Zona de Impacto - ISSN 1982-9108  ANO 18 Vol . 2 - 2016 - julho/dezembro



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ANTROPOLOGIA DA PERFORMANCE E PÓS-ESTRUTURALISMO: ASPECTOS DO RITUAL DE XAMANISMO YANOMAMI – ALDEIA DE MATURACÁ 

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 Luiz Davi Vieira Gonçalves

Prof. Departamento de Artes UEA

Doutorando PPGAS/UFAM

 

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo uma reflexão sobre Antropologia da Performance e o Pós-estruturalismo com base nos escritos de Victor Turner e Homi Bhabha. Conceitos como Liminaridade, Communítas, “Entre-Lugares” e o “Estranho” serão analisados coadunados com o ritual Xâmanico Yanomami da aldeia de Maturacá, para o aprofundamento analítico acerca dos aspectos do ritual xamânico e do conceito de Cultura.

Palavra-chave: Antropologia; Performance; Xamanismo; Yanomami;.

Abstract: This article aims at a reflection on Performance Anthropology and Post-structuralism based on the writings of Victor Turner and Homi Bhabha. Concepts such as Liminaridade, Communites, "Between Places" and "Stranger" will be analyzed in line with the Yanomami Shamanic ritual of the village of Maturacá, for analytical deepening on aspects of shamanic ritual and the concept of Culture.

Keywords: Anthropology; Performance; Shamanism; Yanomami.


 

Nós crescemos no mundo, à medida que o mundo cresce em nós. Tim Ingold

 

Este artigo visa estabelecer aproximações entre o que, cientificamente, é classificado como Antropologia Simbólica e o que designamos, de Performance Cultural; campo dos estudos culturais, sobretudo acerca de suas ações ritualísticas e estéticas. Deste modo, estarei correlacionando experiências performáticas da cultura Yanomami, a ideias acerca de conceitos como Liminaridade, “Entre-Lugares”[1] Communítas e o “Estranho”[2]. Para isso, tomarei como provocação inicial as palavras do antropólogo Tim Ingold, transcritas na epígrafe citada, como ponto de partida para a reflexão sobre o mundo da cultura Yanomami; sua multiplicidade expressiva diante de uma fonte de pesquisa ainda pouco sistematizada no Brasil - o xamanismo.

Com o objetivo de iniciar uma investigação sobre o campo simbólico no ritual xamãnico da etnia Yanomami - aldeia Maturacá[3], viso neste artigo uma breve definição sobre o xamanismo, tendo como fonte de pesquisa o trabalho de campo[4] realizado em dois períodos, o primeiro de 01 a 22 de julho de 2015 e o segundo de 12 a 26 de Fevereiro de 2016. Ambos na aldeia destacada.

 Neste propósito, também trago uma breve definição sobre o entendimento de performance, que nos conduzirá no desenvolvimento final deste artigo. Entretanto, vale salientar que ambos os temas comportam conceitos inesgotáveis e se situam em campo pantanoso para o entendimento imediato. Assim, viso apenas o encaminhamento conceitual deste artigo. Basicamente, a linha teórica seguirá os alfarrábios dos seguintes autores: Victor Turner (1974, 2005, 2008), no campo do estudo Simbólico e da antiestrutura pós-estruturalista; Homi Bhabha (2001), no campo do conceito de cultura e pós-estruturalismo; Jean Matteson Langdon (1996) e Joana Overing (1994), no campo do xamanismo; Richard Schechner (2006, 2011) no campo da Performance, além de outros autores e fontes provocativas, como fundamentações teóricas e estéticas.

Dando início à questão, cabe salientar que este artigo inicia uma proposta lançada em pesquisa de nível de doutorado, que propõe uma investigação aprofundada sobre ambos os temas (Antropologia, Performance e Xamanismo), baseando-se fundamentalmente no ritual Xamânico Yanomami da aldeia de Maturacá. Sobretudo, conjecturando o esquema de texto para este artigo, cabe como ponto de partida apresentar e definir os conceitos escolhidos de Turner e Bhabha.

Antropólogo marcante para o pós-estruturalismo, Victor Turner escreveu várias obras relacionadas a este assunto, nas quais separo para o tema deste artigo os seguintes livros: Floresta Simbólica (2005), Dramas, Campos e Metáforas (2008) e O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura (1974). Sendo que a fertilidade de sua escrita, extrapola os campos de análise deste artigo. No primeiro livro em destaque, Victor Turner faz uma compilação de diversos artigos sobre o Ritual do Ndembus[5], escritos entre suas experiências de campo, que foram realizadas durante os períodos de dezembro de 1950 e fevereiro de 1952, e entre maio de 1953 e junho de 1954. Nesta obra, o ritual é o foco central de análise e os estudos de seus símbolos se tornaram exemplo de metodologia para pesquisadores que trabalham com processos culturais em diversas áreas; antropologia, linguística, arte dramática, entre outros.

 No segundo livro, o autor tem como objetivo analisar as maneiras pelas quais ações sociais de vários tipos adquirem forma por meio de metáforas e paradigmas nos pensamentos de seus agentes, e, em determinadas circunstância intensivas geram precedentes que legam à história novas metáforas e paradigmas (TURNER, 2008). Com base, novamente em Vann Gennep[6], o Turner salienta a estrutura processual da própria ação social. A ação humana em movimento no espaço e tempo, sem rigidez cultural e muito menos performances produzidas por um “programa” com pensamento geral para todos; colocando-se contra os Antropólogos Estruturalistas.

O último livro, O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura que eu trago à baila para a reflexão nos conduzirá a concomitância entre os aspectos do ritual com o conceito de cultura de Homi Bhabha, Turner baseando-se nos rituais do povo Ndembu, apresenta ao leitor a definição de Communítas e de Liminaridade, que irei abordar em seguida. Esta obra também é bastante utilizada para pesquisas voltadas ao ritual e suas classificações, já que Turner analisa os planos de classificação do ritual.

O conceito de Liminaridade de Turner talvez é um dos assuntos mais investigados em sua obra. Autores que perpassam por pesquisas sobre costumes, convenções, cerimonial, rituais entre outros se subsidiam com a dimensão que este conceito pode ofercer. Comparada a morte, ao estar no útero, à bissexualidade, à escuridão ao eclipse do sol ou da lua, Turner faz a seguinte definição acerca do conceito no livro; O processo Ritual:

 

Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. (TURNER, 1974, p. 117)

 

Na citação, o autor evidencia muito bem a definição de liminaridade e sobretudo o seu alcance de análise. Também vale ressaltar que o estado liminar alcança o agente cultural como a própria cultura - sua posição e estado. Ou seja, o corpo de um xamã em um ritual de pajelança pode representar um estado liminar quando ele ao mesmo tempo é real e imaterial ao conectar com os espíritos de sua crença. Segundo TURNER (1974, p. 118) é como se fossem reduzidas ou oprimidas até a uma condição uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida – os neófitos.

Por outro lado, o estado cultural por si só representa esta liminaridade por não se aplicar definida ou estática, não possuído status, propriedade, demostrando estados de mudança; antiestrutura, ou seja, assemelha bastante com a questão do Entre-lugar de Homi Bhabha. A liminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa o baixo (TURNER, 1974, p. 119).

Faz se pertinente destacar o agente do estado liminar, chamado por Turner de Communítas, que o autor define da seguinte forma:

 

Assistimos, em tais ritos, a um "momento situado dentro e fora do tempo", dentro e fora da estrutura social profana que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento (no símbolo, quando não mesmo na linguagem) de vínculo social generalizado que deixou de existir, contudo simultaneamente tem de ser fragmentado em uma multiplicidade de laços estruturais. São os laços organizados em termos ou de casta, classe ou orden5 hierárquicas, ou de oposições segmentares, nas sociedades onde não existe o Estado, tão estimada pelos antropólogos políticos. (TURNER, 1974, p. 118)

 

Em exemplo o autor referência a “geração beat[7] que sucederam os “Hippies[8], que são membros audaciosos das diferentes categorias de idade – jovens e adultos – que não tem as vantagens dos ritos de passagem nacionais e que decidem fugir da ordem social ligada ao status e adquiriram os estigmas dos mais humildes, e apontados como “vagabundos, ambulantes, mendigos, etc. Segundo Turner (1974, p. 138) A Communítas pertence ao momento atual; a estrutura está engalgada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a lei e os costumes. Importante lembrar que o conceito de estranho de Homi Bhabha se assemelha nesta indicação de Communítas de Turner pelo seu estado liminar; não correspondendo ao um status definido.

Homi Bhabha[9] é importante figura entre os autores que se dedicaram aos estudos pós-coloniais se destacando com teorias sobre o hibridismo cultural, lançou o livro: O Local da Cultura (1994), no qual, o cerne da discussão é o pós-modernismo, o pós-colonialismo, o pós-feminismo, ou seja, a ideia do além; “o além não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado”. (BHABHA, 1994). A ideia do além para Bhabha, configura o eixo principal para o entendimento do seu conceito de cultura, pois para ele, a cultura se encontra no cruzamento do transito em espaço e tempo, produzindo figuras complexas de diferenças identidades. Mais especificamente a ideia do “entre-lugares[10].

 

Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (BHABHA, 1994, p. 20)

 

Para o autor, essa passagem entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem hierarquia, abrindo mão da representação pré-estabelecida e da tradição fixa, ou seja, cultura enquanto estado rígido.

Assim a ideia do além é estabelecida por Homi Bhabha como algo que está em transito e ao mesmo tempo dando voz ao passado e ao futuro – entre-lugar.

 

“Além”[11] significa distância espacial, marca um progresso, promete o futuro; no entanto, nossas sugestões para ultrapassar a barreira ou o limite – o próprio ato de ir além – são incogniscíveis, irrepresentáveis sem um retorno ao “presente”[12] que no processo de repetição torna-se desconexo e deslocado. (BHABHA, 1994, p.24)

 

Homi Bhabha neste livro, faz várias ligações de seus caminhos teóricos com múltiplos exemplos oferecendo ao leitor uma maior evidencia de seu pensamento. Na citação anterior, o autor traz ao conhecimento do leitor o Teatro Contemporâneo do Sri Lanka salientando o modo hibrido de ver a cultura em ação; há uma evidência esmagadora de uma nação mais transnacional e translacional do hibridismo das comunidades imaginadas. (BHABHA, 2014, p. 24).

Logo em seguida, o autor evidencia a questão das culturas nacionais que frequentemente são alteradas para o estabelecimento de conexões internacionais, cunhando assim, um processo continuo de reconfiguração. O desejo do reconhecimento de outro lugar e de outra coisa, levando a experiência da história além da hipótese instrumental.

Outro exemplo que o autor nos oferece é o artista performativo, especificamente Guilermo Gomez-Pena, que segundo Bhabha vive em outros tempos e espaços, na fronteira entre o México e Estados Unidos:

 

Tais culturas de contra-modernidade[13] pós-colonial podem ser contigentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para “traduzir”[14], e portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da modernidade. (BHABHA, 2014, p. 26)

 

Quando o autor nos conduz à ideia das condições fronteiriças para o entendimento do entre-lugar, nasce outro conceito que subsidiará o tema central deste artigo; a ideia do “estranho”.

No tópico[15]; Vidas Estranhas: A Literatura do Reconhecimento, a questão do estranhamento encontra-se como uma intervenção do “além”, a condição das iniciações extraterritoriais e interculturais. Ou seja, ser estranho na perspectiva da fronteira, não é está sem casa, em uma visão simplista dentro da divisão familiar da vida social em esferas privada e pública.

As fronteiras entre casa e mundo se confundem, o privado e o público tornam-se parte um do outro forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora, ou seja, o autor nos ortiga sobre a diferença cultural e a distinção entre coisas que deveriam ser ocultas e coisas que deveriam ser mostradas: “como o oculto pode ser rico e múltiplo em situações de intimidade” (BHABHA, 1994, p. 31)

Homi Bhabha, para exemplificar a ideia do “estranho”[16] traz a imagem estética da arte como o próprio evento do obscurecer, uma decida a noite, uma invasão da sombra:

 

A “completude”[17] do estético, o distanciar do mundo na imagem, não é exatamente uma atividade transcendental. A imagem – ou a atividade metafórica, “ficcional”, do discurso – tornará visível “ uma interrupção do tempo por um movimento que se desenrola do lado de cá do tempo, em seus interstícios. (BHABHA, 1994, p. 37)

 

Percebe-se que o autor, usa a ideia do estético, da imagem, para explicar que o estranho faz parte do entre-Lugar que corresponde a cultura que se constitui sem rigidez e configuração única, seu movimento indo ao subalterno e voltando para realidade, sua ida ao passado e também se lançando ao futuro como uma performance artística.

No tocante a concepção do tema deste artigo, faço a seguinte proposta para a coadunação entre o conceito de Cultura de Homi Bhabha e os aspectos do Ritual de Victor Turner: a liminaridade coadunado com o entre-lugares, e communítas coadunado com o estranho

Por conseguinte, trago a similaridade entre os conceitos de liminaridade e o entre-lugares devido ao estado de movimento de ambos os conceitos. A liminaridade de Turner representa o estado de transição, já em seguida o entre-lugares de Homi Bhabha é habitar em um espaço intermediário. Portanto, os dois conceitos se coadunam por sua epistemologia de sentido, em ambas realidades de cada autor.

Já por outro lado, com o foco no individuo, o conceito de Communítas coaduna com o conceito de o estranho, pois o primeiro representa os “foras da lei”[18] estabelecida e o mesmo individuo é colocado por Bhabha em seu estudo sobre o “Além” como: o estranho. Exemplos: Artistas Performáticos, Hippies, Mendigos e outros.

Portanto, trançando com o conceito de Antropologia da Performance, trago este esquema para refletir sobre o xamanismo yanomami enquanto estado de performance. No entanto, o que é Xamanismo? O que é performance?

Segundo Langdon (1996) A antropologia brasileira tem uma história profícua em matéria de xamanismo e sobretudo as pesquisas atuais refletem novos paradigmas analíticos. No entanto, a autora salienta que o tema é um campo fértil de pesquisa devido à pouca sistematização dos grupos de trabalhos sobre o assunto. O foco aqui não se situa na preocupação em definir profundamente as possibilidades que este tema oferece, sobretudo, mas na investigação de sua capacidade simbólica e cultural.

A palavra xamanismo no Brasil muitas vezes é substituída por pajelança e, consequentemente, o termo xamã é substituído por pajé. Em alguns casos, as duas palavras são usadas, ao mesmo tempo, de modo alternado, como pude verificar na aldeia de Maturacá, onde as próprias lideranças indígenas usavam as duas denominações, naturalmente, sem que isso causasse qualquer estranhamento nas pessoas em volta. No caso específico deste artigo, entretanto, farei uso do termo xamanismo e xamã.

Voltando aos estudos de Langdon, é importante observar que a autora, lançando mão de uma perspectiva diferencial, entende que as práticas do xamanismo podem ser interpretadas enquanto uma categoria de representação simbólica:

 

É necessário considerar o xamanismo do ponto de vista coletivo. Antes de pensar sobre a motivação individual dos xamãs e seus poderes “mágicos”, é preciso reconhecer a prioridade do sistema de representações coletivas, das representações compartilhadas. [...] Porém, o sistema xamânico precisa estar manifestado, tornando-se concreto através do rito, do mito, da arte e de outras manifestações simbólicas. (LANGDON, 1996, p. 26)

 

O xamanismo oferece ao interessado no assunto, um ponto de vista coletivo; as representações em coletivo e principalmente a importância destas ações na construção do mundo da etnia indígena, OVERING (1994, p.101). Também vale ressaltar que cada realidade é própria de seu sistema xamânico, e por isso o tema é inesgotável, pois o xamanismo realizado no alto do Rio Negro será diferente do xamanismo do Xingu. A diferença não é difícil de se imaginar, basta lembrar de toda as questões históricas e as peculiaridades de sobrevivência de cada sociedade indígena e principalmente na forma que ele, índio o coloca.

Dando continuidade à análise das terminologias e fazendo uma ligação entre o xamanismo e a performance, trago à discussão o diretor de teatro e estudioso da antropologia e performance Richard Schechner, mais especificamente seu artigo O que é Performance?; para findar estes dois pontos iniciais.

A performance tornou-se um dos temas mais estudados dos últimos anos, em uma variedade de formas e linguagens; nas artes, na literatura, nas ciências sociais, nos rituais, na vida cotidiana, entre muitos outros campos. Ela pode, ao mesmo tempo, auxiliar o pesquisador no desenvolvimento de determinada teoria, como pode deixá-lo perdido graças à abrangência de seus significados:

 

Nos negócios, nos esportes, e no sexo, “realizar performance” é fazer algo no nível de um padrão – ter sucesso, ter excelência. Nas artes, “realizar performance” é colocar esta excelência em um show, numa peça, numa dança, num concerto. (SHECHNER, 2011, 28)

 

Schechner (2011 p. 29) salienta que o ato de realizar performance pode ser entendido em relação a noções elementares como as que as flexões verbais a seguir denotam: sendo, fazendo, mostrar fazendo e explicar “mostrar fazendo”. Estas noções me serão muito úteis para dar prosseguimento às análises que o presente artigo objetiva, ou seja, pensar a performance como algo acontecendo, enquanto ação, interação e relação.

Nesta breve reflexão sobre performance, percebe-se o potencial performático que o ritual oferece, indo diretamente ao encontro deste tema. Schechner, ao analisar os diversos tipos de performance, faz a seguinte reflexão sobre o ritual: “Rituais e ações são não apenas gêneros de performances, mas também estão presentes em todas as situações enquanto qualidades, reações ou modos (2011, p.30).

Por fim, trago ao texto minha experiência em campo com os Yanomami, como citado no início deste trabalho. Especificamente para nossa análise, ofereço um recorte deste campo que nos provoca enquanto Performance, sobretudo Perfermance Cultural, já que se trata de uma ação da cultura Yanomami – o ritual xamânico.

Na aldeia de Maturacá, o ritual xamãnico acontece entre as 14h e as 18h, e apenas no domingo e ocasiões especiais este horário é alterado. Durante o ritual, os corpos dos xamãs ficam todos completamente transfigurados. A corporeidade em todo momento nos chama a atenção, pois quanto maior o tempo de performance xamânica, maior o corpo parece ficar, nos lembrando a abordagem poética de Jean-Yves Leloup acerca do corpo: “O corpo sente, toca, fala, comunga. Vida incorporada, corpo da vida”. (LELOUP, 2015, p. 9)

Os movimentos são apresentados como provocação ao próprio corpo, planos baixos, médios e altos a todo instante. Gestos realizados espontaneamente, partituras corporais como desenhos no espaço, passos lentos e rápidos, base firme na terra, joelhos flexionados e muita vitalidade, em uma dança sem marcação e/ou regra. As expressões são concretas como lembrado na epigrafe deste artigo: “O corpo é o nosso texto mais concreto (...) é também o templo onde outros corpos mais sutis se abrigam” (LELOUP, 2015, p. 9).

As expressões construídas são intensas e o xamã, faz de sim próprio um intelecto do plano “sensível” para o plano racional, um diálogo entre o que se vê (a distribuição do espaço e os outros xamãs) e o que não é visível (os hecurapë; espíritos). Essa transição dialógica do, sensível para racional e vice e versa, acontece espontaneamente em um jogo corporal dentro do Toxasikë – espaço. O xamã conversa com os espíritos e também com os outros xamãs ao mesmo tempo, ele dança, canta e chama as pessoas presentes no local para compreender sua ação, construindo sua autonomia e atraindo os participantes intencionalmente usando todos os elementos possíveis à sua volta. Como destaca Schechner ao falar sobre a intensidade da performance:

Compreender a “intensidade da performance” é descobrir como uma performance constrói, acumula, ou usa a monotonia; como ela atrai participantes ou intencionalmente os barra; como o espaço é projetado ou manipulado; como o cenário ou roteiro é usado – em resumo, um exame detalhado de todo o texto performático. (SCHECHNER, 2011, p. 2019)

 

Por conseguinte, o xapiri[19] pode se caracterizar de acordo com sua vivência ritualística. E ao relatar o ritual de xamanismo Yanomami, Bruce Albert e William Milliken, configuram a diversidade de signos elaborados para o ritual: “Os entes-imagens xamânicos remetem, assim, às formas primordiais dos seres da floresta atuais (animais e vegetais), bem como a uma série de seres cosmológicos e mitológicos” (2009, p. 137), assim, faz-se importante voltar à reflexão sobre o espaço, a voz e o corpo.

Já no que se refere à voz, os mesmos autores destacam os cantos como força motriz do ritual, “saber cantar é uma forma de expressão muito valorizada na cultura yanomae[20], principalmente durante os grandes eventos intercomunitários: reahu” (GORHAM, 2011, p. 157). Portanto, percebe-se que o canto e o diálogos são fundamentais na construção da realidade xamânica:

Os xamãs formam um grupo vocal com regras de interação e um local específico para realizar os cânticos. Trata-se de uma expressão de sua arte verbal associada à música vocal humana e à estética das vozes dos hekurapë[21] que somente eles compreendem. (GORHAM, 2011, p. 158)

 

As vozes durante o ritual compõem o corpo de forma diversificada e íntima. Ou seja, cada xamã que realiza o ritual tem sua composição vocal peculiar, uns demonstram explosões rítmicas e vibratórias, e outros já se colocam sutis e singelos. No entanto, todos apresentam um diversificado recurso durante sua performance. Em minha experiência in loco, algumas vezes percebi as vozes ecoarem no espaço de toda aldeia, com grande potência, e quando eu identificava o xamã que estava produzindo aquele som, percebia que ele era pequeno, franzino e de idade avançada, demonstrando uma força insuspeitável aos olhos comuns.

Retornando aos estudos de Gorham, também se torna perceptível, na citação anterior, que o espaço aparece como ponto de interação das manifestações. Corpo e voz, no desenvolvimento do ritual. No entanto estes espaços são múltiplos, conforme relata o autor:

As performances xamânicas ocorrem por meio da apropriação espacial pública dentro da casa. São realizadas em frente aos lugares residenciais da maloca, considerados um espaço público, mas também acontecem nos lugares íntimos, os espaços familiares dentro do Yano. (GORHAM, 2011, p. 69)

Por conseguinte, o espaço torna-se elemento de força para o desenvolvimento do xamanismo Yanomami, “a praça e a primeira vertente da maloca são os lugares emergentes onde se observa a força/poder das performances” (GORHAM, 2011, p.70). O espaço que os xamãs usam para realizar o ritual, na aldeia Maturacá, é chamado por eles de Toxasikë. Uma espécie de palco sagrado, onde os xamãs “dialogam” com os hecurapë – espíritos, na língua Yanomami, durante o período em que estão em “transe”. Neste espaço, ficam apostos ao ritual os Pariqueiros, termo usado para designar os indígenas que estão em processo de preparação para se tornarem xamãs e indígenas que apenas fazem uso do Paricá[22].

Por fim, o corpo é o elemento fundamental durante todo o desenvolvimento da performance xamânica de Maturacá. Destaca-se o estado liminar deste agente do ritual, as pinturas em decomposição e seu estado de trança: realidade e o transe. Vale salientar que, do ponto de vista do ritual como um todo, entende-se por corpo, toda a composição criada e desenvolvida pelo xamã, assim voz é corpo, desenho é corpo e adornos também, sobretudo a corporeidade performática – a performance cultural - no ritual Yanomami que nos chama atenção para o encontro com a liminaridade de Turner e com a percepção de cultura hibrida de Bhabha.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

LANGDON, Jean. Xamanismo no Brasil – novas perspectivas. Florianópolis, Ed. da UFSC. 1996.

SCHECHNER, Richard. O que é performance ?. In. Performance Studies: an introduccion. Trad. L. Almeida. New York & London: Routledge, p. 28-51. 2011.

OVERING, Joana. O Xamã como Construtor de Mundos: Nelson Goodman na Amazônia. Trad. Nádia Farage. Ideias: Campinas, 1994.

STEIL, Carlos Alberto, Carvalho, Isabel C. M. Cultura, percepção e ambiente: diálogos com Tim Ingold. São Paulo: Terceiro nome, 2012.

TURNER, Victor. O Processo Ritual Estrutura e Anti Estrutura. São Paulo: Vozes, 1974.

______. Floresta de Símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Rio de Janeiro: Eduff, 2005.

______. Dramas, Campos e Metáforas: Ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

GORHAM. J. S. Xamanismo e Fala Ritual Yanomami: Performance Linguagem e Força. Tese (Doutorado em Antropologia) Universidade Federal de Santa Catarina. 2011.

________. Sonhos e Cantos Indígenas: exemplos de poder Xamanístico sul-americano. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade de Brasília. 2005.

LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Org. Lise Mary Alves. Ed. 23. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

 

Recebido: 02/05/16

Aceito: 30/06/16

        

NOTAS

[1] Grifo do Autor.

[2] Grifo do Autor.

[3] A aldeia de Maturacá se encontra no Alto do Rio Negro; especificamente próximo à divisa do Brasil com a Venezuela na margem esquerda e direita do Canal maturacá do Rio Cauaburis.

[4] Este pré-campo, configura-se como parte inicial de toda a pesquisa de doutoramento com o tema: A Performatividade no Xamanismo Yanomami: um olhar sensível para a Corporeidade, a Musicalidade e o Espaço no Ritual.

[5] Os lunda-ndembus, geralmente designados por Turner como Ndembus (Turner, 1996, p.1) habitavam a porção ocidental do distrito Mwinilunga na região noroeste da antiga Rodésia do Norte, atual Zâmbia.

[6] Victor Turner, utiliza os estudos sobre Ritos de Arnold Van Gennep, que dialogando com Tylor, Morgam, James Frazer e sobretudo com Emile Durkheim escreveu o livro: Os Ritos de Passagem. Este estudo, como destaca Roberto DaMatta na apresentação da edição brasileira (Vozes, 2008), se tornou bibliografia base para diversos estudos com base em cerimônias, rituais e ritos teatrais.

[7] Grifo do autor.

[8] Grifo do autor.

[9] Homi Jehangir Bhabha é professor doutor “Anne F. Rothenberg” de Humanidades, diretor do Centro de Humanidades Mahindra. É membro do conselho do Relatório Mundial da UNESCO sobre Diversidade Cultural. Atua, também, no conselho do Prêmio Literário Homem Asiático, na Comissão Indo-americana de Museus e Cultura, na Fundação de Pesquisa Alemã, na Faculdade de Graduação de Estudos Norte-americanos e Centro de Pesquisa Internacional “Entrelaces das Culturas Performáticas” na Universidade Livre de Berlim, Alemanha.

[10] Grifo do autor.

[11] Grifo do autor.

[12] Grifo do autor.

[13] Destaque em itálico do autor.

[14] Grifo do autor.

[15] Este tópico encontrasse como parte final da introdução do Livro O Local de Cultura.

[16] Grifo meu, com o objetivo de colocar o estranho não só como pessoa, mas também como cultura.

[17] Grifo do autor.

[18] Grifo meu para sinalizar o indivíduo que não segue as estruturas pré-estabelecidas.

[19] O termo xapiri, que designa xamã, tem correspondentes em todas as variações da língua yanomami: xapori, para os Yanomami ocidentais e na região de Surucucus; xapiri, para os Yanomami orientais, Yanomae; e, sapuli, para o Sanumá. (2011, p. 139)

[20] Os Yanomami são mencionados na literatura sob várias etnonímias: Guaharibos, Waika, Xiriana, Xirixana, Xamatari, Sanumá, Ninam-Yanam, Yanomamo, Yanomama, Yanonamë, Yanoama, Yanomam e Yanomae (2011, p. 38)

[21] Segundo a literatura voltada ao tema, o termo xapiripë ou hecurapë refere-se aos seres auxiliares de um xamã.

[22] Substância alucinógena usada no ritual xamãnico feita por um composto de plantas e usada pelos xamãs e pariqueiros.

 

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