oralista enquanto “sujeito” da ação. A noção de Cápsula Narrativa em História Oral extrai o “eu” do pesquisador do centro do trabalho e coloca, em seu lugar, a narrativa do narrador. Dando a autonomia necessária para que o trabalho se desenvolva. Eliminando, assim, o uso da estrutura sujeito x objeto, própria da produção do conhecimento (Fogel, 2005).

O sujeito da minha atenção não está em mim; ele, no processo, se opõe a mim em sua existência autônoma, o meu melhor interesse não consiste em apropriá-lo, mas em deixa-lo se afirmar afirmando todas as suas redes vivenciais, todas as suas determinações, caminhos e tecidos particulares, todas as suas diferenças, mentiras, verdades, ilusões, devaneios. (Caldas, 2013: 99)

            Uma vez realizado o contato inicial com nosso interlocutor, no qual é explicado, em linhas gerais, o interesse em sua “experiência de vida”, esclarecendo questões técnicas e “éticas” da nossa entrevista, do nosso interesse pessoal, mas sempre evitando falar no Título do Projeto, em História ou história, História Oral, História de Vida, cronologia, temas e assuntos: colheremos a narrativa em áudio. Durante o desenrolar da atividade de pesquisa e da narrativa, certamente, seremos satisfeitos sem pedir, previamente, o que queremos saber. Depois das primeiras entrevistas podemos esclarecer ao nosso interlocutor sobre tudo aquilo que não elucidamos desde o início para evitar que houvesse um direcionamento em sua construção e em seu fluxo narrativo, “a específica, única e delicada montagem ficcional que é sua vida”.

Dizemos normalmente, e não obrigatoriamente como frase-chave, ao nosso interlocutor aproximadamente como primeira “pergunta”: “Agora que sabe por que estamos aqui, pode começar como quiser e por onde quiser”. O resultado tem sido o de aparecer o eixo narrativo do próprio narrador; sua temporalidade pessoal; sua ordem, seus próprios labirintos, é que dirigirá nosso trabalho de pontuação sem precisarmos mais refazer os eixos temáticos, temporais, espaciais, estilísticos à nossa revelia: princípio, meio e “fim”, agora, pertencem ao narrador respeitado radicalmente enquanto narrador (nem a entrevista dirigida pelo pesquisador nem o texto reescrito pelo oralista): não me cabe reescrever sua narrativa, mas garanti-la em sua significação, sua respiração, seu ritmo e encadeamento de sentidos narrativos: eu, não tenho autonomia epistemológica para “falar em seu lugar” ou completar sua “fala”, muito menos expor uma “bateria de perguntas e respostas” cruas que apenas expõem meus desejos, ânsias, necessidades, obrigações: as garantias epistêmicas se dão e se devem dar e se constituir contra mim, não contra ele, contra minha ganância discursiva, um “método” contra os métodos. (Caldas, 2013: 83)

            Caldas instaura, através desta radicalização, um “nascimento voluntário” para a gênese duma narrativa, sem a interferência do oralista. Iniciando a configuração duma cápsula narrativa onde poderemos, depois, inserir ou não o restante da entrevista (cápsulas temáticas), de possíveis perguntas e respostas, escapando ao início e ao direcionamento no modo de interrogatório, tradicional de toda instrução policial ou jurídica.

Conceitos e Momentos

            Os Narradores Plenos “são hipertextos que exigem estrutura, forma e interpretação próprias que consigam perseguir sua polidimensionalidade” (Caldas, 2013: 93). O narrador pleno é aquele que consegue escapar ao mero contar, ao mero dizer, ao mero falar: mas sim dá à sua vida uma narrativa própria, densa, específica. Este conceito se baseia na “existência” de indivíduos singulares os quais possam se perceber enquanto tal num mundo ditado pelas mídias, pelas modas, pelo consumo, pela imagem.

            A Entrevista, na aplicação da Cápsula Narrativa em História Oral, é concebida como práxis, “no melhor e mais íntimo sentido do termo (pura poiesis)” (Caldas, 2013: 98). Superando a fórmula sujeito x objeto, sendo realizada como narrativa, dando ao narrador a liberdade de dizer a si e ao seu mundo, sua vida, sua realidade, suas crenças, conceitos e preconceitos. Sem que o oralista seja “sujeito” nesta narrativa, sem que a “vontade de conhecimento” do oralista dê um norte à narrativa. Na verdade, a “vontade de conhecimento’ do “pesquisador” já deve começar a ser potencializada a partir da liberdade do outro, o narrador, em dizer-se.

O Pós-Entrevista

            Partindo do princípio óbvio de que é impossível escrever como se fala, o momento posterior às entrevistas é de fundamental importância para a atividade da História Oral. Para Sebe Bom Meihy, o pós-campo, o pós-entrevista, é constituído por três estágios distintos (Meihy, 1991). A primeira destas etapas é a de transcrição, na qual busca-se transcrever tal qual o dito, não se muda nada. É nesta etapa que se deve ter o cuidado de se manter “a musicalidade da entrevista e se afiança o tom pretendido pelo narrador” (Meihy, 1991: 30). Mantendo, inclusive, os “erros” da Língua Portuguesa, as interrupções, os silêncios, eventuais instantes emotivos como risos ou lágrimas. O momento da transcrição é a “passagem fiel” do dito à grafia.

            O segundo momento é o da “anulação da voz do entrevistador”, o que ele chamará de textualização. À textualização é imputada a tarefa de reorganização do discurso. É neste momento onde a narrativa já transcrita toma corpo, sendo rearticulada “de maneira a fazê-la compreensível, literariamente agradável” (Meiry, 1991: 30). A voz do entrevistador é anulada com a supressão das perguntas e incorporação destas ao discurso do narrador. A Cápsula Narrativa desconsidera a aplicação da textualização substituindo-a pelo conceito de pontuação. A pontuação é a atividade de aproximação do tecido textual. A pontuação, ao contrário da textualização, não é usada para a formatação da narrativa transcrita, do texto: mas sim para realiza-lo enquanto narrativa de determinado narrador. A pontuação é uma “textualização suave”:

A pontuação enquanto “textualização suave” é necessária não por questões estilísticas ou por exigência do rigor hermenêutico da reflexão sobre a fala-texto do outro: a pontuação obedece ao respeito ao dizer e ao ser do “narrador”: sua vida (suas virtualidades específicas), sua fala, sua existência, sua temporalidade, sua ordem narrativa, é ficcional e ficcional será também aquilo que a dirá “integralmente”, não perdendo de vista que as “falas do outro” não nos exime de nos por e de interpretar, ao contrário, exige essa interpretação e essa tomada de posição: as falas do outro por si mesmas não são suficientes (assim como não é suficiente uma narrativa apenas): mesmo não se misturando à nossa, exige a reflexão: sua multiplicidade pede complemento, pois tanto a dele quanto a nossa são, de determinado momento em diante, contrafaces dum mesmo e grande texto, duma mesma e complexa realidade. (Caldas, 2013: 106)

            A terceira etapa, inda segundo Meihy, é a etapa da teatralização do que foi dito por nosso narrador. Esta “teatralização da linguagem” tem por objetivo recriar, no texto, a atmosfera da entrevista, fazendo com que o leitor possa perceber o mundo de sensações provocadas pelo contato com o narrador, e “como é evidente, isto não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra” (Meihy, 1991: 31). A esta terceira, e última etapa, denomina-se transcriação. Porém, dentro da perspectiva da Cápsula Narrativa em História Oral, todo o processo faz parte duma “transcriação hermenêutica” – desde a produção do projeto, usando como exemplo o projeto “História Oral na Comunidade Sururu de Capote” (que deu origem a esta monografia), passando pelas idas e conversas com os moradores da Sururu de Capote, até às gravações, transcrições, pontuações, transcriações, leituras e interpretações: todo o processo de atividade da Cápsula Narrativa em História Oral faz parte duma transcriação hermenêutica.

            Para a Cápsula Narrativa, a transcriação não pode se limitar, como queria Meihy, a ser somente “a fase final de trabalho dos discursos” (1991: 30), não pode se limitar somente à produção de efeitos que deem ao leitor as sensações do contato direto com o interlocutor. O que é algo recorrente na metafísica das Ciências Humanas: a tentativa de reprodução dum real realmente vivido, realmente acontecido, realmente passado, aquele passado histórico que traz consigo ambições de “realidade”, ambições de “verdade”. Aceitando as proposições da transcriação de Sebe Bom Meihy, estaríamos, assim, aceitando que à História é relegada àquela função de tribunal encarregado de julgar o que é realmente “verdadeiro”, o realmente vivido, o realmente sentido diante da narrativa e da atmosfera que se apresentavam no instante da gravação. Fazendo, desta maneira, uma “reprodução” desta atmosfera, numa tentativa de “reproduzir o real”. A tentativa de recriar a atmosfera da entrevista não faz parte dum processo mais vasto de transcriação, mas sim do uso de técnicas literárias, uma textualização em sentido estrito.

O conceito de transcriação para nós quer dizer uma ação criativa geral que busca tanto as ficcionalidades pessoais, grupais e coletivas quanto o presente como nossa matéria fundamental, nossa ficcionalidade básica. É recriar, através dos artifícios de diálogos gravados, tanto as possibilidades do significado (o que no fundo é dizer que não traduzimos nenhum significado), quanto as flutuações até mesmo físicas daquilo que é o outro. (Caldas, 2001: 38)

            A transcriação promove um desequilíbrio, um estranhamento radical por desmantelar o sistema sujeito x objeto próprio à produção de conhecimento, produzindo, assim, não somente um texto, mas concepção e visão do mundo. A transcriação na Cápsula Narrativa é a radicalização da transcriação em Sebe Bom Meihy. E o resultado desta radicalização é um texto que possa, ao nosso narrador, ser sua vida no papel: aquela vida escolhida, selecionada, delimitada e criada por ele para ser sua vida, sua história, suas experiências: sendo, a ele, a representação de seu vivido: o que não significa que seja o “realmente vivido”, a realidade real, concreta e acontecida: mas sim a vida escolhida por nosso interlocutor para representa-lo, “faltando limite, não havendo uma solidez ideo-lógica nem uma monofonia”, tornando os textos transcriados em “realidades abertas que exigem abertura e enfrentamentos” (Caldas, 2001: 38).

Hipertexto

Havia cento e quarenta e duas escadas em Hogwarts: largas e imponentes; estreitas e precárias; umas que levavam a um lugar diferente às sextas-feiras; outras com um degrau no meio que desaparecia e a pessoa tinha que se lembrar de saltar por cima. Além disso, havia portas que não abriam a não ser que a pessoa pedisse por favor, ou fizesse cócegas nelas no lugar certo, e portas que não eram bem portas, mas paredes sólidas que fingiam ser portas. Era também muito difícil lembrar onde ficavam as coisas, porque tudo parecia mudar frequentemente de lugar. (Rowling, 2000: 99)

            A noção de hipertexto se desenvolve a partir das possibilidades do uso da tecnologia de computadores. O século XX particularmente se esforça para o colhimento, processamento e catalogação de dados: seja para academia, para a guerra ou para a indústria (setores que estavam muito mais próximos neste período). E se depara com um problema fundamental: “como acessar estes dados?”. Vannevar Bush, conselheiro para assuntos científicos de Franklin Rossevelt, imaginou uma plataforma com a qual se pudesse ter acesso aos dados catalogados em formas de microfilmes onde o usuário pudesse selecionar e exibir em qualquer parte que desejasse, tudo isto integrado a algum meio que permitisse isto. A este, Vannevar Bush chamou de “Memex”. Tendo em vista q isto ocorreu em 1954, e a tecnologia necessária ainda não havia, nem se podia imaginar o potencial que os computadores tinham: o Memex de Vannevar Bush se limitou a alguns ensaios, artigos e discussões encabeçadas por ele mesmo.

            Somente no início da década de 1960, Theodor Nelson, então estudante de graduação, percebeu e reuniu a tecnologia necessária para criar uma ferramenta que possibilitasse este acesso dinâmico e interativo aos dados catalogados: a isto ele chamou “hipertexto”.

Ao fim de meses, acabei compreendendo que, embora os programadores estruturassem seus dados hierarquicamente, isso não era necessário. Comecei a ver o computador como um local ideal para fazer com que interconexões entre coisas fossem acessíveis às pessoas.

            E acrescenta,

Compreendi que a escrita não tinha que ser sequencial e que não apenas os livros e as revistas do futuro estariam nas telas [terminais de raios catódicos], como todos poderiam estar conectados uns aos outros em todas as direções. Imediatamente comecei a trabalhar em um programa (escrito em linguagem Assembler 7090) para levar avante esta ideia.

            O hipertexto é aplicado à escrita pela primeira vez em meados da década de 1970, na Brown University, quando o professor Andries van Dam contratou o professor de inglês Robert Scholes para tentar descobrir se havia alguma funcionalidade ao, que na época era chamado de sistema editor de texto (hoje conhecido como processador de texto), este com características de hipertexto embutidas. Scholes e seu grupo de pesquisa se empenharam em desenvolver meios de utilizar as funcionalidades do hipertexto para a interpretação de textos literários, no caso específico da pesquisa com poemas.

            Textum, traduzido do latim, significa “tecido” ou “entrelaçado”. Partindo de Do texto ao texto, de Ulisses Infante, temos uma razão etimológica que não nos deixa esquecer q o texto é produto duma atividade de tecelão: onde se une, enlaça e tece “unidades e partes a fim de formar um todo inter-relacionado” (1996: 90). Seguindo este raciocínio: Ulisses Infante estabelece quatro elementos centrais para a avaliação dum texto: repetição, progressão, não-contradição e relação. Estes quatro elementos são necessários à produção dum “texto coerente”: como o autor salienta no início da conceituação de cada um dos elementos. Assim, “um texto deve ser: uma sequência de dados não-contraditórios e relacionáveis, apresentados gradativamente por meio de um movimento que combina repetição e progressão” (1996: 94). Lembra a conceituação, muito mais técnica, de texto feita por Roger Laufer e Domenico Scavetta em Texto, hipertexto e hipermedia: “o texto é um conjunto de parágrafos sucessivos, reunidos em artigos ou capítulos, impressos em papel, e que se leem, habitualmente, do princípio ao fim” (19??: 5).

O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. Como é realmente a cidade sob esse carregado invólucro de símbolos, o que contém e o que esconde, ao sair de Tamara é impossível saber. (Calvino, 1990: 18)

            O texto propõe ao leitor um caminho fixo. Aponta, desde suas primeiras palavras, quais passos e quais resoluções estarão dentro de si: sempre dentro de si. O texto impõe seus próprios limites: o texto é uma volta sobre seu próprio eixo: infinitas voltas. É uma sequência comunicativa impressa em signos que seguem uma norma gramatical e é (assim como o funcionamento próprio do ocidente) linear progressivo, seguindo o modelo de início-meio-fim. No qual, com o decorrer da leitura, haverá uma acumulação de informações que possibilitará sua compreensão. O texto segue a lógica do tempo cristão-agostiniano: a criação (o passado), a vinda do cristo/os últimos dias (o presente) e o milênio (o futuro teleológico). Curiosamente a mesma lógica linear progressiva da indústria.

            O texto é a cidade invisível de Tamara, da obra Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino: diz ao leitor tudo aquilo que se deve pensar: tudo o que se deve fazer: como se deve ler. Faz o leitor repetir seu discurso, sua lógica interna (sempre interna), seu jogo próprio. Enquanto dá a impressão de impressão duma verdade, dum conhecimento, dum saber, duma informação, duma literatura, dum manifesto: está dando ao leitor o registro dos “nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes”. O texto é sedentário, é imóvel, protegido por regulações de leis de direitos autorais e intelectuais. Protegido pelo sagrado: o texto é inviolável. João depois de narrar as revelações “que brevemente devem acontecer” aos mortais, aos imortais, às potestades celestiais, à terra, ao universo e à toda criação: conclui seu apocalipse garantindo q seu texto permanecerá sempre o mesmo, estático, inviolado:

Porque eu testifico a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro, se alguém lhe acrescentar alguma coisa, Deus fará vir sobre ele as pragas que estão escritas neste livro; e se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, que estão escritas neste livro.

Apocalipse de João cap. 22, vers. 18, 19.

            O hipertexto é um texto dinâmico onde o leitor, neste caso, o oralista, interage diretamente com sua leitura, com sua ordem, com sua visão. O prefixo hiper é empregado com o mesmo sentido que é empregado na matemática para hiperespaço: o hipertexto, assim como o hiperespaço, representa n dimensões. Da mesma forma como um hipercubo: o hipertexto não está acessível aos nossos sentidos: o leitor quem cria relações, elementos, elos, conexões, cor, som, gosto, sentido no ato da hiperleitura. O hipertexto cria n dimensões, n possibilidades de leituras, n caminhos. Não é uma concentração de informações ou de dados nem de interpretações: mas sim um espalhar, um perfurar, um dilatar nas mais variadas direções. Enquanto o texto cristaliza: o hipertexto dinamiza o real – o real é hipertextual.

            Assim como as escadas de Hogwarts: o hipertexto está sempre em movimento. A cada leitura, a cada passagem, a cada dia. Todas as dimensões do hipertexto estão sempre se cruzando, se interligando, se interagindo, procriando. Está sempre dando numa porta diferente, num lugar diferente. Por vezes esbarrando em portas que não são bem portas: “mas paredes sólidas que fingiam ser portas”. Ou até em portas que não abrem a não ser que se peça por favor ou faça “cócegas no lugar certo”.

            O “homem civilizado” tem pavor à dinamicidade do real: pavor à possibilidade que nalgum momento as regulações e os reguladores desapareçam: “treme à ideia que a sociedade possa um dia encontrar-se sem juízes, sem policiais, sem carcereiros”, nas palavras de Kropotkin em A Anarquia. O que justifica o espanto de Harry Potter em nunca conseguir lembrar onde estavam as coisas, as escadas, os caminhos, os degraus, as portas: “porque tudo parecia mudar frequentemente de lugar”. Mas não somente parecia: tudo estava frequentemente mudando de lugar.

            Jamais se sabe o que se pode encontrar por trás das portas de Hogwarts: desde Fofo, o cão gigante de três cabeças no corredor do terceiro andar do lado direito. Até a “Sala Precisa”: imensa porta que se materializa nas paredes sólidas que leva a uma sala que só aparece quando se precisa dela. Que talvez só apareça sob determinada incidência da luz da lua: ou talvez em determinada hora do dia. Desta mesma maneira, nunca sabemos o que se pode encontrar num hipertexto:

Encontrar Homero, Agostinho, Dante ou Shakespeare num hipertexto que nos aparece absolutamente estranho a tudo isso não quer dizer que esse hipertexto “contenha algo” [esperamos sempre que haja uma materialidade natural em tudo] de Dante, Agostinho, Homero ou Shakespeare: o oralista hermeneuta, o oralista no seu momento de “interpretador” cria, cava e escava o “buraco do coelho” que faz a ligação entre universos textuais separados: jamais o que dizer-do-texto (naturalização): o dizer está sempre além, em fluxo conectivo. (Caldas, 2013: 146)

            O hipertexto garante que as constantes e frequentes transformações das condições do real sejam percebidas. A vida líquido-moderna (Bauman, 2007) tem suas condições radicalmente alteradas num tempo menor que aquele que poderia permitir que estas se consolidassem como hábitos e rotinas. O texto, a História, a Jurisprudência, a Lei, as Sagradas Escrituras fazem parte dos mecanismos de cristalização do real. Tentativa de velar o espetáculo próprio do nosso mundo industrial: a velocidade avassaladora e implacável em que o descarte de produtos é realizado, onde nós somos feitos da mesma matéria do smartphone lançado agora e superado daqui a alguns instantes. Tentativa de velar o medo gerado por saber que a qualquer momento podemos ser descartados, jogados à lixeira, deletados: pelo cônjuge, pelos contatos, pela família, pelo mercado, pelo trabalho, por Deus. A proposta hipertextual busca vibrar na mesma intensidade que a velocidade do nosso mundo.

História do Projeto

            Esta monografia é resultado duma bolsa PIBIC/UFAL. Projeto intitulado “História Oral”, do Prof. Dr. Alberto Frederico Lins Caldas Filho. Com o plano de trabalho do pesquisador intitulado “História Oral na Comunidade Sururu de Capote”. Projeto que durou de agosto de 2012 a julho de 2013. E apresentado no XXIII Encontro de Iniciação Científica – PIBIC/UFAL 2012/2013, realizado na primeira semana de dezembro de 2013. No entanto, meu interesse e minhas visitas à comunidade Sururu de Capote ocorrem desde 2011. E meu envolvimento com a Cápsula Narrativa em História Oral desde meu segundo período do Curso de História, inda em 2010.

            A Comunidade Sururu de Capote é uma tradicional favela da cidade de Maceió. Localizada no bairro do Vergel do Lago, às margens da lagoa Mundaú. É uma comunidade constituída por pescadores, catadores de sururu e marisqueiras. E meu interesse pela comunidade se deu pelo desejo de trabalhar num projeto PIBIC e, por conseguinte, em minha monografia com algum grupo inaudível dentro do cotidiano da vida urbana maceioense. Aproveitando também o fato de nossas 17 lagoas serem homenageadas no próprio nome do estado e a lagoa Mundaú, assim como a Lagoa Manguaba e a Lagoa de Jequiá, ser representada no brasão da bandeira de Alagoas como uma das três tainhas na parte superior (brasão criado pelo folclorista Théo Brandão em 1963). Uma contradição que chama a atenção.

            A escolha do uso da Cápsula Narrativa em História Oral como metodologia se deu por meu contato desde o primeiro período do Curso de História com aquele que posteriormente seria o orientador desta monografia, o prof. Alberto Lins Caldas. Que me colocou em contato com a História Oral e com a obra de José Carlos Sebe Bom Meihy, o mais notável oralista do Brasil.

            A aplicação da Cápsula Narrativa na e para além da História Oral de Sebe Bom Meihy me atraiu pelas possibilidades outras que ela propõe. Dois dos conceitos que, desde o início, mais me despertaram interesse e, precisamente, os que mais pesaram para minha escolha pelo uso desta metodologia foi o conceito de Narrador Pleno e Hipertextualizção. Que são, respectivamente, “aqueles que mantiveram intacta sua ‘faculdade de intercambiar experiências’” (Caldas, 2013: 92) e “é a forma de virtualidade singular, holograma polidimensional em constante crescimento e convulsão de infindáveis formigueiros” (Caldas, 2013: 136).

            Desta forma, a primeira empreitada para a realização do projeto foi a construção duma base teórico-metodológica. Com leitura, discussões, levantamento de questionamentos, fichamento de livros sobre o trabalho com História Oral, a utilização da Cápsula Narrativa em História Oral, o cotidiano de comunidades pesqueiras tanto em Alagoas, quanto noutros estados pesqueiros do Brasil – por meio de artigos, monografias, dissertações e publicações: apesar da dificuldade para se encontrar este tipo de bibliografia, principalmente no que diz respeito ao estado de Alagoas e mais ainda à Comunidade Sururu de Capote. A abstração destes itens foi de essencial importância para a realização dum projeto de Cápsula Narrativa em História. Projeto que foi amadurecendo juntamente com seu executor.

            Imediatamente depois veio a necessidade da escolha dum tema ao projeto. Após passar por outros temas como “História Oral com Sacerdotes”, cheguei à compreensão de que deveria fazer com pescadores. Apesar do direcionamento às comunidades pesqueiras, a Sururu de Capote ainda não estava em pauta. A preferência era por comunidades às margens da Lagoa Manguaba, ou Lagoa do Sul, como também é conhecida, na cidade de Marechal Deodoro. Pelo fato de já ter realizado um projeto de História Oral com pescadores deodorenses para a disciplina eletiva de História Oral, ministrada pela prof. Msc. Clara Suassuna Fernandes, no segundo semestre de 2011. Pelas causas que apresentei alguns parágrafos a cima, delimitei o tema e o local de execução do projeto. Veio, portanto, a construção dum projeto a partir deste tema e com base na bibliografia que dispunha. O projeto é sempre uma preliminar, é um norte pelo qual não podemos nos basear.

            O projeto em História Oral está sempre passivo, e deve estar, à superação. É uma necessidade acadêmica de produção de documento para se alcançar legitimação, oficialização e, se for o caso, financiamento. Ele é consumido pela atividade da pesquisa, do campo, pelo exercício do contato com a realidade que se deseja perceber, “sua função é não se realizar, é se dissolver diante da efetividade, é sempre um antes da efetividade” (Caldas, 2013: 91). Tendo consciência da dimensão acadêmica do projeto em História Oral, desenvolvemos um projeto com este objetivo. E, como já dito, em agosto de 2012 teve início meu PIBIC “História Oral na Comunidade Sururu de Capote”.

            No decorrer do projeto, uma série de outras possibilidades, tentativas e coisas que não previmos, nem poderia ter sido previsto inda no projeto, se apresentou. Concretizando aquilo que até então só conhecia enquanto teoria, tendo em vista que este foi meu primeiro trabalho robusto de pesquisa acadêmica. Entrei na Sururu de Capote buscando encontrar um narrador que pudesse narrar sua vida a partir de suas memórias e das do mundo que o cria e que ele cria. Uma vez encontrado este narrador, que necessariamente, a princípio, seria um pescador, buscaria perceber por meio de sua narrativa as condições que possibilitam a permanência e manutenção daqueles indivíduos naquela realidade. Tenho que confessar que há 5 (cinco) anos, quando entrei pela primeira vez na Sururu de Capote, entrei com a visão meramente daquele que passou por vezes de ônibus pela avenida Senador Rui Palmeira, que está bem em frente à comunidade. Nesta condição, cria que os indivíduos que ali habitavam, por motivos que para mim pareciam óbvios, desejavam, duma ou doutra forma, sair daquela situação. Posicionamento que mudou desde meus primeiros contatos com os moradores da comunidade.

            Logo no primeiro contato, percebi que poderia expandir de pescadores a pescadores e marisqueiras. Conversei com a dona Ivanilda: marisqueira a vida inteira, que topou conversar. Conversamos não só uma vez. No entanto, ela não permitiu a gravação de nossas conversas. Com um tempo, consegui convencê-la a gravar. No dia marcado para conversamos, nossa marisqueira não apareceu. Soube depois, por alguns conhecidos, que seu marido a proibiu de conversar e/ou gravar comigo novamente – sob ameaça de agressão física. A Sururu de Capote se abria a mim com toda sua complexidade, com suas diferenças, com seus preconceitos, com sua beleza, com seu funcionamento.

            O segundo grande momento de atividade dentro da Comunidade foi marcado pelo encontro com a pastora Eliana. Líder duma pequena igreja de tábua, lona, algumas fileiras de tijolos e coberta por telhas de fribrocimento onduladas, as famigeradas telhas Brasilit. Acomodado entre os fiéis sentados em não mais que 50 (cinquenta) cadeiras plásticas brancas, com um som mal equalizado e demasiado alto para a quantidade de pessoas dentro daquele templo, que amplificava mensagens, profecias, músicas e toda sorte de ferramenta sonora necessária à realização daquela assembleia. Acompanhei uma reunião: um Círculo de Oração, como é chamado os cultos no período da tarde, cultos comuns entre as igrejas pentecostais. É um culto quase que exclusivamente de mulheres, crianças e adolescentes, tendo em vista que durante o dia o homem está no trabalho e a mulher e os filhos estão em casa. Dentro de igrejas tradicionalmente conservadoras nas quais os homens são sempre os líderes e os principais: onde missionários, pastores, presbíteros, diáconos e porteiros são sempre cargos ocupados por homens (como a Assembleia de Deus, a mais antiga igreja pentecostal do Brasil e que influenciou tantas outras em seus mais de 100 [cem] anos de história em solo brasileiro e que, claramente influenciou imensamente a pequena igreja no seio da Sururu de Capote) o posto de “dirigente de Círculo de Oração” é o posto mais alto e honrado que uma mulher pode galgar dentro desta estrutura. Tudo isto à beira da avenida Senador Rui Palmeira, entre os barracos e as quitandas onde são vendidos os frutos da lagoa. Trata-se duma igreja familiar, sem placa alguma em sua fachada modesta. É não somente gerida, como mantida e propagada pelos membros da família da pastora Eliana – marido, esposa, filha, genro e dois netos. Marido que fora o fundador na igreja, porém afastado de suas funções sacerdotais devido a um AVE (Acidente Vascular Encefálico), o “derrame cerebral”. Desta forma, sua esposa, a pastora em questão, assumiu suas funções. Enquanto ele observa atentamente, de perto, o percurso de sua igreja. Aquela igreja e sua respectiva pastora tinham funções muito objetivas na Comunidade: a pastora Eliana vai para as casas dos fiéis, ora pelos enfermos, traz palavras de alento, ora pelos armários (sim, pelos armários!) das pessoas que a procura – com o intuito de Deus multiplicar o alimento que ali há, caso haja, quando não há, o que é o mais comum, para que Deus possa prover o pão de cada dia. Conversando com uma das fiéis, logo depois do término do culto, enquanto esperava para conversar com a pastora, que estava cercada por várias outras pessoas que buscavam sua atenção, a fiel me confirmou que semanas antes daquele dia 4 janeiro de 2013, a pastora orou e ungiu seu botijão de gás de cozinha que estava prestes a acabar. O botijão continuava cheio, por um tempo milagrosamente maior que o normal. Ou seja, a função daquela igreja na Sururu de capote é clara. O filósofo esloveno Slavoj Žižek (2005: 21) observa bem este fenômeno:

 

Não é de se estranhar que a forma hegemônica de ideologia nesses bairros miseráveis seja o cristianismo pentecostal, com sua mistura de fundamentalismo voltado para milagres e espetáculos, e de programas sociais como cozinhas comunitárias e cuidados com crianças e idosos.

 

            Desta maneira, os caminhos do projeto “História na Comunidade Sururu de Capote” pareceu que daria noutros horizontes que não somente os dos indivíduos efetivamente envolvidos na pesca (tanto na pesca direta, quanto no tratamento dos frutos da lagoa, quanto na comercialização destes). A pastora Eliana, que além de se dispor a conversar, a gravar, a abrir suas portas, trouxe uma nova ideia à pesquisa, um leque de possibilidades, que poderia inserir algumas visões que anteriormente não haviam. Como já dito, a princípio o projeto se resumia à gravação de cápsulas narrativas com, somente, pescadores e, em último caso, com marisqueiras. No entanto, com o contato com a pastora Eliana e a percepção da importância, para muitos vital, que ela, sua família e sua pequena igreja têm ao funcionamento da Sururu de Capote vieram as possibilidades de alargar este grupo para não somente pescadores, mas sim todos os indivíduos que ali vivem e trabalham. Desta forma, poderia ser percebido como indivíduos que, mesmo sem trabalhar diretamente com a pesca, exercem fundamental papel na manutenção da comunidade – como mercadores; atravessadores; líderes comunitários; professores que trabalham com as crianças da comunidade; policiais que convivem com o cotidiano daqueles indivíduos – policiais estes que desencorajaram totalmente, desde o início, a pesquisa; quando conversei com eles nalguns momentos no batalhão me disseram que a comunidade era violenta demais para este tipo de coisa, e, se fosse o caso de permanecer na lagoa, que o mais indicado seria a transferência da pesquisa para o outro lado da lagoa, para o bairro do Pontal, que é um ponto turístico frequentado e habitado por outros grupos sociais. Todavia o horizonte do alargamento para outros que não só os envolvidos com a pesca, foi fechado pelo mesmo motivo que levou muitos a não querer conversar, e quando conversavam, não permitiam a gravação da conversa — o medo.

            Este é um ponto que podemos ver como fundamental para compreensão do discurso de muitos com quem conversamos. O medo da retaliação por parte dalguns moradores da própria comunidade. É importante ressaltar que o poder ou a influência do Estado dentro destas comunidades marginais é sempre reduzido. A partir desta realidade, os próprios membros marginalizados criam seu próprio poder, suas próprias regras, suas próprias relações entre os indivíduos integrantes deste meio. Conversando com o pescador David, de quem falaremos mais adiante, ele deixa bem claro como os próprios “bandidos”, como são apresentados à sociedade, que vivem e ditam as regras da comunidade, têm aversão a qualquer tipo de estranho que busque contato com os moradores. Umas das principais causas são operações da polícia que por vezes vai descaracterizada para tentar se infiltrar e conseguir informações sobre moradores e até sobre “foragidos da lei”, que são escondidos e abrigados pela comunidade — afinal, à lei, são “foragido”, mas à comunidade aqui observada, são filhos. Outra causa a este medo, é o medo da retaliação por fornecimento de informações a outros grupos de “marginais” que vão à comunidade assaltar, disputar territórios, dentre tantas outras coisas.

            Tive a oportunidade de experimentar desta hostilidade ao outro de fora. Em determinada ocasião, quando conversava com David, o principal anfitrião na comunidade, fomos intimidados por um grupo de jovens. David havia sugerido que conversássemos num banco de frente a um campo de futebol, ao lado do batalhão da PM, exatamente para evitar qualquer tipo de intimidação. O que, como já sabido, não adiantou muito. O grupo de jovens do outro lado da avenida nos observava, apontava, fazia gestos. Um deles chegou a nos rodear montado numa bicicleta levantando discretamente a camiseta que vestia, exibindo uma arma de fogo colocada em sua cintura. Certamente este foi o momento mais tenso de toda a pesquisa na Sururu de Capote.

            Apesar do medo ter limitado as conversas, ou melhor, ter limitado as gravações das narrativas, pude, como já dito, conversar, com David. David é pescador, nascido e criado na comunidade. Com certeza o Pequeno (como David é conhecido na Comunidade) nos forneceu as narrativas que o projeto desejou. A partir de suas narrativas, David foi nosso principal narrador, não somente na aplicação da Cápsula Narrativa em História Oral, mas também noutra forma de ver comunidades às margens do consumo, da lei, da sociedade: como a Sururu de Capote. David, logo de início, rompeu com um preconceito que trazia comigo, e que só o trabalho em campo poderia romper: um narrador, necessariamente, não precisa ter uma idade mais avançada. Quando conversei com o Pequeno, ele estava no auge de seus 25 anos de idade. Além do mais, David fez o projeto voltar a seu enfoque original, fazer cápsulas narrativas com pescadores/catadores da Lagoa Mundaú. E foi onde eu o conheci – às margens da lagoa.

 
 

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Recebido: 01/05/16

Aceito: 15/06/16

         

NOTAS

[1] Baseio-me aqui nas noções de conhecimento discutidas na obra Introdução ao pensamento epistemológico, do filósofo maranhense Hilton Japiassu. Na qual é apontada a direção que segue a concepção de conhecimento: conhecimento enquanto conhecimento-processo. Com o qual corroboro. “Hoje em dia, o conhecimento passou a ser considerado como um processo e não como um dado adquirido uma vez por todas (...) O vê antes de tudo como um processo, como uma história que, aos poucos e incessantemente, fazem-nos captar a realidade a ser conhecida” (1979: 27). Com isto, não é dito que o conhecimento faz parte dum processo cumulativo progressivo linear. No qual a fórmula: “quanto maior a ‘experimentação’ acumulada, mais acertado será determinado conhecimento” é o aceito. A isto, o próprio Hilton Japiassu responde ao discutir sobre as propostas epistemológicas de G. Bachelard, uma vez q “não há verdade primeira, apenas erros primeiros” (1979: 72) é destituída a afirmação de que há um conhecimento inicial o qual a ciência o aperfeiçoará progressivamente. Além do mais, “a ciência não é representação, mas ato. A noção de espetáculo precisa ser eliminada. Não é contemplando, mas construindo, criando, produzindo, retificando que o espírito chega à verdade. É por retificações contínuas, por críticas, por polêmicas que a Razão descobre e faz a verdade. Para a ciência, o verdadeiro é retificado, aquilo que por ela foi feito verdadeiro, aquilo que foi constituído segundo um procedimento de auto constituição” (1979: 69). Desta maneira, é possível afirmar que o conhecimento é um processo em choque, transformação, atrito, retificação no qual a verdade cientifica está baseada. Processo este que está em constante movimento.

[2] Prins, Gwyn. História Oral. In: Burke, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 166.

[3] Wallot, Jean-Pierre, apud Abraão, Janete. Pesquisa & História. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 23.